sábado, 1 de dezembro de 2012

Capítulo 6 (Beijada por um Anjo)


Ivy estava descalça no chão frio, encolhendo os dedos. A umidade da piscina e o cheiro forte de cloro tinham
tomado todo o vestiário. O lugar ecoava como uma caverna feita de concreto cada vez que alguém fechava a
porta do armário. Tudo o que se relacionava à piscina dava– lhe arrepios.
As  outras garotas do clube de arte dramática estavam arrumando seus trajes, ensaiando as suas falas e rindo
de vergonha.
Suzanne colocou a mão no ombro de Ivy. – Você está bem?
–  Eu vou conseguir.
–  Tem certeza? – Suzanne não se convenceu.
–  Eu sei as minhas falas e tudo o que tenho de fazer é andar pra lá e pra cá no trampolim – no trampolim do
alto da piscina, que fica do lado fundo, sem cair, pensou Ivy consigo mesma.
Suzanne insistiu. – Ivy, sei que você é a estrela do McCardell, mas você não acha que devia contar pra ele que
mal sabe nadar e que morre de medo da água?
–  Já falei que eu consigo – disse Ivy, saindo do vestiário, sentindo o tremor em suas pernas. Entrou na fila
junto com 11 garotas e três rapazes na beira da piscina. Beth ficou do lado de Ivy e Suzanne de outro. Ivy olhou
para o verde azulado luminescente da piscina. É só água, disse a si mesma, nada mais do que aquilo que a gente
bebe. E ainda nem estamos na parte funda.
Beth pegou no braço dela. – Suzanne devia lhe agradecer por ter convidado Gregory.
–  Gregory? Claro que não o convidei! – Ivy virou– se rapidamente para Suzanne.
Suzanne  deu  de  ombros.  –  Queria  dar  a  ele  uma  previa  do  que  ele  está  prestes  a  ver.  Naquela  casa  da
montanha em que você vive deve haver vários lugares para a gente tomar sol.
–  Esse biquíni ficou ótimo em você – disse Beth.
Ivy ficou furiosa. Suzanne sabia o quanto aquela situação estava sendo difícil para ela sem ter de pensar na
presença de Gregory.
Ela podia ter se contido, pelo menos desta vez.
Gregory não  estava sozinho na  arquibancada. Seus amigos Eric e Will  também estavam  por lá, junto  com
outros  alunos  que  devem ter  fugido  das  suas  atividades  do  período.  Todos  os  garotos  olhavam  com muito
interesse para as garotas que se alongavam à beira da piscina.
Então a classe caminhou pelo perímetro da piscina fazendo exercícios vocais.
–  Quero ouvir todas as consoantes, todos os pés, dês e tês – disse o senhor McCardell, sua voz se distinguia
de  forma  surpreendente  em  meio  ao  eco  da  piscina.  –  Margareth,  Courtney,  Suzanne,  não  estamos  em  um
desfile de moda – gritou. – Apenas andem.
A frase gerou algumas vaias da platéia.
–  E pelo amor de Deus, Sam, pare de pular!
Dessa vez a platéia abafou o riso.
Quando os alunos terminaram o circuito, foram para a parte funda da piscina.
–  Olhem pra mim – ordenou o professor. – Vocês não estão concentrados – inclinando– se para eles, disse:
–  Isso é uma lição de enunciação e concentração. Será imperdoável se algum de vocês deixar que esses parasitas
os  distraiam –  quase  todo  mundo da  classe  olhou  para  a  arquibancada.  A porta  da  piscina  se  abriu,  e  mais
espectadores entraram, eram todos garotos.
–  Estamos prontos, estamos nos preparando?
O exercício era memorizar 25 linhas de uma  poesia ou prosa, algo que falasse de amor ou morte. – Os dois
grandes temas da vida e da arte dramática – disse o senhor McCardell.
Ivy tinha separado dois poemas românticos do inglês arcaico, um cômico e um trágico. Em voz baixa, repetia
suas falas. Achava que tinha decorado tudo, mas, assim que o primeiro aluno subiu pela escada de metal, sentiu
como se as palavras tivessem evaporado de sua mente. Seu coração começou a bater mais rápido, como se fosse
ela na escada. Respirou fundo.
–  Você está bem? – Beth sussurrou.
–  Conte pra ele, Ivy! Explique para o McCardell o que você está sentindo – implorou Suzanne.
Ivy balançou a cabeça negativamente. – Estou bem.
