domingo, 4 de novembro de 2012

Capítulo 4 (Doce Vampiro)


Eu acho que o meu irmão é um super-herói. Ele é capaz de correr como um
leopardo. Consegue completar os cem metros em pouco mais de dez
segundos. Consegue apanhar alguma coisa, lançar outra e matar uma mosca
em pleno voo, tudo ao mesmo tempo. Ele faz passes sem olhar para os alas na
quadra de basquete. Na verdade, ele consegue passar a bola para si mesmo na
quadra de basquete. Tem os reflexos de um personagem de quadrinho da
Marvel e a velocidade de um deus grego hermafrodita.
     Nosso médico acha que o Luke é hiperativo. Ele não consegue ler mais
de um capítulo de um livro por vez. Não é capaz de realizar testes
padronizados. Ele saiu no meio de uma prova importantíssima no ano passado
e foi ao cinema ver um filme de ação. E depois abandonou o filme. Luke não
consegue jantar sem ficar se levantando e se mexendo em volta da mesa. Ele
não vai muito bem na escola e irrita as pessoas. Quando éramos pequenos,
três professores do jardim de infância, um guarda de zoológico e um guia do
museu da Maior Bola de Tinta do Mundo pediram demissão — e isso não foi
coincidência. (Minha mãe ficou triste quando o guarda do zoológico foi

embora. Ele ia dar a ela algumas dicas sobre como criar filhotes de babuíno,
que ela poderia tentar aplicar em casa.)
     Na oitava série, cada vez mais preocupados com as notas baixas do Luke,
meus pais começaram a dar a ele um remédio para distúrbio de déficit de
atenção. Depois de três meses usando o remédio, Luke desabou no meio da
quadra durante um jogo de basquete da Associação Cristã de Moços. Eu
nunca tinha visto tantas pessoas pegarem tantos terços tão rápido.
     Uma ambulância o levou às pressas ao hospital. O medicamento tinha
acelerado seus batimentos cardíacos, e o sangue estava correndo tão rápido
que ele ficou tonto e desmaiou.
     Minha mãe era neurótica em relação à nossa saúde desde a nona semana
de vida intrauterina, quando batia na própria barriga e gritava: ―Vocês estão
mortos aí dentro? Então você pode imaginar como ela ficou assustada com o
Luke e a ambulância. Ela nunca mais o deixou tomar aquele remédio. Na
verdade, ela nunca mais deixou que ele tomasse nem a vitamina dos
Flintstones.
     Então, como ela reagiu quando o componente mais fraco de sua prole
apareceu no portão da Escola Preparatória Fordham enrolado em curativos?
     — Você está com uma aparência horrível! — ela choramingou.
     — Oi para você também — respondi.
     — O que há de errado com você? — meu pai perguntou, ansioso.
     — Eu sou um virgem pálido e assustador? Não, não era isso que ele
estava perguntando.
     — É uma reação alérgica — tranquilizei os dois. — É temporário.
     Fiquei superanimado quando vi que uma menina bonita estava
recolhendo os ingressos do jogo no portão da Fordham, já que eu estava
vestindo meu melhor traje: bermuda de praia, uma camiseta que deixava meus
mamilos à mostra e um quilômetro de ataduras.
     — Vamos lá, Rams! — disse a menina dos ingressos, fazendo um
admirável esforço para se concentrar no espírito esportivo e não nos meus
braços.
     Ela era morena. As morenas são minhas favoritas. Minha falta de sorte
era patética. Além de parecer uma aberração, quando me sentei na

