domingo, 9 de dezembro de 2012

Capítulo 4 ( Fallen)


Capítulo 4 Turno do Cemitério
Ahhh, terça-feira. Dia do waffle. Desde que Luce podia se lembrar, terças-feiras de
verão significavam café fresco, tigelas cheias de framboesa com chantilly, e uma
interminável pilha de waffles dourados e crocantes. Mesmo este verão, quando
seus pais começaram a sentir um pouco de medo dela, o dia do waffle era algo com
que ela podia contar. Ela podia rolar na cama na terça-feira, e antes de pensar em
qualquer outra coisa, instintivamente ela sabia que dia era.
Luce inalou, retomando lentamente a seus sentidos, então ela inalou de novo com
um pouco mais de vontade. Não, não havia nenhum leitelho batido, nada além do
cheiro de vinagre da pintura descascada. Ela mandou o sono para longe e captou
seu quarto de dormitório apertado. Isso parecia como a foto de ― antes ― em um
show de renovação de casa. O longo pesadelo que foi a segunda-feira retornou à
ela: eles tomarem seu celular, o incidente com o bolo de carne e os olhos brilhantes
de Molly no refeitório, Daniel expulsando-a da biblioteca. O que foi que o fez ficar
tão rancoroso, Luce não tinha a menor ideia.
Ela sentou para olhar pela janela. Ainda estava escuro; o sol não tinha sequer saído
pelo horizonte ainda. Ela nunca tinha acordado tão cedo. Se duvidasse, ela
realmente não achava que conseguia se lembrar de já ter visto o nascer do sol.
Sinceramente, algo sobre assistir-o-nascer-do-sol como uma atividade sempre a
deixava nervosa. Eram os momentos de espera, os momentos logo-antes-do-sol-
surgir-no-horizonte, sentada na escuridão olhando através das linhas das árvores. O
horário nobre das sombras.

Luce suspirou audivelmente com saudades de casa, um suspiro de solidão, o que a
deixou com ainda mais saudade e solitária. O que ela iria fazer durante as três horas
entre o raiar do dia e a sua primeira aula? Raiar do dia por que essas palavras
zumbiam em seus ouvidos? Ah. Droga. Ela deveria estar na detenção.
Ela saltou para fora da cama, tropeçando em sua mala ainda-cheia, e arrancou um
outro suéter preto tedioso do topo da pilha de suéteres pretos tediosos. Ela colocou
o jeans preto que usou ontem, estremeceu quando teve um vislumbre do desastre
que estava sua cabeça, e tentou correr os dedos pelo seu cabelo enquanto corria
pela porta afora.
Ela estava ofegante quando chegou aos portões de ferro forjado, da altura da
cintura e complexamente esculpidos, do cemitério. Ela estava engasgada com o
cheiro esmagador da Skunk Cabbage 11e se sentindo muito sozinha com seus
pensamentos. Onde estavam os outros? A definição de ― início da manhã ― deles
era diferente da dela? Ela olhou para seu relógio. Já eram seis e quinze.
      Tudo o que eles tinham dito a ela era para se encontrarem no cemitério, e Luce
tinha bastante certeza de que essa era a única entrada. Ela estava na divisa, onde o
asfalto áspero do estacionamento dava lugar a um terreno destruído cheio de ervas
daninhas. Ela notou um dente-de-leão solitário, e passou pela sua mente que uma
Luce mais jovem teria pulado sobre ele e então feito um desejo e soprado. Mas
agora os desejos dessa Luce pareciam pesados demais para algo tão leve.
Os portões delicados eram tudo o que dividia o cemitério do estacionamento.
Incrível para uma escola com tanto arame farpado em todo o lugar. Luce passou a
mão ao longo dos portões, seguindo o padrão floral ornamentado com seus dedos.
Os portões deviam datar dos dias da Guerra da Secessão que Arriane falara, quando
o cemitério era utilizado para enterrar os soldados caídos. Quando a escola se
juntou a ele, não era um lugar para loucos instáveis. Quando o lugar todo era muito
menos cheio e sombrio.
Isso era estranho - o resto do terreno era plano como uma folha de papel, mas de
alguma forma, o cemitério tinha um formato côncavo, parecido com uma tigela.
Daqui, ela podia ver a inclinação de toda a vastidão a partir dela. Fileira após fileira
de lápides simples alinhavam-se nas inclinações como espectadores em um estádio.
