Quando Tristan acordou, tentou se lembrar qual dia da
semana deveria ser e quais as aulas que teria de dar no
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acampamento de natação. A julgar pela luz fraca em seu
quarto, ainda era bem cedo para levantar e trocar de
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roupa para ir
trabalhar. Deitado na
cama, sonhou com Ivy –
Ivy e seus
cabelos encaracolados caindo
nos
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ombros.
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Aos poucos, foi percebendo passos do lado de fora da
porta juntamente com o som de algo sendo puxado
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por um carrinho, ou algo do tipo. Pulou da cama. O que
ele estava fazendo lá? Deitado no chão do hospital, no
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quarto de um homem que nunca tinha visto antes? O
homem bocejou e deu uma olhada no quarto. Não parecia
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nem um pouco surpreso com a presença de Tristan, agia
como se ele nem estivesse ali.
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Nesse
momento, Tristan lembrou–
se de tudo:
do acidente, da
ambulância, das palavras
da paramédica.
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Estava morto. Mas ainda podia pensar. Podia ver as
outras pessoas. Será que era um fantasma?
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Tristan se lembrou da velha senhora. Ela havia dito
ter visto a luz e por isso o
tinha confundido com um
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an......
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– Não, não
– disse em voz alta, apesar de o homem
não poder ouvi– lo. – Não pode ser.
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Bem, o que quer que ele tivesse se tornado, tinha sido
algo que ainda podia rir, portanto, não parou de rir, de
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forma quase histérica. E depois chorou.
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A porta atrás dele bateu de repente. Tr istan ficou em
silêncio, mas isso não tinha importância alguma, pois a
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enfermeira que havia entrado ali não podia ouvi– lo,
apesar de ter ficado tão próxima que seu cotovelo quase
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atravessou o dele enquanto anotava algo na ficha do
homem. Nove de julho, 3h45, Tristan leu.
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Nove de julho? Mas ele tinha saído com Ivy em junho! Será
que estava inconsciente há duas semanas? Será
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que voltaria a ficar? E por que estava consciente
agora?
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Pensou na velha
senhora que havia
estendido a mão
para ele. Por
que ela havia
prestado atenção nele
|
enquanto os outros não viam nada? Será que Ivy
conseguiria vê– lo?
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Tristan
encheu– se de
esperança. Se conseguisse
encontrar Ivy antes
que a escuridão tomasse conta
dele
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novamente, teria mais uma chance de convencê– la sobre
seu amor. Ele sempre a amaria.
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A enfermeira saiu, fechando a porta atrás dela.
Tristan tentou abri– la, mas seus dedos não se firmavam na
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maçaneta. Tentou
mais uma vez, e mais outra. Suas mãos tinham a mesma força que uma
sombra. Agora, teria
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de esperar a enfermeira voltar. Não sabia por quanto
tempo conseguiria se manter consciente ou, assim como os
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fantasmas das histórias antigas, se iria derreter com
a luz do sol.
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Tentou se lembrar de como chegara até lá e a imagem de
sua andança pelos corredores do auto atendimento
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veio á sua mente. Lembrou– se claramente do faxineiro atravessando seu corpo. Esse era o truque.
Tinha de
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projetar um caminho em sua cabeça e concentrar– se
aonde queria ir.
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Assim, logo estava na rua. Tinha se esquecido de que
estava no Hospital do Condado e tinha de dar a maior
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volta para chegar a Stobehill novamente. Mas já tinha
feito esse caminho, milhares de vezes, para ir buscar seus
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pais. Ao pensar neles, Tristan diminuiu o ritmo.
Lembrou– se de seu pai no auto atendimento, inclinando– se
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sobre ele para chorar. Tristan sentiu vontade de dizer
a ele que estava tudo bem, mas não sabia quanto tempo
|
teria. Seus pais tinham um ao outro; Ivy estava
sozinha.
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O céu da
noite começava a ceder
lugar ao amanhecer quando chegou à
casa dela. Dois retângulos de
luz
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brilhavam suavemente na ala oeste da casa. Andrew
deveria estar trabalhando no escritório. Tristan deu a volta
|
por trás da casa e viu que as portas– balcão do
escritório estavam abertas para receber a brisa noturna. Andrew
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estava em sua mesa, absorto em seus pensamentos.
Tristan entrou sem ser visto.
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Viu que a maleta de Andrew estava aberta e os papéis
com o timbre da faculdade estavam espalhados pela
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mesa. Mas o documento que estava lendo era um
relatório policial. Tristan percebeu, com surpresa, que era o
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relatório oficial de seu acidente com Ivy. Ao lado
dele, havia um artigo de jornal sobre o mesmo assunto.
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Em vez disso,
transformou as coisas
que um dia
foram importantes –
sua aparência, seu
histórico como
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nadador, suas realizações na escola – em pequenas e sem sentido. Somente Ivy era
importante para ele agora.
