sábado, 1 de dezembro de 2012

Capítulo 15 (Beijada por um Anjo)


Lacey voltou a encontrar Tristan naquela tarde. Ela o chamou, assustando– o quando andava pelo cume da
montanha. Olhou para cima e a viu sentada em uma árvore.
– Bela vista, não é mesmo? – disse Lacey.
Tristan concordou com a cabeça e olhou novamente para a ladeira coberta de pedras. O terreno tinha uma
queda íngreme de cerca de 600 a 900 metros. Lembrava– se de ter visto uma vez, no começo da primavera, os
trilhos prateados e o teto da estação de trem lá embaixo, no vale, mas agora tudo estava escondido. Dava para
ver apenas pequenos trechos azuis do rio em meio às árvores. – Não sei por que me sinto sempre atraído para
esse lugar.
Lacey inclinou a cabeça. – Tenho certeza de que não tem nada a ver com o fato de Ivy morar aqui – disse
sarcasticamente.
–  Como você sabe sobre Ivy?
A garota desceu da árvore com a mesma agilidade de um gato.
–  Li sobre ela, é claro – Lacey caminhou ao lado dele. – Li tudo sobre o acidente. Tenho o hábito de passar
pela estação toda manhã para ler o jornal com os viajantes. Não gosto de ficar sem saber as últimas fofocas.
Além disso, me ajuda a saber  a data correta.
–  Hoje é sábado, dez de julho – disse Tristan.
–  Pénn! – imitou o som de uma campainha de jogos quando a pessoa erra a resposta e arrancou um galho
de árvore. – Terça–  feira, doze de julho.
–  Não pode ser – disse Tristan. Esticou o braço, mas não consegui arrancar a folha, muito menos um galho.
–  Você foi pego pela escuridão nos últimos dias?
–  Ontem à noite – respondeu.
–  Está mais para três noites atrás. Isso vai acontecer, mas você vai acabar ganhando força e precisando cada
vez menos de descanso. Exceto, é claro, quando fizer coisas complicadas.
–  Coisas complicadas. Tipo o quê?
Esperou até que estivesse prestando atenção totalmente nela e disse: –  Olhe para mim.
–  O que você acha que estou fazendo?
–  Vá um pouco para trás e olhe com mais atenção.  O que está faltando em mim?
–  Você promete não puxar meu cabelo?
Olhou com cara feia para ele. Era uma boa careta, mas não durou muito tempo. – Ela estava só atuando.
–  Olhe para aquela gata.
Ele olhou por cima dos ombros. – Ella!
–  Olhe para a grama ao lado da gata e olhe para a grama ao meu lado.
Então, percebeu. – Você não tem sombra.
–  Nem você.
–  Você está falando alto. Reconheci o som e vi Ella virar as orelhas na sua direção.
–  Agora veja a grama atrás de mim – disse, fechando os olhos.
Lentamente, como água gotejando pelo gramado, sua sombra começou a tomar forma. Ao mesmo tempo,
com a mesma lentidão, ela perdia a sua capacidade de brilhar. Ella andou ao redor dela cuidadosamente uma vez,
duas vezes. Depois, esfregou– se na perna d Lacey e não caiu.
–  Você está sólida! Sólida! Qualquer um pode ver você! Ensine– me a fazer isso. Se puder ficar sólido, Ivy
vai me ver, ela vai saber que estou aqui por causa dela, vai saber que...
–  Epa! – interrompeu Lacey e sua voz projetada começou a diminuir. – Já já eu volto.
Sua sombra desapareceu e ela também – completamente.
– Lacey? – chamou Tristan, girando o corpo. – Lacey, onde está você? Você está bem?
–  Só estou cansada – a voz dela era fraca. Seu corpo apareceu novamente, mas era quase translúcido.
Deitou– se em posição fetal no chão. – Só me dê uns minutinhos.

Tristan andava de um lado para o outro, olhando para ela com preocupação.