Mas em direção ao centro, no ponto mais baixo do cemitério, o trecho através do
terreno se torcia em um labirinto de grandes túmulos esculpidos, estátuas de
mármore, e mausoléus. Provavelmente para oficiais da Confederação, ou apenas
para soldados que tinham dinheiro. Eles pareciam que seriam bonitos vistos de
perto. Mas vistos dali, o simples peso deles parecia arrastar o cemitério para baixo,
quase como se todo o lugar estivesse sendo engolido por um ralo.
     Passos atrás dela. Luce girou ao seu redor para ver uma figura pequena e
grossa, vestida de preto, surgir de trás de uma árvore. Penn! Ela teve de resistir ao
desejo de jogar seus braços em volta da garota. Luce nunca tinha ficado tão
contente em ver alguém - embora fosse difícil acreditar que Penn tivesse pego
alguma detenção.
― Você não está atrasada? ― Penn perguntou, parando alguns metros à frente de
Luce e dando a ela um aceno divertido de sua-pobre-novata com a cabeça.
― Eu estou aqui há 10 minutos ― , Luce falou. ― Não é você quem está atrasada? ―
Penn sorriu. ― De jeito nenhum, eu sou apenas uma madrugadora. Eu nunca peguei
detenção. ― Ela deu de ombros e empurrou seu óculos roxo para cima em seu nariz.
― Mas você pegou, junto com outras cinco almas infelizes, que provavelmente
estão ficando mais irritadas a cada minuto que esperam por você lá embaixo no
monólito. ― Ela ficou na ponta dos pés e apontou para trás de Luce, em direção a
maior estrutura de pedra, que se levantava do meio da parte mais profunda do
cemitério. Se Luce apertasse os olhos, ela poderia notar um grupo de figuras negras
agrupadas em torno de sua base.
― Eles apenas disseram para se encontrar no cemitério, ― Luce disse, já se
sentindo derrotada. ― Ninguém me disse para onde ir. ―
― Bem, eu estou dizendo para você: monólito. Agora desça até lá, ― Peen falou. ―
Você não vai fazer muitos amigos acabando com a manhã deles mais do que você já
acabou. ―
Luce engoliu em seco. Parte dela queria pedir a Penn para lhe mostrar o caminho.
Daqui de cima, aquilo parecia um labirinto, e Luce não queria ficar perdida no
cemitério. De repente, ela ficou com aquela sensação nervosa, de estar longe de
casa, e ela sabia que isso só iria piorar lá. Ela estalou suas juntas, retardando.
― Luce? ― Penn disse, dando um pequeno empurrão em seus ombros. ― Você
ainda está parada aqui. ―
      Luce tentou dar uma Penn um sorriso corajoso de agradecimento, mas teve
que se contentar com um estranho tique facial. Então ela correu para baixo da
encosta para o coração do cemitério.
O sol ainda não tinha nascido, mas estava quase, e estes últimos momentos antes
de amanhecer sempre eram os que mais a assustavam. Ela passou rápido pelas
fileiras de lápides simples. Em um ponto elas deviam ter estado retas, mas agora
elas eram tão velhas que a maioria delas tombava para um lado ou para o outro,
dando ao lugar todo, uma aparência de jogo de dominó mórbido.
Ela passou em seu tênis Converse preto pelas poças de lama, esmagando folhas
mortas. Na hora que ela passou pela área mais simples e chegou até os túmulos
mais ornamentados, a terra tinha mais ou menos sido achatada, e ela estava
totalmente perdida. Ela parou de correr, tentou recuperar o fôlego. Vozes. Se ela se
acalmasse, ela poderia ouvir vozes.
 ― Mais cinco minutos, então eu vou cair fora, ― disse um rapaz.
 ― Pena que a sua opinião não tenha valor, Sr. Sparks. ― Uma voz teimosa, uma
que Luce reconheceu de suas aulas de ontem. Sra. Troz - a Albatroz. Após o
incidente com o bolo de carne, Luce tinha chegado tarde para a aula dela e não
tinha dado exatamente a impressão mais favorável para a professora severa e
esférica de ciência.
