Faltando apenas setenta e
duas horas para o início das aulas, eu estava em
um lugar mágico que seria a fonte de todos os meus
segredos e poderes
vampirescos: a Biblioteca Pública de Pelham. Eu ainda
acreditava que os livros
podiam mudar sua vida, mesmo que não tivessem
funcionado nas minhas
tentativas anteriores de transformação (como dá para
perceber pela cópia
intacta de Halterofilismo para molengas, na terceira prateleira da minha estante).
Agradeço aos
céus pela minha capacidade de concentração fora do
comum. Entre o sábado e a manhã de terça, li os
seguintes livros: A família
Vourdalak, do
conde Alexei Tolstói; Carmilla, de Joseph Sheridan Le Fanu
(esse tinha uma vibe lésbica incrível, e isso uns cento
e cinquenta anos antes
de a Marissa beijar a Alex em The OC); Drácula, de
Bram Stoker (esse eu só
folheei, porque já tinha lido duas vezes); Revelações em negro, de Carl Jacobi; A
hora do vampiro e Voo noturno, do Stephen King; Carpe jugulum, de Terry
Pratchett; quatro livros da Anne Rice; dois da série House of Night, de P. C. e
Kristin Cast; e a saga Crepúsculo, da Stephenie
Meyer.
Terminar de
ler qualquer livro, ainda mais tantos assim em um único fim
de semana supernerd, foi um feito impressionante,
considerando que eu
dividia o quarto com o Luke. Em Alexandria, nossos
quartos ficavam em
lados opostos do corredor, e eu mal escutava quando ele
quebrava uma viga
|
do teto de madeira com a bola de basquete, ou usava a
cama como trampolim,
ou se balançava no parapeito da janela. Em Pelham, eu
via tudo isso ao vivo e
em cores.
Em
determinado momento da minha pesquisa, quando eu já havia
cortado o dedo com papel umas doze vezes, ouvi o Luke
subindo as escadas.
As lâmpadas do quarto já estavam tremendo de medo dele.
O cara é um
terremoto ambulante. Olhei ao redor rapidamente. As
capas dos livros em
cima da minha cama eram suspeitas e assustadoras —
facas, sangue, alguns
peitos femininos à mostra. Por isso agarrei uns cinco e
joguei no vão entre a
minha cama e a parede, onde eu guardava todas as minhas
outras coisas
suspeitas e assustadoras, como o pôster da Megan Fox em
Transformers (em
tamanho natural, e dá para ver claramente um dos mamilos
dela).
Luke abriu a
porta, com os fones de ouvido no último volume e a camisa
encharcada de suor, que tirou enquanto caminhava em
direção à cama. Meu
irmão anda por aí sem camisa mais do que o Matthew
McConaughey.
— Leitura de
férias? — foi a pergunta que os peitorais do Luke me
fizeram.
Até parece.
Eu já tinha terminado a lista de leitura de férias da Escola de
Pelham no Quatro de Julho. Leitura de férias é uma das
coisas que mais gosto
de fazer no mundo!
— Só dando
uma lida — respondi.
— Ei, quando
vamos à praia outra vez? — ele perguntou. — Nunca
consigo ir.
— A praia
fez a minha pele fritar — respondi.
Ele nem
ligou.
— A mamãe
disse que curtiu.
Revirei os
olhos, depois larguei A rainha dos condenados em cima da colcha.
Embora nunca tivesse pensado que diria uma coisa
dessas, o fato é que eu
estava enjoado de ler. Decidi fazer o que o resto do
país fazia em vez de ler:
assistir à televisão.
— Ei —
chamei o Luke —, você já viu True
Blood?
Ele pegou uma das toalhas que compartilhávamos e
esfregou na cabeça,
no pescoço e no peito. Lembrete: nunca mais usar aquela
toalha.
|
— O que é
isso? — perguntou.
— Uma série
da HBO — respondi. — De vampiros.
— E o que
acontece? — Luke colocou uma camisa pólo.
Prender a
atenção do meu irmão exige uma equipe de escritores de novela
mexicana, mas ele concordou em assistir aos DVDs da
série e desceu comigo
para a sala, onde fica a enorme televisão HD que emite
radiações e mata
minha mãe de medo. Coloquei o DVD da primeira temporada
e fui
conquistado pela série quase que imediatamente. Meu
irmão, praticamente o
garoto-propaganda do DDA, saía da sala toda vez que não
tinha ninguém
prestes a ser morto ou transando de forma barulhenta.
