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- Bem –
disse Suzanne ao saírem do
cinema. – Nas últimas semanas
acho que assisti pelo
menos tantos
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filmes quanto Siskel e Ebert.
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– Não sei não
se eles assistiram esse aí – comentou
Will.
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– Foi o único
filme de que gostei até agora. Mal posso esperar para ver
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Bloodbath
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IV.
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Gregory olhou para Ivy e ela desviou o olhar.
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Foi Ivy quem sugeriu
ir ao cinema quando alguém disse que ela
precisava sair, o que era
algo que viviam
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falando ultimamente. Se pudesse ter escolhido, teria
ido a uma sessão tripla. Ocasionalmente, dispersava– se no
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meio da história,
mas mesmo que
isso não acontecesse, era
uma maneira de
parecer sociável sem
ter de
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conversar com os outros. Infelizmente, a parte mais
fácil da noite havia acabado de terminar. Ivy recuou quando
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saíram do friozinho e da escuridão do interior do
cinema para entrar na luz neon, quente da noite.
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– Pizza? – perguntou Gregory.
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– Adoraria uma
bebida! – disse Suzanne.
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– Bem, Gregory
está pagando, e como ele não me deixa encher o porta– malas – disse Eric.
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– Gregory está
pagando a pizza – disse Gregory.
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Cada vez
mais, pensou Ivy,
Gregory parecia um
conselheiro de
acampamento, cuidando de seu
estranho
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grupo, agindo de forma responsável. Era de se
estranhar que Eric estivesse tolerando essa situação – mas sabia
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que Gregory, Eric e Will tinham suas noitadas;
noitadas selvagens com garotas e rapazes.
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Nesses passeios em grupo, Ivy fazia um jogo consigo
mesma, vendo quanto tempo conseguia sair sem pensar
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em Tristan, ou pelo menos sem sentir terrivelmente a
falta dele. Concentrava– se em prestar atenção às pessoas
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ao seu redor. A vida continuava para eles, mesmo que
não continuasse para ela.
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Naquela noite, foram ao Celentano's, uma pizzaria
popular na região. As cadeiras balançavam e as toalhas de
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mesa eram quadrados
de papel rasgado
– uma placa
dizia: "Temos lápis
e gizes coloridos" –
mas os
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proprietários, Pat
e Dennis entendiam tudo de comida. Beth, que adorava tudo que levava
chocolate, adorava
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suas famosas pizzas de sobremesa.
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– O que vai ser
hoje? – provocou Gregory. – Brownies com queijo?
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Beth sorriu, duas covinhas cor– de– rosa apareceram em
seu rosto. Parte da beleza de Beth estava em sua
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transparência, pensou Ivy, na forma como sorria sem
apresentar defesas.
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– Vou pedir
algo diferente. Algo mais saudável. Já
sei! Queijo brie com damasco e pedaços de
chocolate
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amargo!
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Gregory
riu, pousando delicadamente a
mão no ombro
de Beth. Ivy
pensou na época
em que havia
se
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enganado com os comentários da Gregory, achando que
ele só queria tirar sarro dela e de suas amigas.
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Mas agora era bem fácil entendê– lo. Assim como seu
pai, tinha o gênio forte e precisava ser elogiado. No
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momento, tanto Beth quanto Suzanne o estavam
elogiando, Suzanne o observava com sagacidade por cima do
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cardápio.
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– Tudo o que
quero é peperoni – reclamou Eric.
– Só peperoni – disse, correndo o dedo pelo cardápio,
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como um rato frustrado que não consegue sair do
labirinto.
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Aparentemente, Will já tinha se decidido. Seu cardápio
estava fechado e havia começado a desenhar na toalha
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de mesa à sua frente.
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– Ora, ora, o
retorno de Rembrandt – disse Pat ao
passar pela mesa, apontando para Will. –
Almoça aqui
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três vezes por semana – explicou aos demais. – Gostaria de acreditar que é por causa da
comida, mas sei que é
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por causa do material de arte gratuito.