De repente, espreguiçou– se voltando a ser ela mesma novamente. – É assim – disse. – Para anjos
temporários,  como eu e você, querido, é preciso toda energia que temos e muita experiência para se materializar
completamente. Para falar ao mesmo tempo, bem, só um profissional faz isso.
–  Ou seja, você.
–  Em geral só materializo uma parte de mim, como meus dedos, quero fazer alguma coisa – puxar cabelos
ou jogar para o alto a crítica de um filme.
–  Me ensine! – disse Tristan desesperadamente. – Por favor, me ensine como fazer isso.
–  Talvez.
Tinham ido parar em um lugar que dava vista completa para a parte de trás da casa. Tristan olhou para a
janela do sótão, a que dava para a sala de música de Ivy.
–  Então, é aqui que a moça mora. Creio que deveria achar revigorante ver um cara se fazer completamente
de bobo por causa de uma garota.
Viu de longe os lábios de Lacey se contorcerem.
–  Não sei por que você deviria pensar muito sobre qualquer coisa. Isso não tem nada a ver com você. Você
vai me ensinar?
–  Ah, por que não? Tenho tempo sobrando.
Esconderam– se por entre as árvores, sentando– se, Ella os seguia lentamente. Lacey começou a acariciar a
gata e Ella a recompensou com um pequeno, porém educado, ronronado. Quando Tristan olhou de perto, pôde
ver que as pontas dos dedos dela não brilhavam, pareciam bem sólidas.
–  Tudo o que requer é concentração. Intensa concentração. Olhe para as pontas dos seus dedos. Olhe para
elas como uma maneira de manter o foco. Quase desejando que ganhem vida.
Tristan esticou a mão na direção de Ella. Tentou deixar a mente livre de tudo, focando apenas nas pontas de
seus dedos. Sentiu uma leve sensação de formigamento, o tipo de sensação que costumava sentir quando seu
braço dormia. A sensação ficou cada vez mais forte em seus dedos. Depois, sentiu a mesma coisa em sua cabeça,
mas não gostou dessa sensação. Começou a ficar fraco. Seu corpo todo, menos seus dedos, parecia estar
derretendo. Recuou.
Lacey morreu de rir. – Perdeu a coragem.
–  Vou tentar de novo.
–  Melhor descansar um pouco.
–  Não preciso descansar!
Depois de ser forte e esperto a vida toda, professor de natação, monitor de matemática, aceitar ter aulas com
essa sabe– tudo sobre como afagar um gato era humilhante!
–  Parece que não sou a única aqui com o ego do tamanho do mundo – observou Lacey com satisfação.
Tristan ignorou o comentário. – O que está acontecendo comigo? – perguntou.
–  Toda sua energia foi reenviada para as pontas dos seus dedos, fazendo com que o restante enfraqueça,
como se você estivesse dissolvendo, ou algo assim.
Ele concordou com a cabeça.
– Assim que você adquirir mais força, isso não será problema. Se você algum dia chegar ao ponto de se
materializar por inteiro, projetando sua voz, embora, francamente, duvide que aconteça, você aprenderá a sugar
a energia do ambiente. É o que eu faço, sugo, bem ali.
–  Você fala como se fosse um alienígena em um filme de terror ou ficção científica.
Ela concordou com a cabeça –
Lips of Planet Indigo
. Sabe, cheguei bem perto de ganhar um Oscar nesse filme.
Engraçado, Tristan se lembrava desse filme como um fracasso de bilheteria.
–  Quer tentar novamente?
Tristan esticou o braço. De certa forma, era como encontrar o pulso, como deitar na cama para ouvir seu
próprio batimento cardíaco: de repente, tomou consciência da energia que caminhava pelo seu corpo e a
direcionou, dessa vez de forma mais calma e tranqüila, para a ponta de seus dedos. Eles pararam de brilhar.