Felizmente, tinha um
monte de assassinatos e sexo que não acabava mais
(talvez virar vampiro fosse
mais divertido do que eu pensava). Luke prestava mais
atenção quando assistia
e ao mesmo tempo tentava se equilibrar numa prancha de
madeira sobre
rodas. Essa prancha de equilíbrio foi a primeira
manifestação física da crise de
meia-idade do meu pai. Ele comprou aquilo para treinar
a coordenação
quando decidiu que ia virar surfista. Mas aquilo nunca
funcionou para ele. Ou
para mim. Ao que parece, delírios relacionados ao surfe
são frequentes na
nossa família.
Enquanto
Luke se equilibrava (ou melhor, caía no sofá, tipo, umas três
vezes), eu juntava todas as informações que tinha lido
com as que estava
vendo. Cada livro tinha uma visão diferente sobre como
funcionavam os
vampiros. Por exemplo: Como se transformar em vampiro?
Bram Stoker, que
escreveu Drácula, diz que são necessárias três mordidas
de um vampiro para
transformar um ser humano. Os livros da série House of
Night afirmam que
virar vampiro é uma mudança física automática, como a
puberdade (e só Deus
sabe que eu não queria reviver a puberdade; acho que eu
preferia virar
vampiro a voltar a usar aparelho com elásticos
vermelhos nos dentes). E qual
é o lance dos vampiros com o sol? Em True Blood, as criaturas expostas ao sol
secam até a morte. Nos livros da série Crepúsculo, o
sol não fere os vampiros,
mas revela a linda pele deles. Bem, eu não precisava me
preocupar com isso.
Mas havia um
monte de ―regras vampirescas‖
que eu não poderia seguir.
Por exemplo: Tru Blood é o nome da bebida de sangue
sintético que Bill
Compton e os outros vampiros da HBO tomam, em vez de
morder as
|
pessoas, o que me lembrou de uma coisa: vampiros não
comem. Isso me
levou a perceber que eles também não bebem nem
respiram. Comer, beber e
respirar? Eu provavelmente não conseguiria me livrar
desses hábitos banais.
Além disso, de acordo com os livros, vampiros
enlouquecem quando se
deparam com símbolos religiosos, como cruzes ou imagens
cristãs. Se isso
fosse verdade, não ia dar para entrar na minha própria
casa. Minha mãe tem
imagens de santos e da Virgem Maria praticamente
acampadas no nosso
quintal.
Mas,
enquanto observava os vampiros na TV — com aquela fala lenta e
macia, os movimentos ágeis, os reflexos de um agente
secreto e a forma como
chamam a atenção de todo mundo (principalmente das
garotas) quando
entram num bar ou numa festa —, percebi que havia mais
coisas na imagem
do vampiro além de beber sangue e morder as pessoas.
Havia outros
elementos, além daqueles em que eu era bom: o jeito
melancólico, a solidão, a
determinação antiquada de agir como um cavalheiro com
as mulheres, a
inteligência e o conhecimento de história. Havia algo
mais: a atitude de
vampiro.
Talvez eu
ainda não tivesse a atitude de vampiro porque faltava ler um
livro importante. Aquele que estava na origem de tudo.
A bíblia da sedução
vampiresca: Sede de sangue. Para ser
honesto, eu tinha vergonha de comprar o
livro, mesmo pela Internet. Sede de sangue era um livro
romântico, e noventa
por cento de seus leitores eram mulheres. Se eu o
comprasse online,
provavelmente acabaria em alguma lista de romances
idiotas e receberia e-
mails cheios de fotos de homens com longos cabelos
loiros e sem camisa.
Mas, se eu
ia realmente usar essa coisa de vampiro para pegar meninas,
tinha de ler Sede de sangue. Então engoli em
seco e voltei para a biblioteca.
Comecei a caminhar pelo corredor dos romances, cercado
por duas meninas
de 12 anos que riam e perguntavam uma para a outra: ―O
que é um membro?