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Will abriu um sorriso, mas eram seus olhos que
sorriam mais que a boca, mostrando a
todos um castanho
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profundo. Seus lábios ergueram– se de leve só em um
canto da boca.
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Ele não era uma pessoa fácil de ser decifrada, pensou
Ivy.
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– O' Leary
– disse Eric quando a dona da pizzaria
saiu de perto. – Você tem uma queda
pela Pat ou o quê?
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– Gosta de
mulheres mais velhas – provocou
Gregory.
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– Uma em UCLA,
uma que foi para a Europa em vez de começar a faculdade...
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Will olhou para cima. – Somos amigos – disse e continuou desenhando. – E trabalho aqui do lado, na loja
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de fotografia.
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Isso era novidade para Ivy. Nenhum dos amigos de
Gregory trabalhava de verdade.
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– Will desenhou
o retrato de Pat – Gregory contou às
meninas.
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Estava pendurado na parede, um pedaço de papel barato
rascunhado com giz de cera. Mas o desenho de Pat
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estava bom, com seus cabelos lisos e macios, seus
olhos cor de mel e a
boca generosa – ele tinha captado a
|
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beleza dela.
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– Você é muito
bom! – disse Ivy.
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Will ergueu os olhos e eles se entreolharam por um
segundo, depois, continuou desenhando. Ela não sabia
|
|
dizer se ele era indiferente ou se era simplesmente
tímido.
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– Sabe, Will
– disse Beth. – Ivy fica se perguntando se você é
indiferente ou se é tímido mesmo.
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Will piscou.
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– Beth! – disse Ivy. – De onde você tirou isso?
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– Ué? Você não
se perguntou? Ou será que foi a Suzanne? Talvez tenha sido eu. Sei lá, Ivy,
minha mente é
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confusa. Estou com dor de cabeça desde que saí da sua
casa. Acho que preciso de cafeína.
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Gregory riu. –
A pizza com chocolate vai cuidar disso.
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Will disse a Beth: –
Quero deixar claro que não sou indiferente.
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– Dá um tempo
– disse Gregory.
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Ivy sentou– se na cadeira e olhou no relógio. Bem,
tinha conseguido ficar oito minutos inteiros pensando em
|
|
outras pessoas.
Oito minutos sem
imaginar como seria se Tristan
estivesse sentado ao
lado dela. Já era
um
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progresso.
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Pat anotou o pedido, depois procurou no bolso e
entregou um formulário para Will. –
Estou fazendo isso na
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frente dos seus
amigos, então não
há como dar
para trás, Will.
Andei guardando as
toalhas com os
seus
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desenhos –
planejo vendê– las quando seus quadros estiverem pendurados no
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Metropolitan Museum of Art
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. Mas se
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você não inscrever seu trabalho no festival, eu mesma
farei a inscrição.
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– Obrigada por
me dar uma escolha, Pat – disse,
secamente.
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– Você tem mais
formulários? Ivy precisa de um – disse
Suzanne.
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– Você também
está guardando meus desenhos nas toalhas?
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– A sua música,
garota. O festival de Stonehill é para todos os tipos de artistas. Eles
montam um palco para
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apresentações ao vivo. Isso vai ser bom para você.
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Ivy mordeu a língua. Estava cansada das pessoas
dizerem o que era bom para ela. Toda vez que diziam isso,
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|
tudo o que conseguia pensar era que Tristan era o bom
para ela.
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Dois minutos dessa vez, dois minutos sem pensar nele.
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Pat trouxe mais formulários junto com as pizzas. Os
outros ficaram lembrando dos festivais de arte de verão
|
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passados.
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– Gostei de ver
as dançarinas – disse Gregory.
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– Já fui uma
jovem dançarina – disse Beth.
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– Até que um
acidente prematuro encerrou sua carreira –
disse Suzanne.
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|
– Eu tinha seis
anos – disse Beth. – E tudo era tão mágico – rodopiando com minha fantasia de
lantejoulas
|
|
e um milhão de estrelas brilhando sobre a minha cabeça. Infelizmente, dancei
até cair do palco – Will soltou
|
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uma gargalhada. Era a primeira vez que Ivy o ouvia rir
dessa forma.