 ― A não ser que alguém queira perder seus privilégios sociais esta semana ― -
gemidos entre os túmulos ― – vamos todos esperar pacientemente, como se não
tivéssemos nada melhor para fazer, até a Miss Price decidir dar a graça de sua
presença para nós. ―
 ― Eu estou aqui, ― Luce arfou, finalmente contornando uma estátua gigante de
um querubim.
Sra. Troz estava com as mãos nos quadris, vestindo uma variação do vestido preto
florido e solto de ontem. Seu escasso cabelo cor castanho-rato estava puxado na
sua cabeça e seus tediosos olhos castanhos mostravam apenas aborrecimento com
a chegada de Luce. Biologia sempre foi difícil para Luce, e até agora, ela não estava
fazendo nenhum favor à sua nota na classe Sra. Troz.
     Atrás da Albatroz estavam Arriane, Molly, e Roland, espalhados ao redor de
um círculo de blocos que encaravam uma grande estátua central de um anjo. Em
comparação com o resto das estátuas, esta parecia mais nova, mais branca, mais
grandiosa. E encostado na coxa esculpida do anjo - ela quase não tinha percebido -
estava Daniel.
Ele estava vestindo a jaqueta de couro preta e o cachecol vermelho vivo que a tinha
deixado fixada ontem. Luce tomou conhecimento de seu cabelo loiro desarrumado,
que parecia não ter sido penteado depois dele acordar... o que a fez pensar sobre
como Daniel ficava quando estava dormindo... o que a fez corar tão intensamente
que, do momento que seus olhos fizeram o caminho da linha do cabelo para os
olhos dele, ela estava completamente humilhada.
Nesse momento ele estava olhando fixamente para ela.
 ― Sinto muito, ― ela deixou escapar. ― Eu não sabia onde deveríamos nos
encontrar. Eu juro ―
 ― Pode parar, ― disse a Sra. Troz, passando o dedo em sua garganta. ― Você já
desperdiçou o bastante do tempo de todo mundo. Agora, eu tenho certeza que
todos se lembram da indiscrição desprezível que vocês cometeram para estarem
aqui. Vocês podem pensar sobre isso nas próximas duas horas enquanto vocês
trabalham. Se reúnam em pares. Vocês sabem o que fazer. ― Ela olhou para Luce e
soltou sua respiração. ― Ok, quem quer uma protegida? ―
Para o horror de Luce, todos os outros alunos olharam para seus pés. Mas então,
depois de um minuto torturante, um quinto aluno entrou no campo de visão ao
virar a esquina do mausoléu.
― Eu quero. ―
      Cam. Sua camiseta preta com gola em v era justa em torno de seus ombros
largos. Ele era quase trinta centímetros mais alto do que Roland, que se deslocou
para o lado quando Cam empurrou e passou, caminhando na direção de Luce. Seus
olhos estavam grudados nela enquanto ele andava para frente, movendo-se suave e
confiantemente, tão à vontade em sua roupa de escola reformatória quanto Luce
estava pouco à vontade. Parte dela queria desviar seus olhos, porque era
embaraçosa a maneira que Cam olhava para ela na frente de todos. Mas por alguma
razão, ela estava hipnotizada. Ela não poderia quebrar o seu olhar - até que Arriane
pisou entre eles.
 ― Primeiro, ― disse ela. ― Eu disse que vi primeiro. ―
 ― Não, você não disse, ― Cam disse.
 ― Sim, eu disse, você não me ouviu de seu poleiro estranho lá atrás. ― As palavras
se apressaram para fora de Arriane. ― Eu a quero. ―
 ― Eu- ― Cam começou a responder.
Arriane inclinou a cabeça com expectativa. Luce engoliu em seco. Ele ia chegar e
dizer que ele a queria também? Eles não poderiam simplesmente esquecer isso?
Fazer detenção com um grupo de três?
Cam acariciou o braço de Luce. ― Vou encontrar com você depois, ok? ― ele disse a
ela, como se fosse uma promessa que ela lhe pediu para fazer.
Os outros garotos pularam dos túmulos nos quais eles tinham sentado e
marcharam em direção a um galpão. Luce os seguiu, agarrando-se em Arriane, que
sem dizer uma só palavra entregou-lhe um ancinho.