É tipo um membro de um clube?‖ Consegui pegar furtivamente um exemplar
de Sede de sangue da prateleira. Havia sete cópias do
livro, e cinco já haviam
sido retiradas — um bom sinal sobre a constante
popularidade dos vampiros.
Escondendo o livro entre dois romances mais machos do
Stephen King, me
dirigi despreocupadamente até o balcão.
|
Agnes, uma
bibliotecária que já me conhecia pelo nome, sorriu quando
pegou meu cartão. Mas, ao avistar Sede de sangue, ela sacudiu a cabeça.
— Você não
pode levar este aqui — disse.
O quê? Ela
estava levando o papel de mãe — ou de avó — longe demais.
— Há uma
advertência aos pais neste livro — Agnes explicou.
— Pode ter
esse tipo de coisa em livros? — perguntei.
Eu sempre
pensei que advertências aos pais fossem para videogames em
que você pode roubar carros e pegar prostitutas.
— Eu posso
ligar para sua mãe e pedir a permissão por telefone — ela
sugeriu.
Olhei para a
capa de Sede de sangue, com os seios da moça em destaque.
— Não
precisa, obrigado.
|
Na primeira vez em que sentei num canto escuro e
isolado da Biblioteca
Pública de Pelham para ler Sede de sangue sem precisar
retirá-lo, não consegui
entender por que o livro era tão proibido. O primeiro
capítulo era mal escrito,
mas não muito escandaloso. A história começava como uma
imitação barata e
inofensiva de Drácula, com um monte de diálogos
cafonas. Tinha uma menina
inglesa, Virginia White, que havia sido escolhida para
entregar uma mensagem
numa cidade montanhosa do Leste Europeu, mesmo sendo
uma mensageira
horrível, que não sabia escalar montanhas e estava
sempre vestida de branco, o
que é algo idiota de se fazer no campo. Enfim, Virginia
White acaba chegando
até a fazenda de Chauncey Castle, um sujeito que tinha
sido professor em
Oxford, mas que foi expulso por causa de suas
controversas pesquisas sobre
imortalidade e beber sangue. Todos começaram a dizer
que ele era um
vampiro, mas mesmo assim a burra da Virginia fica
andando por aí até chegar
na casa dele.
Por quarenta
dias e noites, ela fora prisioneira na casa dele, seus pulsos
brancos como lírio amarrados por pesadas correntes de
ferro... Mas agora,
livre das amarras, ela havia se tornado cativa do
misterioso fascínio de
Chauncey — e prisioneira da própria luxúria. Tudo nele
fazia seu coração de
mulher bater acelerado. Sua pele de alabastro.
|
(Atraente,
sem dúvida.)
Seu extenso
vocabulário.
(Um atributo
muito sexy.)
E seu
irônico esforço de encontrar as palavras certas durante os
conflituosos e furtivos momentos de paixão que
compartilhavam.
(Está certo,
o cara precisa de um tempo. Nem mesmo os vampiros
conseguem entender as mulheres!)
Os vistosos
pretendentes de sua meninice, com seus lenços vermelhos e
suas corridas de cavalo, pareciam frívolos comparados a
Chauncey.
(É isso aí!
Para o inferno com esses jóqueis!)
Se os
rumores fossem verdadeiros, havia oitenta anos que Chauncey
Castle não abandonava o Chateau Sangre. Mesmo assim ele
era — mais do
que qualquer outro homem que ela havia conhecido — um
explorador de
mundos: aqueles em seus livros de capa de couro. E
talvez ainda um
explorador dos mundos dela, os mundos desconhecidos sob
sua saia de seda,
sua anágua, os laços de cetim de seu espartilho...
Ela se
apertou contra ele, sem nada entre os dois a não ser seu amplo e
jovem seio, tremulando nu e exposto como dois faisões que
estremecem
diante do caçador. Quando ela levou a mão ao peito de
Chauncey, notou que
era frio e duro — inflexível como as próprias muralhas
de seu castelo.
— Não
consigo sentir seu coração — disse Virginia, sem fôlego. — Você
ainda tem coração?
— Que importa se tenho ou não? — ele
perguntou, desviando o olhar.
Ao voltar a encará-la, os olhos de Chauncey
atravessaram Virginia como
espadas de prazer. Era como se os dois travassem um
duelo sensual e ele
estivesse com a vantagem...
— O que importa
é o que sou.