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– Você se
lembra quando Richmond tocou acordeão?
|
|
– O Sr.
Richmond? Nosso diretor?
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Gregory concordou com a cabeça. – O prefeito tirou o banquinho detrás dele.
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– Mas Richmond
sentou– se – disse Eric.
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– Aí!
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Ivy riu junto
com todos os
colegas, apesar de estar
atuando a maior parte
do tempo. Sempre
que algo a
|
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interessava ou a fazia rir, era possível prender sua
atenção no primeiro minuto, e depois el a pensava, tenho que
|
|
contar para Tristan.
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|
Quatro minutos dessa vez.
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Will desenhava cenas engraçadas na toalha de mesa:
Beth rodopiando na ponta dos pés, Richmond com as
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pernas
para cima. Montava
a cena como
se fosse uma
história em quadrinhos.
Suas mãos eram rápidas,
seu
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|
traçado era firme e seguro. Ivy observou com interesse
por alguns minutos.
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|
Depois
Suzanne soltou um suspiro. Ivy olhou
para o lado, mas o rosto
de Suzanne era
uma máscara de
|
|
cordialidade. –
Lá vem uma amiga sua – disse a
Gregory.
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|
chamava – a
garota com quem Ivy havia conversado no dia em que tinha visto Tristan nadar
pela primeira vez.
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E ela estava com Gary.
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|
Gary
olhava para Ivy, depois
para Will, que estava
sentado ao lado dela, depois
para Eric e Gregory. Ivy
|
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estremeceu. Não era um encontro, mas mesmo assim, Gary
a encarava de forma acusadora
|
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– Oi, Ivy.
|
|
– Oi.
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– Está se
divertindo? – perguntou.
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|
Ela brincou com um giz de cera, depois balançou a
cabeça. – Sim.
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|
– Faz tempo que
não te vejo.
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– Eu sei
– disse, apesar de que ela
o tinha visto – uma vez
no shopping e outra vez na
cidade, mas se
|
|
escondeu rapidamente na primeira porta que encontrou.
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– Saindo muito?
|
|
– Bastante,
acho.
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|
Cada vez que o via, esperava que Tristan estivesse ao
lado dele.
|
|
Toda vez sentia a mesma dor novamente.
|
|
– Achei que
estivesse. A twinkie me falou.
|
|
– Algum
problema? – perguntou Gregory.
|
|
– Estava
falando com ela e não com você –
respondeu Gary friamente. – E
só estava querendo saber o que
|
|
ela tem feito –
mudou o peso do corpo e continuou. –
Os pais do Tristan perguntaram de você outro dia.
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|
Ivy abaixou a cabeça.
|
|
– Eu visito às
vezes.
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– Que bom!
– disse. Havia prometido a si mesma
uma centena de vezes que iria vê– los.
|
|
– Eles se
sentem sós – disse Gary.
|
|
– Acredito que
sim – disse, desenhando pequenas
letras "x" com o giz de cera.
|
|
.– Eles gostam
de falar sobre o Tristan.
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|
Ela concordou com a cabeça sem dizer nada. Não podia
voltar àquela casa, não podia! Soltou o lápis.
|
|
– A sua foto
ainda está no quarto dele!
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|
Os olhos dela estavam secos. Mas sua respiração estava
irregular. Tentou inspirar e expirar para contr olá– la,
|
|
a fim de que ninguém percebesse.
|
|
– Tem um recado
embaixo da sua foto – a voz de Gary
parecia um riso trêmulo. – Você sabe
como são os
|
|
pais de Tristan. Sempre respeitaram o filho e a sua
privacidade. Até hoje eles ainda não leram, mas sabem que a
|
|
letra é sua, portanto, guardaram. Acham que é algum
tipo de bilhete de a mor e que deveria ficar junto com a
|
|
fotografia.
|
|
O que ela havia escrito? Nada valioso o suficiente
para ser guardado. Apenas recados para confirmar a hora
|
|
que se encontrariam para a próxima aula. E ele
guardou.
|
|
Ivy tentou controlar as lágrimas. Jamais deveria sair
com os colegas naquela noite. Não dava para fingir por
|
|
tanto tempo.
|
|
– Seu cretino!