Então, pôde senti– la. Seu pelo macio, sedoso e profundo. Ella começou a ronronar mais alto enquanto ele
passava a mão nas partes do corpo em que ela mais gostava de ser acariciada. Quando passou a mão na sua
barriga o  motor  dentro dela parecia mais alto do que a hélice de um avião pequeno.
Então, perdeu o toque. A luz do sol tornou– se cinza. Ella parou de ronronar. Tudo o que conseguiu fazer
foi ficar parado e esperar, sugando o ar ao redor como alguém faz para tentar recuperar o fôlego, apesar de não
ter nenhum.
–  Excelente! Não fazia idéia de que era tão boa professora! – disse Lacey

A cor voltou à grama e às árvores. O céu voltou a ficar azul. Apenas Ella, ficando de pé e fungando, dava
sinais de que havia alguma coisa errada.
Tristan virou– se para Lacey, exausto. – Não vou conseguir tocá– la. Se isso é tudo que consigo fazer, não
vou conseguir tocá– la.
–  Está falando da garota de novo?
–  Você sabe o nome dela?
–  Ivy. Símbolo de fé e de redenção. Há alguma mensagem que quer dar a ela?
–  Tenho que convencê– la do meu amor.
–  Só isso? – Lacey fez uma cara. – Só isso?
–  Essa provavelmente é a minha missão.
–  Ah, por– fa– vor!
–  Sabe, estou ficando bem cansado do seu sarcasmo.
–  Eu também não curto muito a sua idiotice. Tristan, você é bem ingênuo se acha que o Diretor Número
Um ia se dar ao trabalho de fazer de você um anjo só para que pudesse convencer uma garota sobre seu amor.
As missões nunca são simples assim, nunca são tão fáceis.
Queria briga com ela, mas ela tinha parado com a encenação melodramática. Estava séria.
–  Ainda não entendi. Como devo saber qual é a minha missão?
–  Você observa. Ouve. Fica próximo das pessoas pelas quais se sente atraído, pois provavelmente são as
pessoas para as quais você foi mandado de volta para ajudar.
Tristan começou a imaginar quem na sua vida parecia precisar de ajudar.
– É tipo como ser detetive. A dica é não se focar em quem fez, mas em
quem– fez– o– quê
. Com freqüência,
você não sabe qual é o problema que tem de resolver.  Às vezes, o problema ainda nem aconteceu, você tem que
salvar a pessoa de algum desastre que vai acontecer no futuro.
–  Você está certa. Não é simples.
Passaram pela quadra de tênis e dirigiram– se para a frente da casa. Ella, que os estava seguindo, passou na
frente deles e subiu os degraus.
–  Mesmo que algo desse tipo aconteça no futuro, à chave está sempre escondida em seu passado.
Felizmente, não é difícil viajar no tempo.
Tristan arqueou as sobrancelhas. – Viajar no tempo?
Lacey sentou no carro de Gregory, que estava estacionado na garagem.
–  Viajar no tempo na sua mente, quero dizer. Há muitas coisas das quais nos esquecemos se pensarmos
somente no presente. Podem haver pistas às quais não prestamos atenção no passado, mas ainda estão lá e
podem ser encontradas novamente, se voltarmos no tempo em nossas mentes.
Enquanto falava, Lacey se espreguiçou no capô da BMW. Para Tristan, ela parecia a Morticia Addams
fazendo um anúncio de carro.
–  Talvez eu te ensine a viaja no tempo também. É claro que viajar no tempo, na mente de outra pessoa, não
é algo que um amador como você consiga fazer. Tudo isso é muito perigoso – acrescentou. – Ah, anime– se
Chorão!
–  Não estou prá baixo. Só estou pensando.
–  Então, olhe pra cima.
Tristan olhou para a porta da frente. Ivy estava lá, olhando em direção à garagem, como se estivesse
esperando alguém.
Esta é a minha dama! Oh, eis o meu amor! Se ela o pudesse saber
! – disse Lacey.
Tristan não tirava os olhos Ivy. – O quê?