 ― Então. Você quer o anjo vingador, ou os amantes carnais abraçados? ―
      Não houve menção sobre os acontecimentos de ontem, ou do bilhete da
Arriane, e Luce de algum modo não sentia que deveria puxar esse assunto com
Arriane agora. Em vez disso, ela olhou para cima e viu-se rodeada por duas estátuas
gigantes. A mais próxima dela parecia um Rodin. Um homem nu e uma mulher
estavam enlaçados em um abraço. Ela tinha estudado escultura francesa em Dover,
e sempre pensou que as peças de Rodin eram as mais românticas. Mas agora era
difícil olhar para os amantes abraçados sem pensar em Daniel. Daniel. Que a odiava.
Se ela precisasse de mais uma prova disso depois que ele basicamente fugiu da
biblioteca à noite, tudo o que tinha que fazer era voltar a pensar no novo olhar
fulminante que ela tinha ganho dele esta manhã.
 ― Onde está o anjo vingador? ― ela perguntou a Arriane com um suspiro.
 ― Boa escolha. Por aqui. ― Arriane levou Luce para uma enorme escultura de
mármore de um anjo salvando o solo da fúria de um raio. Ela pode ter sido uma
peça interessante, no dia em que foi esculpida. Mas agora ela só parecia velha e
suja, coberta de lama e musgo verde.
 ― Eu não entendi, ― Luce disse. ― O que vamos fazer? ―
 ― Vamos dar uma esfregadinha, ― Arriane disse, quase cantando. ― Eu gosto de
fingir que eu estou lhes dando um banhozinho. ― Com isso, ela escalou o anjo
gigante, balançando as pernas ao longo do braço da estátua que impedia o raio,
como se o negócio todo fosse apenas um carvalho grosso e velho para ela escalar.
Com medo de parecer que ela estava querendo mais encrenca com a Sra. Troz,
Luce começou a trabalhar com seu ancinho em toda a base da estátua. Ela tentou
limpar o que parecia ser uma interminável pilha de folhas úmidas.
Três minutos depois, os braços dela estavam a matando. Ela definitivamente não
estava vestida para este tipo de trabalho manual lamacento. Luce nunca tinha sido
enviada para a detenção na Dover, mas de acordo com o que ela tinha escutado,
consistia em encher um pedaço de papel com ― Eu não vou plagiar coisas da
Internet ― algumas centenas de vezes.
      Isto era brutal. Principalmente quando tudo o que ela realmente tinha feito foi
topar com Molly acidentalmente no refeitório. Ela estava tentando não fazer um
julgamento precipitado aqui, mas limpar a lama de sepulturas de pessoas que
tinham morrido há mais de um século? Agora Luce odiava sua vida totalmente.
Em seguida raios de sol finalmente filtraram-se através das árvores, e de repente
havia cor no cemitério. Luce sentiu-se instantaneamente mais leve. Ela podia ver
mais de três metros na frente dela. Ela podia ver Daniel... trabalhando lado a lado
com Molly.
O coração de Luce afundou. O sentimento de leveza desapareceu.
Ela olhou para Arriane, que lançou-lhe um olhar de simpatia do tipo isso-é-um-saco,
mas continuou trabalhando.
 ― Hey, ― Luce sussurrou em voz alta.
Arriane colocou um dedo sobre os lábios, mas gesticulou para Luce subir ao lado
dela.
Com muito menos graça e agilidade, Luce agarrou o braço da estátua e se balançou
para cima do pedestal. Uma vez que estava quase certa que não iria cair no chão,
ela sussurrou: ― Então... o Daniel é amigo da Molly? ―
Arriane bufou. ― De jeito nenhum, eles totalmente se odeiam, ― ela disse
rapidamente, e em seguida fez uma pausa. ― Porque você está perguntando? ―
Luce apontou para os dois, não fazendo qualquer trabalho para limpar bem sua
tumba. Eles estavam em pé perto um do outro, inclinando-se sobre a sua ancinhos e
tendo uma conversa que Luce desesperadamente desejava poder ouvir. ― Eles
parecem amigos para mim. ―
 ― É a detenção, ― Arriane disse categoricamente. ― Você tem que ficar em par.
Você acha que Roland e Chester, o Molestador, são amigos? ― Ela apontou para
Roland e Cam. Eles pareciam estar discutindo sobre a melhor maneira de dividir o
seu trabalho na estátua dos amantes. ― Companheiros de detenção não equivale a
amigos na vida real. ―
Arriane olhou de volta para Luce, que podia sentir sua expressão caindo, apesar de
seus melhores esforços para parecer imperturbável.