– era a voz de Gregory.
|
|
– Está tudo bem
– disse Ivy.
|
|
– Saia daqui,
cretino, antes que eu saia com você! –
ordenou Gregory.
|
|
– Está tudo
bem – e, para ela, estava mesmo. Gary
não conseguia controlar seus sentimentos da mesma
|
|
forma que ela não conseguia.
|
|
– Falei para
você, Gary – disse Twinkie. – Ela não é do tipo que usa preto por um ano.
|
|
A cadeira de Gregory caiu quando se levantou e ele a
chutou para longe.
|
|
Dennis
Celentano o pegou
antes que chegasse
ao outro lado
da mesa –
Qual o problema
com vocês,
|
|
rapazes?
|
|
Ivy sentou–
se com a
cabeça baixa. Antes teria
rezado aos anjos pedindo forças, mas não conseguia
mais
|
|
fazer
isso. Controlou– se,
colocando seus braços
ao redor de
si mesma. Fechou–
se para todo
tipo de
|
|
pensamento, todo tipo
de sentimento, bloqueou as palavras, com raiva, que surgiam à sua
volta. Entorpecida,
|
|
ficaria entorpecida; se pudesse manter o torpor para
sempre.
|
|
Por que não havia
morrido no lugar dele? Por que as coisas tinham acontecido daquela forma? Tristan era
|
|
tudo que seus pais tinham. Era tudo que ela queria.
Ninguém o substituiria. Ela deveria ter morrido, não ele!
|
|
De
repente, o ambiente ficou
silencioso, um silêncio mórbido à
sua volta. Havia dito aquilo em
voz alta?
|
|
Gary tinha ido
embora. Não ouvia
nada além do
lápis correndo pelo
papel. A mão
de Will movia–
se
|
|
rapidamente, com o traçado cada vez mais forte e mais
certo do que antes.
|
|
Ivy observava com fascinação. Finalmente, Will afastou
a mão. Olhou para os desenhos. Anjos, anjos, anjos.
|
|
Um anjo que parecia Tristan com os braços envoltos
nela de forma amorosa.
|
|
Sentiu a fúria dominando seu corpo. – Como você ousa! Como você ousa, Will!
|
|
Seu olhar cruzou com o dela. Havia pânico e confusão
em seus olhos. Mas ela não recuou. Não sentia nada
|
|
além da raiva.
|
|
– Ivy, não sei
porque... Não quis... Nunca quis, Ivy, juro que nunca...
|
|
Ela rasgou o papel.
|
|
Ele olhava incrédulo. – Jamais magoaria você – disse, em voz baixa.
|
|
Tinha sido tão fácil. Parecia que em menos de um
milionésimo de segundo havia conseguido entrar em Will.
|
|
Não houve dificuldade
em se comunicar,
os desenhos dos
anjos vieram rapidamente, como
se suas mentes
|
|
fossem uma só. Ele havia compartilhado com Will a
surpresa de ver a imagem que seu lápis havia desenhado, se
|
|
ao menos Will pudesse torná– los verdadeiros para Ivy,
sua Ivy, que precisava de consolo.
|
|
– O que faço
agora, Lacey? Como posso ajudar Ivy? Se tudo que faço a magoa ainda mais?
|
|
Mas Lacey não estava por perto para aconselhá– lo.
|
|
Tristan vagou pelas ruas da silenciosa cidade depois
que Ivy e seus amigos saíram. Precisava pensar. Estava
|
|
quase com medo de
tentar novamente. Estatuetas de
anjos, desenhos de anjos, só o
fato de mencionar anjos
|
|
provocava em Ivy nada mais do que dor e raiva – mas era isso que ele era agora, um anjo.
|
|
Seus poderes recém– adquiridos eram inúteis,
completamente inúteis. E ainda havia a questão da sua missão,
|
|
da qual ele não fazia a mínima idéia. Era tão difícil
pensar nisso, quando tudo o que
conseguia pensar era em
|
|
uma forma de se aproximar de Ivy.
|
|
– O que faço
agora Lacey? – perguntou novamente.
|
|
Não sabia
se Lacey estava sendo exageradamente
dramática quando havia dito que sua missão poderia ser
|
|
salvar alguém de algum desastre. Mas, e se estivesse
certa? E se ele estivesse tão preso à sua dor e à de Ivy que
|
|
estava fracassando com alguém?
|
|
Lacey disse que
tinha que ficar perto das pessoas que
conhecia e por isso, assim que saiu da escuridão, foi
|
|
procurar
por Gary e o
seguiu até o
Celentano's naquela noite.