arquibancada vi que era um dos poucos garotos com os pais e não com
amigos. Fiquei espremido entre o meu pai, que estava usando um boné da
Fordham (meu pai não usa boné por ser uma estrela do rap; ele consegue usar
da maneira mais ridícula possível), e minha mãe, que ficava esbarrando no
meu rosto toda vez que apontava para o Luke no campo.
     — Olha, ele está bebendo água! — ela dizia. — Olha, ele amarrou o
cadarço! Olha, ele cuspiu! Ah, Luke — minha mãe balançou a cabeça,
censurando o filho a uma distância de quinze fileiras —, isso não é nada
educado.
     Eu e meus pais olhávamos Luke sob a luz dos holofotes, no meio de
outros caras de enchimento branco. Ele se divertia pulando de um pé para o
outro. Outros jogadores faziam várias coisas homoeróticas que deveriam ficar
restritas ao vestiário: davam tapas na bunda uns dos outros, riam enquanto
davam seus apertos de mão secretos etc. Um deles se inclinou para dar uma
palmada no traseiro do Luke, o que encheu minha mãe de orgulho.
     — Olha! — ela disse alegremente. — Ele já fez amigos!
     Enquanto o locutor apresentava o outro time, o Holy Cross, parei de
prestar atenção no campo e comecei a olhar as arquibancadas. Como podia ter
tanta mulher ali? Fordham era uma escola só para meninos, mas havia garotas
por toda parte. Havia garotas em grupos que se inclinavam para trocar
confidências sob olhos arregalados. Havia meninas em turmas com meninos,
rindo na direção do garoto certo, falando mais alto que as outras, em busca de
atenção. Havia meninas que realmente gostavam de futebol, que desciam da
arquibancada para afundar os chinelos na lama ao lado da cerca e ficar mais
perto da ação. Aquelas garotas estavam ali para ver caras como o meu irmão.
     E Luke era algo que valia a pena ver. Fordham tinha optado por um jogo
veloz aquela noite. Acho que eles queriam mostrar o novo running back de
Indiana. Afinal, o mundo inteiro gira em torno do Luke. Quando ele foi
apresentado na escola nova, houve assobios e gritos, como se o elenco do
High School Musical estivesse fazendo uma excursão pelo shopping.
     E o Luke era ótimo mesmo, escapando dos defensores, fazendo dribles
afiados e arrancando a grama do campo com suas chuteiras, encontrado um
espaço livre e se jogando nele pouco antes de ser marcado, fazendo com que

uma pilha de uniformes verdes desmoronasse tentando pegá-lo. Eu já tinha
visto tudo isso antes — Luke se esquivando, correndo, zunindo e deslizando
entre os adversários. Ele usava essas mesmas táticas quando criança para
escapar da minha mãe em shoppings e aeroportos lotados. Você pode pensar
que a minha mãe tinha se tornado a Supernanny, o tempo todo tentando
controlar o filho, mas na verdade ela quase sempre desistia. Em seguida,
mandava que eu fosse atrás dele. Geralmente eu descobria uma rota mais
esperta, seguindo rente à parede e evitando as pessoas e os obstáculos que eu
sabia que não poderia vencer. Eu alcançava o Luke utilizando somente a
velocidade, não a habilidade. Essa falta de coordenação explica como eu
acabei com a cabeça numa caixa de pimentões — e por que apenas um de nós
se tornou jogador de futebol americano.
     No primeiro tempo, Luke marcou três touchdowns. Mas o outro time, o
Holy Cross, também era muito bom, e estava apenas um touchdown atrás. A
defesa deles melhorou no segundo tempo: dois marcadores foram
posicionados em cima do Luke na maioria das jogadas — uma dupla de
patetas formada por um baixinho e um altão, como o Crabbe e o Goyle dos
filmes do Harry Potter. Mas, na última jogada, Luke deu uma arrancada
impressionante. Ele correu como um cavalo e venceu com a velocidade de um
puro-sangue. Em seguida fez uma dancinha para comemorar que me fez ter
vergonha de ser seu irmão.
     Após a dança da vitória, o pessoal do time do Luke se juntou em volta
dele e arrancou seu capacete. Depois o fizeram sumir num turbilhão de afeto
masculino. De alguma forma, quando desci as arquibancadas para parabenizá-
lo, aquele monte de caras desleixados tinha sido substituído por uma multidão
de meninas. Nossa! De onde elas surgiram? Ele estava naquela escola fazia
somente quatro dias! Além disso, a escola não tem menina nenhuma! Mas ali
estavam elas, com suas saias xadrez de vários tons e casacos que exibiam a lista
inteira de escolas femininas da região: Ursuline, Holy Child, Sacred Heart.
Meu irmão funciona como um ímã para meninas de escolas católicas.
     E elas encontravam qualquer desculpa para pegar no Luke, mesmo ele
estando tão suado que parecia ter sobrevivido a um tsunami. As sortudas que
tinham chegado cedo apalpavam a melhor parte do território: os bíceps do