–  Romeu e Julieta, ato dois, cena dois. Fiz um teste para essa peça, sabia? Para Shakespeare no Parque. O
diretor de elenco me queria.
–  Legal – disse Tristan sem prestar atenção. Queria que ela o deixasse sozinho agora. Tudo o que queria era
estar sozinho, para se alegrar com a presença de Ivy, Ivy saindo na varanda, Ivy com seus cabelos dourados
movimentando– se graciosamente no alto da escada para pegar Ella.
–  O diretor disse que meu talento era o tipo pelo qual as pessoas morriam.
– Demais! – disse Tristan. Se os gatos pudessem falar, pensou. Diga a ela, Ella, diga o que você sabe.
–  O produtor, uma pessoa que não entende a verdadeira arte, queria algu m que tivesse um rosto   mais
clássico , algu m que não tivesse um sotaque tão nova – iorquino.
Ivy ainda estava de pé na varanda, fazendo carinho em Ella e olhando na direção dele. Talvez ela ainda
acreditasse, Tristan pensou. Talvez tivesse uma vaga sensação da sua presença.

– Esse produtor está em Nova York por algumas semanas, terminando um show. Acho que deveria fazer
uma visitinha a ele.
– Ótimo! – disse Tristan, virando a cabeça junto com Ivy, ouvindo o ronco do motor de um carro pequeno
subindo o topo da montanha.
– Acho que mataria, causaria um acidente de trânsito que o mataria na hora – disse Lacey.
– Maravilha!
–  Você é patético!Você é mesmo patético! Era assim tão reticente quando era vivo? Fico imaginando como
era quando seus hormônios ainda bombeavam em seu corpo.
Ele virou– se para ela com raiva. – Veja! Você não é melhor que eu ! Estou apaixonado por Ivy. Nós dois
somos obcecados, então, cai fora.
Lacey não disse nada por um momento. Seus olhos alteraram– se só um pouquinho. Uma câmera não teria
captado a centelha de mágoa. Mas Tristan captou e, sabendo que dessa vez ela não estava atuando, arrependeu–
se do que disse.
– Sinto muito.
Lacey tinha saído de perto dele. Imaginou que ela iria embora a qualquer minuto, deixando– o tatear seu
caminho em direção à sua missão.
– Lacey, desculpe.
– Ah, tudo bem – disse.
–  É que...
–  Quem são essas? Mimi e Cocó vieram dividir o luto com a sua dama?
Virou– se e viu Beth e Suzanne saindo do carro. As duas estavam de preto, mas Suzanne sempre gostou de
preto, especialmente o preto justinho, que era exatamente o que estava usando,um vestido tomara que caia
muito maneiro. Beth, por outro lado, estava usando roupas típicas de Beth: um macacão preto, largo, com
pequenas flores brancas estampadas, cuja bainha ondulada estava a alguns centímetros acima de sua sandália
vermelha de plástico.
– São as amigas dela, Beth e Suzanne.
– Aquela ali é definitivamente um radar – disse Lacey.
–  Radar?
– Aquela que parece estar usando uma cortina de banheiro.
– Beth. Ela é escrita.
– O que eu te disse? Um radar inato.
Tristan viu Ivy cumprimentar suas amigas e levá– las para dentro da casa.
– Vamos – disse Lacey, passando na frente dele. – Isso vai ser divertido.
Ele hesitou. Já tinha visto esse tipo de diversão um pouco antes.
– Você quer ou não quer dizer a ela que a ama? Isso vai ser um bom treino para você, Tristan. Vai dar certo.
A garota é um radar total. Bons radares não precisam nem acreditar. São receptivos a todos os tipo de coisas,
uma dessas coisas são os anjos. Você pode falar através dela, pelo menos, você pode escrever através dela. Você
sabe o que é escrita automática, não sabe?
Já tinha ouvido falar. Os médiuns faziam esse tipo de coisa, suas mãos supostamente escreviam diante da
vontade de outra pessoa, enviando mensagens dos mortos.