      ― Olha, Luce, eu não quis dizer... ― Ela dissipou a voz. ― Ok, além do fato de
você ter me feito perder uns bons vinte minutos da minha manhã, eu não tenho
nenhum problema com você. Na verdade, eu acho que você é meio interessante.
Um pouco nova. Dito isso, eu não sei o que você esperava em termos de amizade
sentimental-piegas aqui no Sword & Cross. Mas deixe-me ser a primeira a te dizer,
não é simplesmente assim tão fácil. As pessoas estão aqui porque têm bagagem. Eu
estou falando de bagagem do tipo faça-seu-check-in, e-pague-a-multa-porque-
tem-mais-de-vinte-e-dois-quilos. Entendeu? ―
Luce encolheu os ombros, sentindo-se envergonhada. ― Foi apenas uma pergunta.
Arriane riu nervosamente. ― Você é sempre tão defensiva? Que diabos você fez
para entrar aqui, afinal? ―
Luce não tinha vontade de falar sobre isso. Talvez Arriane estivesse certa, seria
melhor se ela não tentasse fazer amigos. Ela desceu e voltou a atacar o musgo na
base da estátua.
Infelizmente, Arriane ficou intrigada. Ela saltou também, e trouxe seu ancinho em
cima do de Luce para colocá-lo no lugar.
 ― Oh, me conta me conta me conta, ― ela provocou.
O rosto de Arriane estava muito perto do de Luce. Isso lembrou Luce do dia
anterior, agachada sobre Arriane depois que ela teve a convulsão. Elas tinham tido
um momento, não tinham? E parte de Luce queria muito ser capaz de contar à
alguém. Esse tinha sido um longo e sufocante verão com seus pais. Ela suspirou,
apoiando a testa na alça de seu ancinho.
Um gosto salgado de nervosismo encheu sua boca, mas ela não conseguiu engoli-
lo. Da última vez que ela tinha entrado nesses detalhes, tinha sido por causa de uma
ordem judicial. Ela teria se esquecido deles logo, mas quanto mais Arriane a
encarava, mais claras as palavras ficavam, e elas ficavam mais perto da ponta da
sua língua.
      ― Eu estava com um amigo uma noite, ― ela começou a explicar, dando uma
respiração longa e profunda. ― E uma coisa terrível aconteceu. ― Ela fechou os
olhos, rezando para que a cena não pudesse criar uma explosão de vermelho-e-
preto em suas pálpebras. ― Houve um incêndio. Eu escapei... e ele não. ―
Arriane bocejou, muito menos horrorizada com a história do que Luce estava.
― De qualquer forma, ― Luce continuou, ― depois de tudo, eu não conseguia me
lembrar dos detalhes, como isso aconteceu. O que eu pude lembrar ― o que eu
disse ao juiz, de qualquer maneira, - eu acho que eles pensaram que eu era maluca.
― Ela tentou sorrir, mas pareceu forçado.
Para a surpresa de Luce, Arriane apertou seu ombro. E por um segundo, seu rosto
pareceu realmente sincero. Depois ele mudou para um sorriso afetado.
 ― Nós somos todos tão incompreendidos, não somos? ― Ela cutucou Luce no
intestino com o dedo. ― Você sabe, Roland e eu estávamos justamente falando
sobre como nós não temos nenhum amigo piromaníaco. E todo mundo sabe que
você precisa de um bom piro para levar a cabo qualquer pegadinha de reformatório
que valha a pena. ― Ela já estava planejando. ― Roland pensou que talvez aquele
outro novato, Todd, mas eu prefiro muito mais dividir meu fortúnio com você.
Todos nós devemos colaborar em algum momento. ―
Luce engoliu em seco. Ela não era uma piro. Mas ela já estava cheia de falar sobre o
seu passado; ela nem sequer quis se defender.
 ― Oh, espere até que Roland ouvir isso, ― Arriane disse, jogando seu ancinho para
baixo. ― Você é como o nosso sonho se tornando real. ―
Luce abriu a boca para protestar, mas Arriane já tinha ido. Perfeito, Luce pensou,
ouvindo o barulho dos sapatos de Arriane andando pela lama. Agora era só uma
questão de minutos antes de essas palavras viajarem por todo o cemitério até
chegar a Daniel.