Os três primeiros apresentaram–  se  de forma  muito mecânica, mas todos  mantiveram o equilíbrio,  indo e
voltando  no  trampolim.  Porém,  Sam  caiu.  Parecia  um  enorme  pássaro  esquisito,  agitando  os  seus  braços  e
caindo na água. Ivy engoliu seco.
Sua vez  chegou. Subiu  a escada  bem  devagar,  degrau por  degrau, o  coração batendo  cada  vez mais  forte.
Sentia  ter  mais  força  nos  braços  do  que  nas  pernas.  Usou–  os  para  subir  no  trampolim,  depois  parou.  Lá
embaixo, a água dançava, uma dança de ondas escuras e raios fluorescentes.
Ivy concentrou– se no final do trampolim, como a haviam ensinado, e deu três passos, sentindo o trampolim
balançar com o seu peso. Seu estomago revirou, mas foi em frente.
–  Pode começar –   disse o senhor McCardell.
Ficou introspectiva por um momento, tentando lembrar suas falas, tentando lembrar as imagens que deveria
usar para a primeira poesia. Sabia que se fizesse daquilo um simples exercício, sua apresentação não seria intensa.
Tinha de atuar, tinha de se deixar levar pelas emoções do poema.
Lembrou– se das primeiras palavras do poema cômico e, de repente, as imagens surgiram em sua mente: uma
noiva coberta de glitter, convidados paralisados, uma chuva de vegetais. Lá embaixo, a platéia ria enquanto ela
recitava as linhas sobre as idiotices do amor.  Depois, ainda em movimento, encontrou um ritmo mais lento e
trágico do segundo poema:
“Brisa do Oeste, quando você vai soprar,
Pode a garoa cair!
Ah, meu Deus, se meu amor estivesse em meus braços
E pudesse em minha cama dormir!”
Deu mais dois passos e chegou ao final do trampolim, recuperando o fôlego. De repente, ouviu os aplausos.
Ela tinha conseguido!
Quando os aplausos terminaram, o senhor McCardell disse:
–  Muito bom –   um elogio e tanto tratando– se dele.
–  Obrigada, senhor – respondeu Ivy, tentando se virar para voltar pelo trampolim.
Quando ela começou a virar, sentiu as suas pernas tremerem, e ficou paralisada. Não olhe para baixo.
Mas tinha de ver onde estava pisando. Respirou fundo e tentou virar novamente.
–  Ivy, algum problema? – perguntou o senhor McCardell.
–  Ela tem medo de água – revelou Suzanne. – E não sabe nadar.
Lá  embaixo,  a  piscina  parecia  dançar,  coberta  por  uma  nevoa.  Tentou se  concentrar  no  trampolim.  Não
conseguia. A água parecia vir na sua direção, pronta para engoli– la. Depois recuava, voltando para baixo. Ivy
cambaleou. Uma perna foi ao chão.
–  Oh! – ouvi– se nas arquibancadas.
A  outra  perna  foi  ao  chão,  saindo  do  trampolim.  Ivy  agarrou–  se  com  o  desespero  de  um  gato.  Estava
pendurada, metade no trampolim, metade fora – Alguém a ajude! – gritou Suzanne.
Anjos das águas, rezou Ivy silenciosamente. Anjos das águas, não me deixe cair. Você me ajudou uma vez.
Por favor, anjo...
Então  Ivy  sentiu  seus  braços  tremerem  com  o  movimento  do  trampolim.  Suas  mãos  estavam  úmidas  e
escorregadias.  Solte, disse a si mesma. Confie  em seu anjo. Seu anjo não vai deixar você se afogar. Anjos  das
águas,  rezou  pela  terceira  vez,  mas  seus  braços  não  soltavam.  O  trampolim  continuou  a  vibrar.  Suas  mãos
estavam escorregadias e começavam a se soltar.
–  Ivy.
Virou o rosto ao ouvir a voz, batendo a bochecha no trampolim. Tristan tinha subido a escada e estava do
outro lado do trampolim. – Vai dar tudo certo, Ivy.
Então, veio em direção a ela. A prancha de fibra de vidro flexionou– se com o peso dele.
–  Não! – gritou Ivy, agarrando– se desesperadamente ao trampolim. – Não flexione. Por favor! Estou com
medo.
–  Posso te ajudar. Confie em mim.
Seus braços doíam. Sua cabeça estava leve, mas a pele estava fria e toda arrepiada. Lá emba ixo, a água girava
de forma vertiginosa.
–  Preste atenção em mim, Ivy. Você não vai conseguir se segurar desta forma. Venha um pouco para o lado.
