RIO ABAIXO
Antes
de partir, Tally escreveu uma carta para ela mesma.
A ideia tinha sido de Maddy. Ela devia deixar sua permissão no
papel. Assim, depois de se tornar perfeita, sem condições de entender por que
desejaria ter o cérebro consertado, Tally poderia ler suas próprias palavras e
aceitar o que estivesse para acontecer.
– Como achar melhor – disse ela. – Desde que me cure, não importa
o que eu diga. Não me deixe como Shay.
– Vou curar você, Tally. Eu prometo. Só preciso de uma autorização
por escrito – assegurou Mandy, entregando–lhe uma caneta e um pequeno pedaço de
papel.
– Nunca aprendi a escrever a mão – disse Tally.– Não é mais
obrigatório.
Maddy balançou a cabeça, decepcionada.
– Muito bem. Então você dita e eu escrevo.
– Você, não. Shay pode cuidar disso. Ela fez aulas, na época em
que estava tentando ir para a Fumaça – contou Tally, lembrando–se das
instruções confusas, porém inteligíveis, que Shay lhe deixara.
A
carta não exigiu muito tempo. Shay ria ao ouvir as palavras sinceras de Tally,
mas as transcrevia corretamente. Havia algo de interessante no modo como ela
corria a caneta sobre o papel; lembrava uma criança aprendendo a ler.
Quando acabaram, David ainda não voltara. Saíra numa prancha em
direção às ruínas. Enquanto arrumava suas coisas, Tally vigiava a janela, na
expectativa de seu retorno.
Maddy devia estar certa. Se Tally o visse novamente, acabaria se
convencendo a desistir. Ou talvez David a impedisse.
Ou pior: ele não se importaria.
A despeito do que pudesse dizer, a verdade era que David sempre se
lembraria do que Tally fizera e das vidas perdidas por causa de seus segredos.
Só havia uma forma de acreditar que ele a perdoara: se David fosse resgatá–la
pessoalmente.
– Vamos nessa – disse Shay.
– Shay, não vou ficar lá para sempre. Seria melhor que você...
– Dá um tempo. Estou de saco cheio deste lugar.
Tally mordeu os lábios. Qual seria o sentido de se entregar se
Shay fosse junto? Obviamente, nada impedia que eles a resgatassem de novo.
Depois que tivesse sua eficiência confirmada, o remédio poderia ser dado a
qualquer pessoa. Ou a todas as pessoas.
– A única razão de eu ter ficado aqui nesta caverna é tentar levá–la
de volta comigo – disse Shay, baixando o tom de voz em seguida. – Sabe, sou
culpada por você não estar perfeita ainda. Estraguei tudo quando fugi. Devo uma
a você.
– Ah, Shay. Corta essa.
Sentindo sua cabeça começar a rodar, Tally fechou os olhos.
– Maddy vive dizendo que posso ir embora quando eu quiser. Não
espera que eu volte para casa sozinha, né?
Tally tentou imaginar Shay caminhando até o rio sem companhia.
– Não, acho que não.
Ela observou o rosto da amiga e viu um brilho em seu olhar – algo
autêntico provocado pela perspectiva de fazer a viagem ao seu lado.
– Por favor! Vamos nos divertir muito em Nova Perfeição.
– Está bem. Acho que não posso fazer nada mesmo – disse Tally,
abrindo os braços.
As
duas foram juntas numa única prancha. Croy as acompanhou para levar o
equipamento de volta quando alcançassem a entrada da cidade.
Ele não disse nada no caminho. Os outros Novos Enfumaçados tinham
ouvido a briga do lado de fora e agora sabiam tudo sobre Tally. Para Croy, era
mais doloroso. Ele havia suspeitado, e mesmo assim ela mentira, olhando–o nos
olhos. Devia se culpar por não ter detido Tally antes que ela pudesse traí–los.
Quando chegaram ao cinturão verde, porém, ele se forçou a
encará–la.
– O que eles fizeram com você, afinal? Para obrigá–la a armar uma
coisa desse tipo?
– Disseram que eu não poderia me transformar enquanto não achasse
Shay.