— O que você
é?
— Eu não
posso dizer.
(Nossa, esse
cara tem lábia.)
Felizmente,
Chauncey não ficou falando por muito tempo. Virginia White
tomou conta da conversa — e, caramba, que boca suja
para uma donzela de
Sheepfordshire.
|
— Agora eu
sei para onde vai o sangue que você bebe — ela disse,
esfregando o intumescido...
— Ai, meu
Deus! — eram as duas meninas da seção de romances, rindo
atrás de mim.
Vermelho de
vergonha, olhei para cima. Elas estavam com os olhos
grudados na página que eu estava lendo.
— ... membro
— sussurrou uma delas.
Levantei em
um pulo e fechei o livro, dizendo:
— Essa aqui
não é a seção de ginástica?
|
Depois de ler Sede de sangue quase todo, eu
tinha aprendido oito metáforas
novas para ereção, mas não muito sobre a atitude de
vampiro. Acho que, para
entender a atitude, eu precisava mergulhar naquele
estilo de vida. Assim, no
feriadão do Dia do Trabalho, adotei hábitos vampirescos
perto da minha
família para testar a reação deles.
Comecei
diminuindo a quantidade de comida que ingeria em público. Eu
não planejava morrer de fome para provar que era um
vampiro, mas também
não queria ser visto vencendo um concurso de quem comia
mais cachorro-
quente ou algo assim. Então, quando meu pai preparou um
delicioso
hambúrguer de meio quilo em seu novo grill, eu tive de
recusar.
— Do jeito
que você gosta, Finbar — ele anunciou, lançando o
hambúrguer no pão tostado que estava num prato de
papel, que quase
imediatamente ficou encharcado com os sucos da carne. —
Sem alface, sem
tomate, sem ketchup, sem mostarda e sem molho barbecue.
Meus hábitos
alimentares são bem simples. Além de uma alma sensível e
uma pele sensível, tenho um paladar sensível. Portanto,
aquele hambúrguer era
o meu Santo Graal. Meu estômago roncou e até babei um
pouco.
Mas disse:
— Hum, não,
obrigado. Acho que vou comer qualquer coisa mais tarde.
Que fim de
semana meu pai escolheu para comprar um grill do tamanho
do LeBron James.
|
Adotei um
estilo de vida de vampiro enquanto descansava em casa, me
isolando dos outros, lendo um monte de livros e olhando
furiosamente para
minha mãe quando ela passava em cima do meu pé com a
vassoura.
Curiosamente, ninguém parecia notar que eu estava
agindo de maneira
diferente.
Bem, estava
na cara que eu precisava intensificar a atitude. E eu sabia
exatamente como — com um olhar mortal. Lendas, filmes e
livros cheios de
pornografia diziam que o olhar do vampiro é tão
poderoso que só de encarar
um mortal nos olhos ele é capaz de fazer a pessoa se
render à sua vontade.
Testei essa teoria com o meu irmão. Não se preocupe,
ele não se machucou.
Toda manhã,
no verão, Luke saía para correr às sete horas. Ele estava de
volta às oito, subindo a escada como uma tropa de
fuzileiros, abrindo a porta
com tudo com o braço suado e arruinando meu sono REM
com a última
música da moda bombando no iPod. Sendo desprovido do
meu gosto musical
seletivo, Luke sempre baixava qualquer coisa que
estivesse tocando
incessantemente nas rádios. Naquele Dia do Trabalho, o
último das férias de
verão, era Lady Gaga, num remix no último volume.
Normalmente
eu jogaria um travesseiro no Luke, erraria o alvo por um
palmo, rolaria na cama e voltaria a dormir. Hoje,
enquanto ele erguia a
camiseta para enxugar o rosto e fazia uma dança
ridícula na hora do refrão, eu
me sentei e fixei os olhos nele.
— Desligue
isso! — gritei, alto o suficiente para ele me ouvir.
— Hã? — ele
levantou as duas mãos para tirar os fones de ouvido, que,
estendidos sobre seu peito, faziam ainda mais barulho.
— Desligue a
música — eu disse.
Então Luke
sentiu todo o impacto do feroz olhar de vampiro que eu
havia aperfeiçoado no espelho de maquiagem da minha mãe
durante três dias.