– Quer dizer que Beth é como um médium?
– Um médium sem treinamento. Um radar natural. Ela vai entrar em sintonia com você, se não for hoje, será
amanhã. Você só tem de estabelecer a ligação e entrar na mente dela.
– Entrar na mente dela?
– É bem simples. Tudo o que precisa fazer é pensar exatamente como ela, ver o mundo como Beth vê, como
Beth sente, amar quem ela ama, sentir seus mais profundos desejos.
– De jeito nenhum  –  disse Tristan.
– Em resumo, você tem que adotar o ponto de vista do radar e daí entrar bem na mente dele.
– Obviamente, você não sabe como funciona a mente da Beth. Você nunca viu suas histórias. Ela escreve
esses romances tórridos.
– Oh... quer dizer, do tipo que o amante olha com desejo para sua amada, seus olhos cheios de sentimentos,
seu coração doendo tanto que ele não pode ver nem ouvir mais ninguém?
– Exatamente.
Ela inclinou a cabeça para o lado e deu um sorriso forçado.
– Você tem razão. Você e Beth são muito diferentes.
Tristan não disse nada.

– Se você amasse Ivy, você tentaria. Tenho certeza de que os amantes das histórias de Beth não iriam deixar
que um desafio desses fosse um empecilho para eles.
– E o Philip? Ele é irmão da Ivy. Ele me vê brilhar.
– Ah! Encontrou alguém que acredita!
– Com certeza é um radar – disse Tristan.
– Não necessariamente. Não há nenhuma conexão real entre ser um radar e acreditar.
– Podemos tentar primeiro com ele?
– Claro, temos tempo sobrando – disse e entrou na casa.
Philip estava na cozinha fazendo
brownie
de micro– ondas. Na bancada ao lado da tigela, havia algumas
figurinhas de beisebol grudentas e um catálogo aberto na foto de crianças andando de bicicleta. Tristan estava
confiante. Tinha bastante familiaridade com esse ponto de vista.
– Fique atrás dele – aconselhou Lacey. – Se ele percebeu o brilho, vai se distrair. Vai começar a procura e
tentar entender. Vai se concentrar tanto no exterior que não vai deixar mais nada entrar.
Na verdade, ficar atrás de Philip ajudava– o de outras maneiras. Tristan leu as instruções na caixa por detrás
dos ombros de Philip.
Pensou em qual deveria ser o próximo passo e como deveria ser o aroma dos
brownies
enquanto assavam e
qual seria o gosto, quente e crocante, assim que saíssem do forno. Queria lamber a colher para sentir o gosto da
massa crua e líquida. Philip lambeu.
Tristan sabia quem ele era e, ao mesmo tempo, ele era outra pessoa também, da forma como fazia quando lia
uma boa história. Isso era fácil. – Philip, sou eu...
Bum! Tristan tropeçou para trás, como se estivesse andando por uma parede de vidro. Não tinha visto, não
tinha percebido, até dar com a cara nela. Ficou paralisado por alguns minutos.
– Às vezes fica bem difícil – observou Lacey. – Acho que está bem claro. Philip não quer deixar você entrar.
– Mas eu era amigo dele.
– Ele não sabe que é você.
– Se ele me deixasse conversar com ele, então saberia.
– Não é assim que funciona. Já te avisei. Estou ficando boa em perceber quais pessoas são radares e quais
não são. Pode tentar novamente, mas ele vai estar mais preparado dessa vez e vai ficar ainda mais forte. Você
não vai querer um radar que luta contra você. Vamos tentar a Beth.
Tristan virou– se. –Por que você não tenta a Beth?
– Sinto muito.
– Mas –   ele pensou rápido. –Você é tão boa atriz, Lacey. É por isso que essa s coisas vêm rapidamente para
você. A função de uma atriz é assumir um papel. As grandes atrizes, como você, não apenas imitam. Não, elas se
tornam a outra pessoa. É por isso que você se sai tão bem.