     Sozinha novamente, ela olhou para a estátua. Mesmo ela já tendo limpado
uma enorme pilha de musgo e palha, o anjo parecia mais sujo do que nunca. Todo o
projeto parecia tão inútil. Ela duvidava que alguém chegasse a visitar este lugar, de
qualquer maneira. Ela também duvidava que qualquer dos outros detentos ainda
estivesse trabalhando.
Seus olhos apenas caíram em Daniel, que estava trabalhando. Ele estava usando
muito diligentemente uma escova de aço para esfregar alguns mofos da inscrição
em bronze em uma tumba. Ele tinha até mesmo levantado as mangas de seu
suéter, e Luce podia ver seus músculos tensos enquanto ele trabalhava. Ela
suspirou, e - ela não podia fazer nada quanto a isso - inclinou seu cotovelo contra o
anjo de pedra para assisti-lo.
Ele sempre trabalhou duro.
Luce rapidamente balançou a cabeça. De onde isso tinha vindo? Ela não tinha ideia
do que isso significava. E no entanto, tinha sido ela quem pensara sobre isso. Era o
tipo de frase que por vezes formavam-se em sua mente antes que ela caísse no
sono. Sussurros incompreensíveis que ela nunca podia conectar a qualquer coisa
fora de seus sonhos. Mas aqui estava ela, bem acordada.
Ela precisava se segurar nessa coisa sobre o Daniel. Ela o conhecia há um dia, e já
podia sentir-se deslizando para um lugar muito estranho e desconhecido.
― Provavelmente é melhor ficar longe dele, ― disse uma voz fria atrás dela.
Luce virou ao redor para encontrar Molly, na mesma pose em que ela a achou
ontem: as mãos nos seus quadris, as narinas com piercing queimando. Penn tinha
dito a ela que a surpreendente decisão da Sword & Cross que permitia piercings
faciais veio da própria relutância do diretor de remover o brinco de diamante que
ele tinha em sua orelha.
 ― De quem? ― ela perguntou a Molly, sabendo que ela tinha soado estúpida.
Molly revirou os olhos. ― Simplesmente confie em mim quando digo que ter uma
queda por Daniel seria uma ideia muito, muito ruim. ―
     Ela sabia que o sol estava atrás de uma nuvem. Se ela pudesse quebrar o seu
olhar, ela podia olhar para cima e ver isso por si mesma. Mas ela não conseguia
olhar para cima, ela não conseguia desviar o olhar, e por alguma razão, ela tinha
que apertar os olhos para vê-lo. Era quase como se Daniel estivesse criando sua
própria luz, como se ele estivesse a cegando. Um barulho oco encheu os seus
ouvidos, e seus joelhos começaram a tremer.
Ela queria pegar seu ancinho e fingir que ela não tinha o visto chegando. Mas era
tarde demais para se fingir de descolada.
 ― O que ela disse para você? ― ele perguntou.
 ― Hum, ― ela deu uma evasiva, forçando seu cérebro a criar uma mentira sensata.
Não encontrando nada. Ela estalou os nós dos dedos.
Daniel colocou sua mão sobre a dela. ― Eu odeio quando você faz isso. ―
Luce empurrou-o para longe instintivamente. A mão dele sobre a dela tinha sido
tão rápida, e ainda assim ela sentia o seu rosto corar. Ele quis dizer que isso era uma
implicância dele, que o estalo de qualquer um iria incomodá-lo, certo? Porque dizer
que ele odiava quando ela fazia isso implicava que ele já tinha visto ela fazer isso
antes. E ele não poderia ter visto. Ele mal a conhecia.
Então por que isso parecia com uma discussão que eles já tinham tido antes?
 ― Molly me disse para ficar longe de você. ― ela disse finalmente.
Daniel inclinou a cabeça de lado a lado, parecendo considerar isto. ― Ela
provavelmente está certa. ―
Luce estremeceu. Uma sombra pairou sobre eles, escurecendo o rosto do anjo
apenas tempo suficiente para deixar Luce preocupada. Ela fechou os olhos e tentou
respirar, rezando para que Daniel não pudesse dizer que algo estava estranho.
Mas o pânico estava crescendo dentro dela. Ela queria correr. Ela não podia correr.
E se ela se perdesse no cemitério?
Daniel seguiu o seu olhar para o céu. ― O que foi? ―
 ― Nada. ―
 ― Então você vai fazer isso? ― ele perguntou, cruzando os braços sobre o peito, um
desafio.