Luke. Outras apelavam para desculpas mais esfarrapadas: uma menina de
unhas feitas desenhou um 5 na frente da camisa dele, enquanto outra apareceu
para arrumar seus cabelos molhados de suor. Teve até uma garota que se
abaixou para amarrar os tênis dele.
     Luke acenou para mim de dentro de seu círculo de meninas.
     — Brou! — ele disse. — Valeu por ter vindo!
     — Você acabou com eles, cara — falei.
     — E diziam que o Holy Cross era bom! — ele riu. — Foi moleza.
     As meninas começaram a fazer perguntas para o Luke, principalmente
sobre suas proezas físicas e quanto ele malhava. Era como uma coletiva de
imprensa cheia de jornalistas a fim de paquerar. ―Quanto você consegue
levantar no supino? Será que consegue me levantar? Me levanta?
     Uma morena — muito mais o meu tipo que o do Luke — me olhou de
cima a baixo e perguntou:
     — Você é repórter do jornal da escola ou algo assim?
     Balancei a cabeça.
     — Sou irmão do Luke — respondi.
     — Ah, o irmão mais novo? — ela abriu um sorriso. — Ahhhh...
     Ela me examinava como alguém que tinha o potencial de ser bonito um
dia.
     — É... não — corrigi. — Nós somos... gêmeos.
     Seus olhos percorreram as ataduras em volta dos meus braços magrelos,
meu peito afundado, a pele arrepiada das pernas saindo da bermuda de praia
que eu ainda vestia e chegaram ao meu rosto e aos olhos totalmente pálidos.
     Então aquela morena disse uma coisa óbvia, verdadeira e terrível:
     — Vocês dois não são nada parecidos.
     Eu não saí de casa durante três dias após o jogo, o que deixou minha mãe
preocupada, pensando que eu fosse antissocial. Ela já suspeitava que eu fosse
antissocial desde o ano passado, quando não chorei no filme Diário de uma
paixão. Depois que ela me encorajou, consegui derramar uma lágrima. Só não
contei a ela que a lágrima era pelo fato de estar em casa numa sexta à noite,
assistindo a uma adaptação do Nicholas Sparks com a minha mãe.

      Nos últimos dias de agosto, usei o conselho do médico como desculpa e
disse que estava muito sol para mim fora de casa. Isso foi conveniente
também para me livrar de cortar a grama do jardim. E também foi meu álibi
para não ter de ficar olhando nossa vizinha de 17 anos, de uma família italiana
que alugava uma casa ali durante o verão, e que Luke disse que tomava sol
com os peitos de fora. Eu estava tão amargurado por minhas experiências
recentes que não queria ver outra adolescente na vida. Não queria nem ver os
peitos de outra adolescente. Mas no início de setembro, quando o tempo
começou a ficar chuvoso e nublado, eu não tinha mais desculpas (nem a
menina de topless, que fechou a blusa e entrou, para desgosto do Luke). Para
deixar minha mãe tranquila, decidi visitar alguns museus em Manhattan.
Estava ansioso para me perder entre múmias, dinossauros e outras espécies
que já estavam longe da adolescência.
      Para meu azar, sentei no trem bem de frente para três garotas. Será que as
meninas de Nova York nunca vão à escola? Bom, as minhas aulas também
não haviam começado. Eu podia ficar olhando pela janela. Ah, espera aí. Eu
não estava sentado na janela. Fazer o quê? Se eu tinha de olhar para frente,
prestaria atenção nos livros que as meninas estavam lendo — e não nos três
pares de pernas cruzadas abaixo deles.
      A capa do primeiro livro tinha o típico cara fortão e romântico. Ele tinha
cabelos loiros mais longos que os da mulher e uma camisa de pirata rasgada
para revelar os peitorais, que também eram maiores que os dela. Era um cara
que sabia falar cinco línguas e ganharia prêmios pelas manobras sexuais que
fazia. Era um sedutor.
      Eu jamais seria um cara daqueles.
      Na capa do segundo romance, o cara estava balançando um machado
perigosamente perto do rosto da mulher. Ela ainda sorria. O sujeito era do
tipo arrumadinho, de camisa de flanela e bíceps avantajados. Ele sabia lidar
com canoas e enfrentar ursos, além de fisgar peixes e grelhá-los para o jantar.
Era como aquele cara do Discovery Channel que arranca as tripas de um
búfalo e dorme dentro da carcaça.
      A capa do terceiro livro era diferente. Primeiro, o título era Sede de sangue,
o que não parece muito romântico. As letras eram enormes e vermelhas,