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Ela tinha de saber o quanto a amava e o quanto sempre
a amaria.
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Deixou Andrew e suas meditações sobre o relatório,
apesar de não entender por que parecia tão inter essado,
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e subiu a escada dos fundos. Passou pelo quarto de
Gregory, que ficava bem em cima do escritório e atravessou
|
a galeria em direção ao corredor que levava ao quarto
de Ivy. Mal podia esperar para vê– la, mal podia esperar
|
que ela o visse. Tremeu, assim como havia tremido
antes da primeira aula de natação que havia dado a ela. Será
|
que conseguiriam conversar um com o outro?
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Se existisse alguém que pudesse vê– lo e ouvi– lo,
esse alguém seria Ivy – sua fé era muito forte! Tristan
|
concentrou– se no quarto dela e atravessou a parede.
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Ella sentou– se imediatamente. Estava dormindo na cama
de Ivy, com seu espesso pelo preto misturando– se
|
aos cabelos dourados de Ivy. A gata piscou e olhou
para ele, ou para o nada – afinal de
contas, gatos faziam
|
isso, pensou. Mas, quando ele foi para o outro lado da
cama de Ivy, os olhos verdes de Ella o seguiram.
|
– Ella, o que
você está vendo, Ella? – perguntou
delicadamente.
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A gata começou a ronronar e ele riu.
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Estava ao lado de Ivy. O cabelo dela caía pelo rosto.
Tentou colocá– lo para trás. Mais do que qualquer coisa
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queria ver o rosto dela, mas suas mãos eram inúteis.
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– Queria que
você pudesse me ajudar, Ella.
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A gata andou por cima dos travesseiros em direção a
ele. Ele não se moveu, tentando entender exatamente o
|
que ela tinha percebido.
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Ella inclinou– se como se fosse acariciar– se no braço
dele. Deitou de lado e miou.
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Ivy se mexeu e chamou a gata suavemente. Deitou de
costas e ele pensou que ela fosse responder aos seus
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chamados. Seu
olhar parecia perdido, bonito, porém, pálido. Toda a sua luz estava nos cílios dourados e nos
|
longos cabelos espalhados pelo rosto como raio de sol.
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Ivy enrugou a testa. Ele queria poder suavizar suas
rugas, mas não tinha como. Ela começou a se agitar e a se
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revirar na cama.
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– Quem está aí?
Quem está aí? – perguntou.
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Ele se inclinou sobre ela. – Sou eu. Tristan.
|
– Quem está aí?
– perguntou novamente.
|
– Tristan!
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Enrugou ainda mais a testa. – Não consigo ver!
|
Colocou a mão em seus ombros, desejando que ela
acordasse, certo de que ela iria poder vê– lo e ouvi– lo. –
|
Ivy, olhe para mim! Estou aqui!
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Ela abriu os olhos por um momento e ele percebeu a
mudança em sua expressão. Viu o terror tomar conta
|
dela. Ela começou a gritar.
|
– Ivy!
|
Ela não parava de gritar.
|
– Ivy, não
tenha medo.
|
Tentou segurá– la. Aconchegou– a em seus braços, mas
seu corpo não conseguia segurar o corpo dela. Não
|
conseguia consolá– la.
|
A porta do quarto se abriu. Philip entrou correndo.
Gregory veio logo atrás dele.
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– Acorde, Ivy,
acorde! – Philip a chacoalhava. – Vamos, Ivy, por favor!
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Ela abriu os olhos e viu Philip. Depois, olhou ao
redor do quarto. Não parou para olhar para Tristan; passou
|
direto por ele.
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Gregory colocou as mãos nos ombros de Philip e o pôs
de lado. Sentou– se na cama e trouxe Ivy para perto
|
dele. Tristan percebeu que ela tremia.
|
– Vai ficar
tudo bem – Gregory disse com voz
suave, colocando os cabelos dela para
trás. – Foi só um
|
sonho.
|
Um sonho
horrível, pensou Tristan. E ele não pôde ajudá– la. Não pôde oferecer– lhe
consolo.
|
Mas Gregory pôde. Tristan estava tomado pelo ciúme.
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Não podia suportar ver Gregory abraçando– a daquela
forma.
|
Mas também não podia suportar ver Ivy tão assustada e
chateada. Um paradoxo de sentimentos em relação a
|
Gregory invadia sua alma: gratidão e ciúmes ao mesmo
tempo. Sentiu– se fraco por essa guerra de sentimentos e
|
afastou– se dos três, dirigindo– se à prateleira de
anjos de Ivy. Ella o seguiu com cautela.
|
– Você sonhou
com o acidente de novo? – perguntou Philip.
|
Ivy fez
que sim com
a cabeça, depois ficou de
cabeça baixa, deslizando
as mãos sem
parar pelos lençóis
|
revirados.