 ― O que? ― ela disse. Correr?
Daniel deu um passo na direção dela. Agora ele estava a menos de trinta
centímetros de distância. Ela prendeu a respiração. Manteve o corpo
completamente imóvel. Ela esperou.
 ― Você vai ficar longe de mim? ―
Isso quase parecia como se ele estivesse flertando.
Mas Luce estava completamente fora de ordem. Sua testa estava molhada de suor,
e ela apertou sua têmpora entre dois dedos, tentando recuperar a posse de seu
corpo, tentando pegá-lo de volta do controle dele. Ela estava totalmente
despreparada para flertar de volta. Isto é, se o que ele estava fazendo era realmente
flertar.
Ela deu um passo para trás. ― Eu acho que sim. ―
 ― Eu não ouvi você, ― ele sussurrou, levantando uma sobrancelha e dando um
passo para mais perto.
Luce recuou novamente, para mais longe dessa vez. Ela praticamente bateu na
base da estátua, e pôde sentir o pé de pedra arenosa do anjo raspando em suas
costas. Uma segunda sombra, mais escura e mais fria, voou sobre eles. Ela poderia
ter jurado que Daniel estremeceu junto com ela.
E então o gemido profundo de algo pesado assustou os dois. Luce ofegou enquanto
o topo da estátua de mármore balançava em cima deles, como um galho de árvore
balançando ao vento. Por um segundo, parecia pairar no ar.
Luce e Daniel ficaram olhando para o anjo. Ambos sabiam que o seu caminho era
para o chão. A cabeça do anjo inclinou-se lentamente em direção a eles, como se
estivesse rezando - e depois a estátua inteira pegou velocidade enquanto começou
a ser arremessada para baixo. Luce sentiu as mãos de Daniel envolverem sua
cintura instantaneamente, firmemente, como se ele soubesse exatamente onde ela
começava e onde terminava. A outra mão cobriu a cabeça dela e forçou-a para
baixo bem quando a estátua caiu sobre eles. Exatamente onde eles estavam. Ela
caiu com uma queda maciça - de cabeça na lama, com os pés ainda repousando
sobre a base, deixando um pequeno triângulo embaixo, onde Daniel e Luce
estavam agachados.
      Eles estavam ofegantes, nariz com nariz, os olhos de Daniel assustados. Entre
os seus corpos e a estátua existia apenas alguns centímetros de espaço.
 ― Luce? ― ele sussurrou.
Tudo o que ela podia fazer era acenar.
Seus olhos se estreitaram. ― O que você viu? ―
Em seguida uma mão apareceu e Luce sentiu-se sendo puxada para fora do espaço
embaixo da estátua. Houve uma raspagem nas suas costas e em seguida uma
lufada de ar. Ela viu o lampejo de luz do dia novamente. A turma da detenção
estava pasma, exceto a Sra. Troz, que olhava com raiva, e Cam, que ajudou Luce a
ficar de pé.
― Você está bem? ― Cam perguntou, correndo os olhos sobre ela procurando por
arranhões e hematomas e tirando a sujeira de seu ombro. ― Eu vi a estátua caindo e
eu corri para tentar pará-la, mas já era... Você deve ter ficado tão apavorada. ―
Luce não respondeu. Apavorado era apenas uma parte de como ela se sentia.
Daniel, já de pé, nem sequer se virou para ver se ela estava bem ou não. Ele apenas
foi embora.
O queixo de Luce caiu enquanto o observava ir, enquanto observava todos os
outros parecem não se importar que ele tivesse ido embora.
 ― O que você fez? ― Sra. Troz perguntou.
 ― Eu não sei. Em um minuto, nós estávamos lá ― - Luce olhou para a Sra. Troz ― –
hum, trabalhando. Quando me dei conta, a estátua simplesmente caiu. ―
A Albatroz abaixou-se para examinar o anjo despedaçado. Sua cabeça tinha
rachado no meio em uma linha reta. Ela começou a murmurar algo sobre as forças
da natureza e pedras antigas.
Mas foi a voz no ouvido de Luce que ficou com ela, mesmo depois de todos os
outros terem voltado ao trabalho. Foi Molly, a apenas alguns centímetros de seu
ombro, que sussurrou: ― Parece que alguém deve começar a ouvir quando eu dou
conselhos. ―

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