–  Boa tentativa. Mas a Beth é o seu radar e você tem de mandar a sua mensagem para ela. E você quem tem
que de fazer. É assim que funciona.
– Nunca parece funcionar do jeito que eu quero – ele reclamou.
– Você também percebeu isso. Suponho que saiba chegar ao quarto da sua dama.
Tristan mostrou o caminho até o quarto de Ivy. A porta estava entreaberta. Ella, que ainda os seguia,
empurrou a porta abrindo– a ainda mais, eles atravessaram a parede.
Suzanne estava sentada na frente do espelho de Ivy, remexendo uma caixa de jóias, experimentando colares e
brincos de Ivy. Ivy estava esparramada na cama, lendo alguns papéis, uma das histórias de Beth – imaginou
Tristan. Beth estava andando pelo quarto.
– Pelo menos arrume um lápis cravejado de jóias. Já que vai continuar usando– o no seu cabelo – disse
Suzanne.
Beth pegou o nó do seu cabelo, preso no alto da cabeça e tirou o lápis. –Esqueci.
– Você esta ficando cada vez pior, Beth.
– É tudo tão interessante. Courtney jura que sua irmãzinha está dizendo a verdade. E alguns dos rapazes
voltaram lá na capela e encontraram o casaco de uma das garotas pendurado no alto de um baluarte.
– As próprias garotas poderiam ter feito isso – salientou Suzanne.
– Hum, talvez – disse Beth, tirando um caderno da bolsa.
Lacey virou– se para Tristan. – Essa é a sua deixa. Ela está pensando sobre hoje de manhã. Não há uma
maneira mais fácil que essa para você.
Beth rabiscava em seu caderno. Tristan aproximou– se dela. Supondo que ela estava tentando imaginar a
cena, lembrou– se da forma como a capela parecia, partindo do brilho da luz do lado de fora para a vasta
escuridão interna. Viu as garotas ajeitando– se no altar. As histórias de Beth tinham um milhão de detalhes.

Lembrou– se dos pedaços de gesso do chão e imaginou como devia ser frio o chão em que as garotas estavam
sentadas com as pernas de fora, como suas peles deviam ficar arrepiadas se uma corrente de ar passasse pela
janela quebrada, ou como ficariam agitadas caso sentissem uma aranha em suas pernas.
Ele estava na cena, saindo fora de seu corpo e entrando...
– Opa! – ela não se fechou como Philip, mas ele foi retirado rapidamente e com firmeza. Beth levantou– se,
tomando distância, e olhando para o lugar em que estava escrevendo antes.
– Ela consegue me ver? – Tristan perguntou para Lacey. – Ela vê o meu brilho?
– Acho que não. Ela não está prestando atenção ao meu. Mas sabe que tem alguma coisa acontecendo. Você
chegou com muita força nela.
– Estava tentando pensar da mesma forma que ela, dando alguns detalhes. Ela adora detalhes.
– Você foi com muita sede ao pote. Ela sabe que tem alguma coisa errada. Recue um pouco.
Mas Beth começou a escrever novamente, descrevendo as garotas no círculo. Alguns dos detalhes de Tristan
estavam lá, não sabia se por sugestão dele ou pela imaginação dela, mas não conseguia resistir ao desejo de ir a
fundo.
Bum! Dessa vez ele bateu com tudo, foi tão forte que sentiu rebater para trás.
– Eu te avisei! – disse Lacey.
– Beth, você está tão agitada quanto um gato – disse Suzanne.
Ivy deu uma olhada na história de Beth. – Tão agitada quanto Ella, que tem agido de forma bem estranha
ultimamente.
Lacey fez não com o dedo para Tristan. – Ouça– me. Você tem que ir com calma. Imagine que Beth é uma
casa e você é um ladrão tentando invadir. Você tem de rastejar. Encontrar o que precisa no sótão, no
inconsciente dela, mas não perturbe a pessoa que mora no andar de cima. Entendeu?