Ele foi projetado para a) derreter meu irmão em uma
poça de seu próprio
suor, ou b) torná-lo totalmente obediente a mim.
Inicialmente, a segunda
opção funcionou. Luke me encarou e veio até a minha
cama. Estava
funcionando! Meu olhar poderoso estava atraindo o Luke
até mim. Meu olhar
poderoso era realmente poderoso! Em seguida, ele se
sentou na minha cama e
disse:
|
— Você está
com os olhos cheios de remela.
Ele levantou
a mão na direção do meu rosto. Ergui o braço para bloquear
seu avanço, mas meus reflexos vampirescos ainda não
estavam em forma e eu
fui muito lento.
Então ele
enfiou o dedo no meu olho.
|
Depois que o Luke saiu para o treino, minha mãe entrou
no quarto com o
aspirador de pó, o que significava que ela queria ter
um papo íntimo. Ela se
sentou na minha cama e perguntou:
— Tem alguma
coisa errada, Finbar?
Levantei uma
sobrancelha de maneira cética, mas depois lembrei que
estava praticando meus hábitos de vampiro. O que
Chauncey Castle diria?
— Tem alguma
coisa certa? — perguntei dramaticamente.
— Finbar —
nesse momento minha mãe apertou os olhos e agarrou a
cruz do pescoço como se estivesse em perigo. — Você
está usando drogas?
— O que
importa o que faço? — perguntei. — Tudo que importa é o que
sou...
— FINBAR! —
minha mãe gritou, pulando da cama. — VOCÊ ESTÁ
USANDO DROGAS!
O estilo
Chauncey Castle de diálogo não funcionava tão bem na vida real.
Talvez haja uma razão para a imprensa ter chamado o
livro de ―lixo
repugnante‖.
— Não estou
usando drogas, mãe — eu disse. — De onde você tirou
essa ideia?
— Você anda
mal-humorado, não conversa mais com a gente e está
comendo menos — ela explicou, depois respirou fundo:
— Você está
fumando maconha?
— Mãe, se eu
estivesse fumando maconha, estaria comendo mais.
Minha mãe
apontou o aspirador para o meu peito e ligou aquele treco,
que começou a chupar a camisa preta do meu pijama.
— Só quem
fuma maconha poderia saber de uma coisa dessas! — gritou,
fazendo ainda mais barulho do que o aparelho.
|
Depois que
minha mãe saiu, eu finalmente levantei da cama. Aproveitei a
ausência do Luke para realizar uma importante tarefa
pré-Primeiro Dia de
Aula: decidir o que eu ia vestir.
Como eu ia
fazer para me vestir como vampiro? Eu tinha um péssimo
histórico de tentar convencer os outros de que eu era
outra pessoa. Veja os
Halloweens da minha infância. Todo ano eu começava com
aquilo em agosto,
tentando bolar a fantasia mais assustadora possível.
Fantasma, zumbi, múmia,
assassino do machado. Quando meus vizinhos abriam a
porta, eu rosnava,
levantava uma faca, tinha um ataque de fúria, rugia
como o elenco inteiro de
O rei leão.
Ainda
assim, quando as mães de Indiana me viam, sempre diziam a
mesma coisa:
— Oi,
Finbar. Tudo bem?
O máximo
que eu recebia eram comentários sem entusiasmo, como
―Nossa, que medo‖, seguidos por aquele som, ―ahhh‖, que você faz quando
encontra um cachorrinho mastigando seu sapato. Outros
vizinhos, que sabiam
o que fazer para conquistar o coração da minha mãe,
estavam ocupados
demais colando passagens da Bíblia em barrinhas de
cereais — que já eram o
pior doce do mundo sem as chagas e as pragas para
acompanhar. Depois de
um tempo eu já estava andando por aí de porta em porta
com metade do
Novo Testamento, tipo uma Testemunha de Jeová.
Então, como
é que eu faria esse negócio de vampiro dar certo?
Eu era péssimo
em violência, por isso não conseguiria fazer o que faz de
um vampiro um vampiro: não sairia por aí mordendo
pessoas. Luke já tinha
tentado fazer isso uma vez e foi expulso da escola. Meu
feitiço não teve
nenhum efeito sobre o meu irmão, o que indicava que eu
não conseguiria
hipnotizar as pessoas. Estava na cara que eu não era
nenhum Chauncey Castle
quando o assunto era sedução. E eu ainda não tinha
entendido completamente
a atitude de vampiro. Assim, eu não tinha escolha a não
ser trabalhar o visual.