Venha, está bem!  Solte o seu braço direito.  Vamos. Eu sei  que  você consegue – Ivy soltou o  peso  do corpo
devagar. Por um momento, pensou que fosse cair do trampolim. Seu braço livre agitava– se freneticamente. –
Você conseguiu, você conseguiu – ele disse.
Ele estava certo. Estava se segurando melhor, as duas mãos firmes no trampolim.
–  Agora dê um impulso para cima. Force seu corpo para cima do trampolim. É assim que se faz – sua voz
era firme e segura.
Qual a sua perna favorita? – perguntou. Ela franziu a testa para ele. – Você é canhota ou destra de perna? –
disse, sorrindo.
–  Acho que destra.
–   Solte sua  mão direita, então. E  levante  a perna direita, dobre–  a embaixo  de você – ela conseguiu.  Um
minuto mais tarde as duas pernas estavam dobradas embaixo de seu corpo.
–  Agora venha engatinhando para mim.
Ela olhava para baixo, para a dança das águas.
–  Venha para mim, Ivy.
Estava  apenas a dois metros e  meio de distancia, mas parecia 25  quilômetros. Engatinhou silenciosamente
pelo  trampolim.  Depois, sentiu  uma mão pegando  seu  braço com firmeza.  Ele  a levantou,  puxando–  a  para
cima, virando o corpo dela rapidamente. Ivy ficou pálida de alivio.
–    Tudo  bem,  estou  bem  atrás de você.  Vamos  dar  um  passo  de  cada  vez. Estou  bem  aqui –  disse  ele,
começando a descer a escada.
Um passo de  cada  vez, Ivy  repetiu a si  mesma. Se pelo  menos as suas pernas parassem de tremer. Então,
sentiu  a  mão  dele  segurando  delicadamente  seus  tornozelos,  guiando–  a  pela  escada  de  metal.  Finalmente
chegaram ao pé da escada.
O senhor McCardell desviou o olhar, obviamente sentindo– se desconfortável com a situação.
–  Obrigada – disse Ivy em voz baixa para Tristan.
Em  seguida, saiu  correndo para  o  vestiário  antes que  Tristan  e  os  outros  pudesse ver as suas lagrimas  de
medo.
No estacionamento, naquela tarde, Suzanne tentou convencer Ivy a ir para a casa dela. – Obrigada, mas estou
cansada. Acho que deveria ir para... casa – era estranho chamar a casa de Andrew de sua casa.
–  Então, por que você não dirige por ai primeiro? – sugeriu Suzanne. – Conheço uma cafeteria que ninguém
mais freqüenta, pelo menos ninguém da escola. Podemos conversar sem ser mos interrompidas.
–  Não preciso conversar, Suzanne. Estou bem. Mesmo. Mas se você quiser ficar comigo, por que você não
vem para minha casa.
–  Não acho que seja uma boa idéia.
Ivy inclinou a cabeça.
–  Até parece que foi você que ficou pendurada no trampolim.
–  Sinto como se tivesse sido eu – disse Suzanne.
–  Se não te conhecesse tão bem, pensaria que tinha caído de alguma escada e batido forte com a cabeça no
chão. Acabei de te convidar para ir à casa de Gregory.
Suzanne espalhou batom nos lábios e depois o guardou.
–  É isso. Você sabe como sou, Ivy – como um lobo a procura da sua presa. Não consigo me controlar. Se
ele estiver lá, vou me distrair completamente. E, nesse momento, você precisa da minha atenção.
–  Não preciso da atenção de ninguém! Passei um mau momento no clube de arte dramática...
–  E foi resgatada!
–  Fui resgatada...
–  Por Tristan!
–  Por Tristan e agora...
–  Vocês vão viver felizes para sempre – disse Suzanne.
–  Agora vou pra casa, e se você quiser vir comigo para dar em cima de Gregory, tudo bem. Pelo menos vai
distrair minha atenção.
Suzanne pensou por um momento, depois abriu a boca e perguntou: –  Tem batom nos meus dentes?
–  Se você não falasse tanto, não teria esse problema – disse Ivy, apontando para a mancha vermelha. – Tem,
bem aqui.
Quando Ivy chegou em casa, a BMW de Gregory estava na garagem. – Estamos com sorte hoje – disse Ivy.
Ao entrar em casa, Ivy ouviu sua mãe falando alto, recebendo as respostas rápidas de Gregory a cada vez que
falava. Ela e Suzanne olharam uma para a outra, depois seguiram o som das vozes até o escritório de Andrew.
–  Aconteceu alguma coisa? – perguntou Ivy.
–    Olha  o  que  aconteceu!  –  disse  sua  mãe,  apontando  para  uma  cadeira  de  seda.  O  encosto  estava
despedaçado.