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– Quer
conversar sobre isso? – perguntou
Gregory.
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Ivy tentou falar, depois fez que não com a cabeça e
estendeu uma das mãos para ele, com a palma para cima.
|
Tristan viu as cicatrizes entalhadas em seu braço,
como se fossem rastros de feixes de luz. Por um instante, a
|
escuridão parecia querer pegá– lo por trás, mas lutou
contra ela.
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– Estou aqui.
Está tudo bem – disse Gregory,
esperando pacientemente.
|
– Eu...
eu estava olhando pela janela – começou a
falar. – Vi uma grande sombra nela, mas não tinha
|
certeza de quem ou do que era. Quem está aí? Gritei.
Quem está aí?
|
Tristan a observava do outro lado do quarto, a dor e o
medo que ela sentia exerciam uma pressão sobre ele.
|
– Achei que
fosse alguém que conhecesse. De alguma forma, a sombra parecia familiar. Então,
fui chegando
|
cada vez mais perto. Não conseguia ver – parou de falar e olhou ao redor do quarto.
|
– Você não
conseguia ver – estimulou Gregory.
|
– Havia outras
imagens no vidro da janela, reflexos que a distorciam. Aproximei– me ainda
mais. Meu rosto
|
estava quase grudado na janela. De repente, ela
explodiu! A sombra se transformou em um cervo. Ele bateu na
|
janela e foi arremessado para longe.
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Ela ficou em silêncio. Gregory pegou o queixo dela com
a mão, trazendo– o bem para perto dele.
|
Do outro lado do quarto, Tristan chamava por ela.
– Ivy! Ivy, olhe para mim – implorava.
|
Mas ela estava olhando para Gregory e seus lábios
tremiam.
|
– Esse é o
final do sonho? – perguntou Gregory.
|
Ela concordou com a cabeça.
|
Com o dorso da mão, Gregory acariciava o rosto dela
suavemente.
|
Tristan queria que ela fosse consolada, mas...
|
– Você não se
lembra de mais nada? – perguntou
Gregory.
|
Ivy balançou a cabeça negativamente.
|
– Abra seus
olhos, Ivy! Olhe para mim! – gritava
Tristan.
|
Então, percebeu que Philip também estava lá, olhando
para a coleção de anjos de Ivy – ou
talvez para ele,
|
não tinha certeza. Tristan colocou a mão ao redor da
estatueta do anjo das águas. Se encontrasse uma maneira
|
de dá– lo a Ivy. Se pudesse mandar algum sinal a
ela...
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– Venha aqui,
Philip – disse Tristan. – Venha pegar a estatueta. Leve– a para Ivy.
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Philip foi em direção à prateleira como se estivesse
hipnotizado. Esticou a mão, colocando– a por cima da de
|
Tristan.
|
– Veja! – gritou Philip. – Veja!
|
– O quê? – perguntou Ivy.
|
– Seu anjo.
Está brilhando.
|
– Agora não,
Philip – disse Gregory.
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Philip tirou o anjo da prateleira e levou– o até Ivy.
|
– Quer colocá–
lo ao lado da sua cama, Ivy?
|
– Não.
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– Talvez ele
afaste os pesadelos – insistiu Philip.
|
– É só uma
estatueta – disse, mostrando– se
exausta.
|
– Mas você pode
rezar e o anjo de verdade vai ouvir.
|
– Não existem
anjos de verdade, Philip! Você não entende? Se existissem, eles teriam salvo
Tristan!
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Philip pegou nas asas do anjo e disse em voz baixa,
porém teimosa: – Anjos de luz, anjos
queridos, cuidem
|
de nós. Cuidem de quem mais fica comigo.
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– Diga a ela
que estou aqui, Philip – disse
Tristan. – Diga que estou aqui.
|
– Veja, Ivy
– Philip apontou para as estatuetas,
na direção em que estava Tristan. –
Elas estão brilhando!
|
– Já chega,
Philip! Vá para cama! – disse Gregory
com severidade.
|
– Mas...
|
– Agora!
|
Quando Philip passou, Tristan estendeu sua mão, mas o
garotinho não a pegou. Olhou– o com surpresa, sem
|
reconhecer o que via.
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O que Philip viu? Tristan perguntou– se. Talvez o
mesmo que a velha senhora: luz, algum tipo de brilho, mas
|
não uma forma.
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Então,
sentiu a aproximação da escuridão novamente. Lutou contra ela. Queria
ficar com Ivy. Não podia
|
suportar perdê– la agora. Não podia suportar deixá– la
ali com Gregory.
|
para manter– se
longe da escuridão, mas ela o
vencia pelas laterais, como uma névoa negra, à sua frente, por
|
detrás, fechando– se em sua cabeça, sucumbindo– o
inteiramente.
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