Ele havia entendido, mas relutava em tentar novamente. A força da mente de Beth era muito maior do que a
de Philip.
Tristan sentia– se frustrado, incapaz de mandar o recado para Ivy. Ela estava tão perto, tão perto, e no
entanto... Podia atravessar sua mão sobre ela, mas não tocá– la. Deitar ao lado dela, mas nunca oferecer– lhe
consolo. Dizer algo para fazê– la sorrir, mas jamais ser ouvido. Não havia mais lugar para ele na vida dela. E
talvez fosse melhor para ela, mas havia vida após a morte para ele.
– Nossa! – disse Beth. – Nossa! Se é que posso dizer isso. Que tal essa primeira frase para a minha história?
Não havia mais lugar para ele na vida dela, e talvez fosse melhor para ela, mas havia vida após a morte para ele.
Tristan viu as palavras nas páginas como se estivesse segurando o caderno com suas próprias mãos. E
quando Beth se virou para olhar a foto dele na escrivaninha de Ivy, ele também se virou.
Se você soubesse, pensou.
Se você...
– ela escreveu. – Se
você, se você, se você...
– ela parecia ter empacado.
Se você.
– Se você o quê? – perguntou Suzanne.
– Não sei – respondeu Beth.
Tristan observava o quarto pelos olhos dela, como era bonito, como Ella olhava para ela, como Suzanne e
Ivy trocavam olhares, então deu de ombros.
Se eu me libertasse...
– parou de escrever e franziu a testa.
Ele conseguia sentir o espanto como se estivesse em sua própria mente.
– Ivy, Ivy, Ivy – disse. –
Se Ivy soubesse
.
– Beth, você está tão pálida. Você está bem? – disse Ivy.
Beth piscou várias vezes. – É como se alguém estivesse falando por mim.
Suzanne tirou sarro dela com um assobio peculiar.
– Não estou louca! –  disse Beth.
Ivy aproximou– se de Beth e olhou bem nos olhos dela; olhou bem nos olhos dele. Mas ele sabia que ela não
conseguiria ver.
Mas ela não conseguia ver
– escreveu Beth. Depois apagou e reescreveu, lendo em voz alta o que havia
produzido.
Não havia mais lugar para ele na vida dela, e talvez fosse melhor para ela, mas a vida após a morte era uma tristeza para ele.
Se ela pudesse libertá– lo dessa prisão de amor. Mas ela não sabia, ela não conseguia ver que a chave estava em suas mãos apenas
Beth ergue o lápis um pouco. – Estou com muita sorte!–  Exclamou Beth.
– Em suas mãos adoráveis, cuidadosas, carinhosas e gentis; mãos que seguravam,
Começou a escrever novamente.
curavam, nutriam esperanças...
Ah!Dá um tempo! Pensou Tristan.

– Cala a boca. – Beth falou para ele.
– O quê? – disse Ivy, arregalando os olhos.
– Você está brilhando.
Todas se viraram para Philip, que estava parado na porta do quarto de Ivy.
– Você está brilhando, Beth – disse Philip.
Ivy desviou o olhar. – Philip, já te falei que não quero mais ouvir essa história?
– Sobre eu estar brilhando? – perguntou Beth.
– Ele colocou essa história de anjos na cabeça – explicou Ivy. – Diz ver cores e coisas, e acha que são anjo.
Não agüento mais isso! Não quero mais ouvir falar nisso! Quantas vezes vou ter de te falar isso?
Ao ouvir as palavras dela, Tristan perdeu a esperança. Seus esforços o tinham levado além da exaustão; era a
esperança que o sustentava. E agora ela tinha ido embora.
Beth balançou a cabeça e ele saiu de dentro dela. Philip não tirou os olhos de Tristan enquanto ele foi para
perto de Lacey.
