Eu havia sido rejeitado por
uma francesa malvada e farejado como uma
salsicha italiana por turistas famintos. Dava para
ficar pior?
— Finn! É
você?
Sim, dava.
Minha mãe. Ela ia exigir uma reprise do pior encontro de
todos os tempos desde que pegaram Adão e Eva
trapaceando. Ela veio
caminhando da sala de estar, onde tinha travado um
combate com nosso novo
filtro de ar, que comprara porque nossa casa em Pelham
era mais antiga que a
de Alexandria, o que a convenceu de que o lugar estava
cheio de micro-
organismos malignos.
— Finbar! —
ela começou, flutuando em torno de mim como um beija-
flor que tomou energético. — Como foi o encontro?
— Ah —
comecei a responder, enquanto fechava a porta. — Foi bom.
— Celine
gostou do jantar? Você está com um cheiro delicioso. Deve ter
sido ótimo.
É, cheiro
de humilhação, pensei. Enquanto tirava os sapatos, minha mãe
me seguiu. Eu estava acostumado com isso. Mas dessa vez
ela não sacou seu
conjunto de vassoura e pá para varrer as moléculas de
sujeira invisíveis, porém
mortais.
— O jantar?
— respondi. — Ah, ela pediu um monte de comida.
Minha mãe
bateu palmas, entusiasmada.
|
— Isso quer
dizer que ela gostou! E o livro?
— É... —
tentei evitar a pergunta e escapar de uma vez por todas subindo
a escada, que estava com o corrimão coberto de
protetores de assento de vaso
sanitário. Olha o que acontece quando eu deixo essa
mulher sozinha numa
sexta à noite.
Minha mãe me
seguiu sem a menor cerimônia escada acima e até o quarto
que eu dividia com o Luke. Tínhamos quartos separados
desde a época que
começamos a botar para quebrar ao som de músicas
infantis, mas aqui em
Pelham dormíamos no mesmo quarto. Luke quase nunca
estava em casa,
ocupado com os treinos de futebol americano e o monte
de amigos que tinha
feito em apenas cinco dias. Mas ele tinha deixado um
rastro de suor e
entusiasmo excessivo para me fazer companhia, além de
um monte de grama,
suficiente para transformar nosso quarto em um campo de
futebol.
Depois que
passamos a dividir o quarto, ficou muito mais difícil evitar o
Luke do que na época em que eu podia inventar uma
desculpa qualquer e
recusar convites para orgias suecas com latas de
cerveja amassadas (ou
qualquer outro evento bizarro que ele tivesse
planejado). Agora, quando
minha mãe achava garrafas de cerveja irlandesa
escondidas dentro de sapatos
no armário, eu era chamado para o interrogatório
(―Finbar, isso aqui é seu?‖
―Eu não bebo cerveja.‖ ―Luke, isso aqui é seu?‖ ―Eu acho que veio junto com
o sapato. Ele é de couro irlandês.‖). Eu estava presente quando ela colocou a
garrafa vazia sobre a nossa cômoda e a encheu de
flores, com um bilhete
sobre os perigos do envenenamento por álcool. Eu também
estava lá quando
Luke olhou para a garrafa e disse: ―Ei, acho que
reconheço este vaso. Não
veio da casa do vovô?‖ E quando ele cuspiu seu chiclete mastigado no bilhete
sobre envenenamento por álcool. Mas onde estava o Luke
quando eu
precisava dele?
— Ela gostou
do livro? — minha mãe cutucou.
Pensei por
um segundo.
— Causou
impacto — respondi, sem mentir.
— Maravilha!
— Minha mãe se enrolou na colcha da minha cama e nem
tentou arrancar as bolinhas do tecido. Ela adorava
ouvir histórias de amor.
— Quando
você vai vê-la novamente? — perguntou, ansiosa.
|
— Ainda não
sei.
— Você não
marcou outro encontro?
— Não — eu
disse, tentando dar a impressão de que não me importava.
— Acho que é melhor a gente ser amigos.
Quando me
virei, minha mãe estava me encarando com um olhar de
cachorro pidão.
— Ah, Finbar
— ela disse. — Eu sinto muito...
Fiquei feliz
quando meu pai interrompeu. Botando a cara na porta, ele
disse:
— Ei, Finn!
Você tem que ir lá embaixo conferir a nova TV. Essa tela de
alta definição é demais. Dá para ver o suor no...
— Paul! —
gritou minha mãe, ofendida.
— O quê?
Meu pai
ficou um pouco assustado. Todos nós morríamos de medo da
minha mãe.
— Você não
perguntou ao Finbar sobre o encontro!