–  Nossa! O que aconteceu? – perguntou Ivy.
–  Talvez meu pai tenha lixado as unhas – sugeriu Gregory.
–  É a cadeira predileta do Andrew – disse Maggie. Seu rosto estava vermelho. O spray do cabelo perdia a
força e seu penteado estava desmoronando. – E esse tecido não é muito barato, Ivy.
–  Não fui eu que fiz isso, mamãe!
–  Deixe eu ver as suas unhas – provocou Gregory.
Suzanne riu.
–  Foi Ella quem fez isso! – disse Maggie,
–  Ella? – Ivy balançou a cabeça. – É impossível! Ella nunca destruiu nada na vida.
–  Ella não gosta do Andrew – disse Philip, que estava sentado silenciosamente em um canto do quarto. –
Fez isso porque não gosta de Andrew.
Maggie virou–  se. Ivy  pegou  a  mãe  pelas  mãos. –  Fácil – disse. Depois, examinou  o  encosto  da  cadeira.
Gregory a observou  e também  examinou a  cadeira, que estava muito estilhaçada. Philip não teria conseguido
fazer aquilo. Devia mesmo ser culpa de Ella.
–  Vamos ter que cortar as garras dela – disse Maggie.
–  Não!
Ivy a mobília desta casa é muito valiosa. Não pode ser destruída. Vamos ter de fazer isso.
–  Não vou deixar você fazer isso.
–  Ella é só uma gata.
–  E isso é só uma mobília – disse Ivy, com a voz fria e firme.
–  Ou isso, ou vamos ter de doá– la.
Ivy levou as mãos ao peito. Ela era quatro centímetros maior que a mãe.
–   Ivy... – viu os olhos  de sua mãe  encherem–  se de água. Ultimamente ela estava assim, emotiva, sempre
implorando e chorando.
–  Ivy, essa é uma nova vida, são novos caminhos para todos nós. Você mesma me disse: por todas as coisas
boas que estão acontecendo, esse conto de fadas não vai ter fim. Todos temos de fazer com que dê certo.
–  Onde Ella está agora? – perguntou Ivy.
–  No seu quarto. Fechei a porta do corredor e a do sótão para que ela não destrua mais nada.
Ivy virou– se para Gregory. – Você poderia oferecer uma bebida para Suzanne?
–  Claro!
Então  Ivy  foi  para  o  seu  quarto.  Ficou  sentada  lá  por  um  bom  tempo,  acarinhando  Ella  em  seu  colo  e
olhando para o seu anjo das águas.
–  O que faço agora, anjo? – rezou – O que faço agora? Não me peça para desistir de Ella! Não posso desistir
dela. Não posso!
No final, acabou desistindo, pois percebeu que não podia tirar a liberdade de Ella. Não podia deixar que sua
gata de rua,  feroz e vulnerável,  fosse  maltratada. Apesar  de partir seu  coração,  e o de Philip também,  decidi u
colocar um anuncio de adoção no quadro de avisos da escola na quinta– feira à tarde.
Quinta– feira à noite, recebeu um telefonema. Philip estava no quarto dela fazendo a lição de casa e atendeu.
Com tristeza, passou o telefone a ela. – É um homem – disse. – E quer adotar Ella.
Ivy franziu a testa e pegou o fone. – Alô?
–  Oi. Como vai você? – disse o homem.
–  Vou bem – Ivy respondeu. O que importava como ela ia? Imediatamente, percebeu que não gostava da
pessoa, porque ele queria lhe tirar Ella.
–  Que bom! Hum... Você já encontrou alguém para ficar com a sua gata?
–  Não – disse.
–  Gostaria de ficar com ela.
Ivy  fechou os olhos.  Não queria que  Philip a  visse chorando.  Deveria  estar  feliz  e aliviada por alguém  se
interessar em cuidar de um gato adulto.
–  Você está ai? – disse o homem.
–  Sim.
–  Eu vou cuidar bem dela, vou dar comida e banho nela.
–  Não se dá banho em gatos.
–  Vou aprender o que fazer com ela. Acho que ela vai gostar daqui. É um lugar confortável.
Ivy balançou a cabeça silenciosamente. – Alô?
Virou– se de costas para Philip. – Entenda, ela significa muito para mim. Se você não se importar, gostaria de
ir até sua casa e falar com você pessoalmente.
–  Não me importo nem um pouco. – disse o homem, entusiasmado. – Anote aí o endereço.
Ela anotou.
–  E qual é seu nome? – perguntou.
–  Tristan.

Nenhum comentário:

Postar um comentário