– Puxa! Com quem será que Philip aprendeu a falar sobre os anjos? – disse Suzanne, dando uma piscadinha
para Beth.
– Eles te ajudaram no passado, Ivy. Por que não podem te ajudar agora? – perguntou Beth, gentilmente.
– Eles não me ajudaram! Se os anjos fossem reais, se fossem nossos guardiões, Tristan estaria vivo! Mas ele se
foi. Como posso ainda acreditar nos anjos?
Cerrou os punhos. A expressão de revolta em seus olhos tinha se transformado em um verde intenso,
queimando de certeza, a certeza e que os anjos não existiam.
Tristan sentiu que estava morrendo por inteiro novamente.
Suzanne olhou para Beth e deu de ombros. Philip não disse nada. O formato de sua boca mostrava uma
expressão já conhecida.
– Monstrinho teimoso! – comentou Lacey.
Tristan concordou com a cabeça. Philip ainda acreditava.
Tristan sentiu um pouquinho de esperança voltar.
Então, Ivy tirou o saco plástico da sua lixeira. Começou a retirar seus anjos da prateleira.
– Não, Ivy!
Mas suas palavras não iriam detê– la.
Philip pegou no braço dela. – Posso ficar com eles?
Ela o ignorou.
– Posso ficar com eles, Ivy?
Tristan ouviu o vidro se quebrando dentro da sacola. Sua mão movia– se de forma inflexível e cruel, mas
ainda não havia pego Tony ou o anjo das águas.
– Por favor, Ivy.
Pelo menos ela parou. – Tudo bem, pode ficar com eles, mas você tem de me prometer que nunca mais vai
falar comigo a respeito de anjos novamente.
Philip olhou ponderadamente para os dois últimos anjos.
– Tudo bem, mas e se...
– Não – disse com firmeza – Esse é o combinado.
Ele pegou Tony e o anjo das águas com cuidado. – Prometo.
O coração de Tristan se despedaçou.
Quando Philip saiu, Ivy disse: Está ficando tarde e logo todo mundo estará aqui. É melhor eu ir trocar de
roupa.
– Ajudo você a escolher alguma coisa – disse Suzanne.
– Não. Vá descendo. Já já encontro vocês.
– Mas você sabe que eu gosto de escolher suas roupas...
– Estamos indo – disse Beth, empurrando Suzanne para a porta. – Leve o tempo que for preciso. Se os
rapazes chegarem, faremos sala para eles – fechou a porta atrás de Suzanne.
Ivy olhou para a fotografia de Tristan do outro lado do quarto. Estava paralisada como se fosse uma estátua,
as lágrimas rolavam pelo seu rosto.
Lacey disse suavemente: Tristan, você precisa descansar agora. Não vai conseguir fazer nada se não
descansar.
Mas ele não conseguia deixar Ivy. Colocou os braços ao redor dela. Ela passou direto por ele, dirigindo– se à
escrivaninha. Ele a abraçou novamente, mas ela só chorou ainda mais.

Então, Ella subiu delicadamente na escrivaninha. As mãos de Lacey a tinha colocado lá. A gata esfregou– se
no rosto de Ivy.
– Ah, Ella. Não sei como me desprender dele.
– Não faça isso! – implorou Tristan.
– No final, será exatamente o que ela deverá fazer – avisou Lacey.
– Sei que o perdi, Ella. Tristan está morto. Jamais poderá me abraçar novamente. Não pensa mais em mim.
Não me quer mais. O amor termina com a morte.
– Não termina! Eu vou te abraçar de novo! – disse Tristan. – Juro! E você verá que meu amor nunca vai
acabar.
– Você está exausto, Tristan.
– Vou te abraçar. Vou te abraçar para sempre!
–  Se você não descansar agora, vai ficar ainda mais confuso. Será difícil distinguir o real do irreal, ou de
conseguir sair da escuridão. Tristan. Me ouça...
Mas antes que ela conseguisse terminar de falar, a escuridão já havia tomando conta dele.


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