Ela também havia dito
a ele que sua missão
|
|
poderia estar no
passado, algum problema que
tivesse visto, mas que não tivesse
dado importância na época.
|
|
Precisava aprender como viajar de volta no tempo.
|
|
Imaginava o tempo como uma teia rodopiando em meio aos
pensamentos, sentimentos e ações todos juntos,
|
|
uma teia que o segurava até romper de forma súbita.
Parecia que o ponto de partida mais fácil seria seu ponto de
|
|
saída. Será que ajudaria se ele fosse até lá?
|
|
Andou rapidamente pela sinuosa estrada escura. Era bem
tarde e não havia carros na estrada. Uma estranha
|
|
sensação, a sensação de que, a qualquer momento um cervo saltaria na frente dele, fez
com que diminuísse o
|
|
ritmo, mas só por pouco tempo.
|
|
Foi estranho com que facilidade encontrou o lugar e a
certeza que sentia de que aquele era o lugar, pois cada
|
|
curva da estrada parecia exatamente a mesma. A lua,
apesar de estar cheia, mal conseguia
iluminar as pesadas
|
|
copas das árvores. Não havia o mínimo clarão de luz
ali, só a iluminação ambiente, uma espécie de névoa cinza
|
|
fantasmagórica. Mesmo assim, encontrou as rosas.
|
|
Não as que tinha dado a ela, mas rosas parecidas.
Estavam do outro lado da estrada, totalmente murchas. Ao
|
|
pegá– las, ficaram completamente despetaladas; só
sobrou a fita roxa que as amarrava.
|
|
Tristan olhou
para a estrada como
se pudesse olhar de volta no
tempo. Tentou se lembrar do seu último
|
|
minuto de vida. A luz. Uma incrível luz e voz, ou
recado – não tinha certeza se era, na
verdade, uma voz e não
|
|
podia se lembrar de palavra alguma. Mas tinha
conseguido chegar depois da explosão de luz. Voltou para a luz e
|
|
focou sua mente nela.
|
|
Um ponto de luz –
sim, antes do túnel, antes da luz ofuscante no fim dele, havia um
ponto de luz, a luz dos
|
|
olhos do cervo.
|
|
Tristan
deu de ombros.
Segurou– se e
sentiu o impacto
com seu corpo
todo. Sentiu como
se estivesse
|
|
batendo nele mesmo. Caiu para trás. O carro ia em
marcha ré em alta velocidade, como em uma montanha russa
|
|
ao contrário. Era como se estivesse preso em uma fita
sendo rebobinada, com toda a conversa e os movimentos
|
|
frenéticos voltando para trás. Tentou parar, desejou
que parasse, toda sua energia canalizada para que a corrida
|
|
no tempo parasse.
|
|
Então, estava
sentado ao lado de Ivy,
totalmente paralisado, como se
estivesse congelado em uma
tela de
|
|
cinema. Estavam no carro e ele lentamente deixou a
cena correr a partir desse momento.
|
|
– Última
olhada no rio – foi o que disse assim
que fizeram uma curva,
desviando– se do lugar em que
|
|
estavam.
|
|
O sol de junho
dominava toda a região oeste do
interior de Connecticut, enviando
os seus raios de luz às
|
|
carvalhos. Ivy sentia estar nadando em meio às ondas
com Tristan, o sol brilhando no alto, os dois juntos em
|
|
movimento uníssono, em direção a um abismo de azul,
roxo e verde escuro. Tristan ligou os faróis do carro.