pingando sangue. Nessa capa, a moça estava em destaque. Embora usasse um
vestido branco de renda e fizesse cara de inocente, como a que se vê em
crianças em comerciais de suco, ela ostentava um decote bem generoso. O
Grand Canyon dos decotes. Admito que me inclinei para examinar aquilo com
mais atenção (ei, é literatura!), mas foi então que o cara na capa me chamou
atenção. Não, não do jeito que você está pensando. Para falar a verdade, ele
não era nem um pouco sexy.
     O cara da capa de Sede de sangue espreitava a garota a distância, atrás dela.
Ele tinha má postura. Seus braços estavam cruzados. Ele era sombrio. Sua
pele tinha cor de papel. E seus olhos... eram como os meus! Eram
fantasmagóricos, azulados como uma bola de cristal. Por que a garota do
decote estava com ele? Qual era o segredo daquele cara?
     A menina do livro do machado olhou para a menina do Sede de sangue.
Sorriu e disse:
     — Eu amo esse livro.
     A menina do livro do pirata sexy foi conferir do que as outras duas
estavam falando.
     — Ah, eu também! — ela concordou. — Esse cara é muito sexy!
     Todas elas gemeram ao mesmo tempo. Gemidos sensuais e desesperados.
Em algum lugar, o cara que faz o som dos filmes pornôs estava querendo
morrer pelo que tinha perdido ali.
     — Ele é TÃO sexy! — enfatizou a menina do Sede de sangue.
     Mas por quê?, pensei. Eu estava louco para perguntar em voz alta. Se o cara
de que elas estavam falando era o cara da capa, o que ele tinha de sexy? Ele era
magro! E pálido!
     — Ele é tão melancólico — disse a primeira menina.
     — Espera aí, eu era melancólico! Na verdade, eu estava melancólico
naquele exato momento!
     — Ele é tão inteligente — declarou a segunda.
     Eu sou inteligente! Eu sou inteligente! Posso mostrar meu boletim para
provar.
     — Ele é tão atencioso — acrescentou a terceira.

     Atencioso? Ninguém é mais atencioso do que eu! Você vai ver! Eu vou
perseguir você na rua com a primeira edição do seu livro favorito!
     O que estava acontecendo ali? Ou ser melancólico, inteligente, magro e
pálido tinha de repente se tornado sexy — e meu carma estava me
recompensando por aquela vez em que o padre sugeriu que eu fizesse
bronzeamento artificial para que não sumisse no manto de coroinha —, ou eu
tinha acabado de encontrar meu fã-clube. Eu já tinha sonhado várias vezes
com esse dia. Chamaria minhas fãs de ―Fanbars.
     — Pois é — a primeira menina disse. — Sou apaixonada por vampiros.
     Peraí, o que foi aquilo? Dá licença? Perdão? Eu tinha ouvido certo, junto
com o anúncio do condutor de que ―o trem lotado não é justificativa para
toques impróprios? Aquela menina disse que... é apaixonada por vampiros?
     — Comecei com Sede de sangue — a segunda menina falou. — Depois li
todos os livros da saga Crepúsculo. E quando terminei todos, li tudo sobre
vampiros. Eu fiquei obcecada!
     Era isso! Tudo fazia sentido agora! As garotas adoravam vampiros! Como
eu pude esquecer a mania Crepúsculo? Robert Pattinson e sua cara pálida em
todos os lugares? Recebendo o prêmio de Mais Gostoso, ou de Melhor Beijo,
ou qualquer outra coisa que a Nickelodeon e a MTV pudessem inventar?
     Então, isso significava que a loira do trem não tinha me xingado quando
me chamou de vampiro. Ela não tinha pensado que eu era um assassino
chupador de sangue. Tinha pensado que eu era um assassino chupador de
sangue com sex appeal.
     E ela não tinha sentado do meu lado porque era sem noção. Ela não era
louca. Ela estava atraída por mim! Ok, alguns podem dizer que dá na mesma...
     Uma onda de otimismo e sensação de poder tomou conta de mim, o que
é bastante incomum quando se tem um metro e oitenta e cinco de altura e
apenas sessenta quilos. Talvez eu não pudesse bancar o lenhador sexy ou o
amante latino de camisa rasgada. Para falar a verdade, eu não sabia nem abrir
um sutiã. Mas, quando o negócio era ser pálido e ter cara de morto, quando o
assunto era ser fora de moda e um pouco estranho, eu podia seguir essa
tendência como ninguém.
     Eu me transformaria num vampiro.

    Quando uma tempestade desabou sobre a linha do trem, parecia o
momento perfeito para o meu batismo. O calor do início do outono provocou
uma rajada de raios, e eu me tornei um novo homem. Um homem corajoso,
destemido, que impõe respeito. Um homem com sede de sangue.
    Levantei e (em silêncio) declarei: Finbar Frame, vampiro.
    Em seguida, o condutor do trem passou pelo corredor e me mandou
sentar. Ele também me lançou um olhar desconfiado, como se eu estivesse
tocando pessoas de maneira imprópria. Acho que ele percebeu meu poder
recém-descoberto e se sentiu ameaçado.
    Mas confesso que acabei me sentando.

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