No tempo que restava antes de o Luke voltar, fiquei
remexendo o andar de
cima de casa, recolhendo todas as roupas e acessórios
de aparência sinistra que
a minha família tinha. Isso incluía uma camisa polo
preta que o Luke tinha
desde os 8 anos, uma camisa preta de botões que era
descolada demais para o
|
meu pai e um pingente da minha mãe que eu pensei que
fosse uma presa, mas
que no fim era apenas um dente de leite do Luke
pendurado num cordão.
|
O que descartei primeiro foi o pingente, é óbvio.
Depois experimentei a polo
preta. E, acreditem, não foi fácil. Aquilo era uma
roupa apertada. Parecia que
eu ia a uma rave na série Jersey Shore. A diferença é que eu não poderia levantar
as mãos para dançar, porque, quando fiz isso, a camisa
rasgou embaixo do
braço.
A polo já
era.
Depois eu
vesti a camisa de botões do meu pai. Ficava longa em mim (eu
sou alto, mas meu pai, o ―Paul Altão‖, tem mais de um metro e noventa) e,
quando a enfiei dentro da calça, a parte de baixo se
acumulou, formando uma
protuberância interessante entre as pernas. Aquilo não
podia ser ruim. Além
do mais, a camisa era preta, me dava um ar maduro e
tinha um visual bem
vampiresco. Na frente do espelho de corpo inteiro da
minha mãe, fiquei me
virando de lado e levantei a gola da camisa. Uau.
Totalmente vampiro. Como
o Conde da Vila Sésamo. Finn vai quebrar tudo na escola nova se vestir essa camisa...
Ua-ha-ha-ha.
Mas, assim que tirei aquela protuberância da calça,
tive uma revelação.
Vampiros não
ligam para a camisa que estão vestindo. Não se preocupam
em impressionar no primeiro dia de aula. Não estão nem
aí para essas coisas
idiotas com as quais os Finbar Frames da vida se
importam, como ser o
primeiro eliminado no jogo de queimada na educação
física, enfrentar a
rejeição das meninas e ser ridicularizado por levar no
bolso anotações para
estudar para o vestibular. Vampiros não ligam se não
podem exibir um
bronzeado na praia, se as pessoas ficam olhando para
eles ou se são diferentes.
Vampiros não se importam com o que os outros pensam. E essa é a
atitude de
vampiro.
No St. Luke,
eu sempre entrava na sala antes do segundo sinal,
mostrando que me preocupava com minhas notas. Meu nome
sempre estava
no quadro de honra e na seção de autores do jornal
estudantil, mostrando que
eu me preocupava com a escola. Eu não ia a festas de
arromba, o que pode
|
soar indiferente, mas na verdade significava que eu me
importava tanto com o
que as pessoas pensavam sobre meu jeito de dançar e
sobre minha baixa
tolerância a cerveja que eu não ousava dar as caras.
Gastei minha mesada de
dois anos pagando pelas lesmas que a Celine comeu e
depois persegui a
menina pela rua porque eu me importava demais. Era por
isso que eu havia
estragado o nosso encontro. E era por isso que eu nunca
tinha saído, beijado
ou até mesmo dançado com uma garota. Eu me importava
demais com o que
elas achavam de mim.
Bem, essa
preocupação toda acabava agora.
Joguei a
camisa do Luke e a do meu pai no cesto de roupa suja. Me livrei
daquele dente assustador do Luke. Coloquei de volta a
camiseta preta do meu
pijama, cobrindo meu peito branco e magricela. Durante
o resto daquele dia e
daquela noite, eu vestiria apenas aquela camiseta. E
estava com a mesma roupa
na manhã seguinte, enquanto pegava um pedaço de torrada
e ignorava as
súplicas da minha mãe dizendo que eu deveria tomar chá
verde (ela havia
assistido ao programa do dr. Oz). Quando entrei no
Volvo e fui para a nova
escola, aquela mesma camisa preta que eu estava
vestindo havia três dias
simbolizava tudo — frieza, apatia e também um certo
fedor.
|
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