|
|
–Você não precisa correr – disse Ivy. – Não estou mais
com fome.
|
|
– Eu matei a sua fome?
|
|
Ela balançou a cabeça negativamente. – Acho que me
alimentei de felicidade – respondeu suavemente.
|
|
A velocidade do carro continuava aumentando pelas
curvas da estrada...
|
|
– Já falei que a gente não precisa correr.
|
|
–Engraçado. Não sei o que... Não parece que... –
murmurou Tristan, olhando para os seus pés.
|
|
– Vá mais devagar está bem? Não tem problema se a
gente se atrasar um pouquinho. – Ah! – Ivy apontou
|
|
para frente da estrada. – Tristan!
|
|
Havia algo saindo do meio dos arbustos e parando no
meio da estrada. Não dava para ver o que era. Só dava
|
|
para perceber a movimentação por entre as sombras.
E então o cervo parou. Virou a cabeça
e olhou fixamente
|
|
para as luzes dos faróis.
|
|
– Tristan! ela gritou.
|
|
Ele pisou mais fundo no freio. Estavam cada vez mais
próximos dos olhos br ilhantes.
|
|
– Tristan, você não está vendo?
|
|
A velocidade não parava de aumentar.
|
|
–Ivy, tem algo...
|
|
–Um cervo!
|
|
Ele freou inúmeras vezes, o pedal ia até o fim, mas o
carro não diminuía o ritmo.
|
|
Os olhos do
animal reluziam. Havia uma luz atrás dele, uma
mancha brilhante em meio à escuridão. Um
|
|
carro
vinha na outra
pista. Do outro
lado havia inúmeras árvores.
Não tinha como
desviarem nem para
a
|
|
esquerda nem para a direita, e o pedal estava
encostando no chão do carro.
|
|
–Pare! – ela gritou.
|
|
–Estou...
|
|
–Pare! Porque você não para? – ela implorou. –Tristan,
pare!
|
|
Ele desejou que o
carro parasse, desejou voltar
ao presente, mas não tinha controle, nada o fazia parar de
|
|
aumentar a velocidade em direção ao redemoinho escuro
que estava preparado para engoli– lo.
|
|
Quando abriu os olhos, Lacey estava olhando para ele.
|
|
– Viagem
difícil?
|
|
Tristan olhou para os lados. Ainda estava na mesma
estrada, mas já era de manhã, a luz do sol era tão frágil
|
|
como as teias de aranha que se prendiam às árvores.
Tentou se lembrar do que tinha acontecido.
|
|
– Você me
chamou, horas atrás, me perguntou o que fazer em seguida. Obviamente, não
conseguiu esperar
|
|
para descobrir.
|
|
– Voltei no
tempo – disse, passando a me lembrar
de tudo de repente – Lacey, não foi só
o cervo. Se não
|
|
fosse o cervo, teria sido um muro. Ou as árvores, ou o
rio ou a ponte. Podia ter sido outro carro.
|
|
– Calma aí,
Tristan! O que você está falando?
|
|
– Não havia
pressão, nem fluido. Ia até o fundo do chão do carro.
|
|
– O quê?
|
|
– O pedal. O
freio. Não era para funcionar dessa forma –
segurou Lacey com força – E
se... e se não foi
|
|
um acidente? E se só pareceu um acidente?
|
|
– E você só
parece estar morto. Com certeza, me enganou.
|
|
– Preste
atenção, Lacey. Os freios estavam funcionando perfeitamente. Alguém mexeu
neles. Alguém cortou
|
|
algum fio! Você tem de me ajudar!
|
|
– Mas não sei
nem colocar gasolina!
|
|
– Você tem de
me ajudar a falar com a Ivy – Tristan
começou a caminhar pela estrada.
|
|
– Preferia
ajudar com os freios – Lacey chamou
por ele. – Mais devagar, Tristan.
Antes que você derrube
|
|
outro cervo.
|
|
Mas nada o faria parar. – Ivy tem de acreditar novamente. Temos de
falar com ela. Ela tem de saber que não
|
|
foi um acidente. Alguém queria ver um de nós dois
mortos!
|
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