Croy virou o rosto, concentrando–se nas luzes de Nova Perfeição,
reluzentes em meio ao ar frio daquela noite de novembro.
– Então, parece que finalmente vai realizar seu desejo.
– É, acho que sim.
– Tally vai se tornar perfeita! – disse Shay.
Croy ignorou o comentário e se dirigiu a Tally.
– De qualquer maneira, obrigado por me resgatar. Foi uma façanha e
tanto a que vocês realizaram. Espero que... – Ele parou no meio, balançando a
cabeça. – Nos vemos por aí.
– Tomara que sim.
Croy empilhou as pranchas e voltou na direção do rio.
– Isso vai ser demais! – disse Shay. – Mal posso esperar para lhe
apresentar todos meus novos amigos. E você vai poder me apresentar ao Peris.
– Claro.
Elas caminharam rumo a Vila Feia até chegarem ao Parque Cleópatra.
Pisando na terra dura e encarando o clima de fim de outono, as duas se
aproximaram, para se protegerem do frio. Tally usava seu suéter fabricado na
Fumaça. De início, queria deixá–lo com Maddy, mas acabou decidindo abrir mão do
casaco de microfibra. As roupas feitas na cidade eram muito valiosas para serem
desperdiçadas com alguém que estava retomando à civilização.
– Na verdade, eu já estava ficando popular – contou Shay.
– Ter um histórico criminal é uma boa maneira de entrar nas restas
mais legais. É óbvio: ninguém quer saber que aulas você assistia na escola para
feios – explicou, dando um risinho.
– Se for assim, vamos fazer muito sucesso.
– Imagina quando contarmos a todo mundo que você me sequestrou de
dentro do quartel–general da Circunstâncias Especiais. E que eu convenci você a
fugir daquele bando de gente esquisita. Mas vamos ser obrigadas a diminuir um
pouco as histórias, Vesguinha. Ninguém acreditaria na verdade!
– Não mesmo. Tem razão.
Tally pensava na carta que deixara com Maddy. E ela? Acreditaria
na verdade dentro de algumas semanas? Como as palavras de uma feia foragida,
desesperada e trágica soariam aos ouvidos de uma perfeita?
Aliás, como veria David quando passasse a viver cercada de novos
rostos perfeitos, 24 horas por dia? Voltaria a acreditar em toda aquela
baboseira a respeito dos feios ou ainda se lembraria que uma pessoa podia ser
bonita sem a cirurgia? Tally tentou imaginar o rosto de David, mas era doloroso
pensar no tempo que levaria para voltar a vê–lo.
Ela se perguntava de quanto tempo precisaria, depois da operação,
para deixar de sentir saudade de David. Maddy tinha avisado que talvez
demorasse alguns dias até que as lesões assumissem o controle completo. No
entanto, aquilo não significava que, nesse intervalo, as mudanças seriam
controladas por sua própria mente.
Talvez, se decidisse continuar a sentir saudade dele, ignorando
todo o resto, ela conseguisse evitar as mudanças. Ao contrário da maioria das
pessoas, Tally sabia da existência das lesões. E, por isso,
talvez pudesse lutar contra elas.
Nesse momento, uma sombra passou por elas – a sombra de um carro
voador. Por reflexo, Tally parou. Os feios da cidade tinham relatado um número
maior de patrulhas naqueles dias. As autoridades oficiais haviam finalmente
percebido que as coisas estavam mudando.
O carro parou e baixou suavemente até pousar. Assim que a porta se
abriu, uma luz intensa deixou Tally e Shay praticamente cegas.
– Muito bem, garotas... ah, me desculpe, senhorita. – O facho
estava sobre o rosto de Shay. Logo em seguida, porém, passou para o de Tally. –
Ei, o que vocês duas...?
O que poderia ser mais incrível? Uma perfeita e uma feia passeando
juntas. O guarda se aproximou; seu rosto de meia–idade estava dominado pela
perplexidade.
Tally sorriu. Pelo menos, estava criando confusão até o fim.
– Meu nome é Tally Youngblood. E quero ser perfeita.
FIM
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