— Ah,
desculpe — meu pai respondeu. — Finn, como foi o encontro?
— Paul! Não
pergunte a ele sobre o encontro! — ela interrompeu. Em
seguida avançou na direção do meu pai e falou baixinho,
mas não o suficiente:
— As coisas
não correram bem.
— Finbar —
aconselhou meu pai com as mãos na cintura, bloqueando a
entrada do quarto —, você nunca vai entender as
mulheres.
— Não fale
essas coisas para ele! — censurou minha mãe, atrás dele. —
Você me entende.
— Não, não
entendo — respondeu meu pai. — Acabei de deixar você
puta da vida.
— Olha a
boca, Paul.
— Enfim, eu
não quis dizer que o Finbar nunca vai entender as mulheres
— ele explicou. — Eu disse ―você‖. Quis dizer ―você‖ em geral, um ―você‖
coletivo. ―Você‖ como todos os homens...
— Já chega,
Paul — minha mãe interrompeu.
— Então,
Finn, vamos lá para baixo e...
— Sem essa
de TV outra vez! — ela falou. — Ele não precisa daquele
|
tipo de radiação...
E lá se foi
minha mãe atrás do meu pai. Apesar de tudo, ela realmente me
fez sentir um pouco melhor sobre Celine. Talvez eu não
precisasse de outra
maluca na minha vida.
Minha mãe
tinha um plano a longo prazo para me consolar e reconstruir
minha autoestima. Ela escondia bilhetes elogiosos no
meu armário e embaixo
do meu travesseiro. O primeiro, por exemplo, estava
enfiado entre minhas
cuecas e dizia: ―Qualquer menina que ficasse com você
seria uma sortuda‖.
Outros bilhetes elogiavam meu físico e meu sex appeal,
o que me deixou
perturbado. Quem quer que tenha ensinado a palavra
tesudão para minha mãe
devia ser processado.
O plano a
curto prazo dela era que no sábado todos nos reuniríamos para
um dia na praia em família. Iríamos aproveitar o sol,
nadar, restaurar meu
senso de masculinidade e comer sanduíches de peru. O
plano rapidamente
furou. Luke caiu fora porque tinha jogo com o time de
futebol de Fordham.
Ele iria passar a manhã treinando, então sobraram Maud,
Paul e eu.
A porta do
meu quarto se abriu às nove horas. Me erguendo sobre o
ombro direito dolorido, olhei ao redor. Luke já havia
saído. Minha mãe surgiu
como um carcereiro com um copo de suco de laranja na
mão.
— Acorde! —
ela me chamou. — É dia de praia!
Quando
terminei o suco, minha mãe me jogou dentro do carro com um
guarda-sol, um isopor cheio de Coca-Cola light e um
tubo de protetor solar
fator 50. No caminho, meus pais começaram a discutir
sobre o brinquedinho
novo do meu pai, o GPS do carro. Quando ouço os dois
discutindo sobre
coisas triviais, como postes telefônicos e a validade
de um pacote de passas
(―Elas sempre foram enrugadas, Maud!‖ ―Não tão enrugadas, Paul. Essas aqui
viraram múmias!‖), esqueço que já foram apaixonados. Mas é verdade. Aliás,
minha mãe jura que foi amor à primeira vista.
Imagine só: Chestnut Hill,
Massachusetts, 1978. Minha mãe era uma nerd
que tinha acabado de entrar na faculdade e assistia a
um jogo de hóquei na
Universidade de Boston através das lentes fundo de garrafa
de seus óculos.
Com suas duas colegas de quarto, ela não parava de dar
risadinhas e de
apontar para os jogadores bonitões. Era duro sentir
alguma atração, minha
|
mãe me contou, já que os caras usavam máscara,
protetores, camisa e luvas —
e elas ainda por cima estavam nas cadeiras mais
distantes. Mas de alguma
forma ela se apaixonou pelo meu pai, um aluno novato
que jogava na ala
esquerda do time de hóquei. Para falar a verdade, ela
se apaixonou pela palavra
FRAME formada por esparadrapos atrás da camisa dele.
— Eu não
conseguia ver o rosto dele — minha mãe costumava lembrar,
sonhadora. — Mas me apaixonei. Naquele instante. Mesmo
com a máscara, as
luvas e todo o resto. Para falar a verdade...
(Nessa hora
ela sempre olhava em volta para ver se meu pai não estava
por perto.)
— Para falar
a verdade, eu pensei que ele tinha uns dez quilos a mais de
músculos. Era aquela armadura peitoral, sabe?
Assim, minha
mãe se apaixonou pelo meu pai naquele primeiro jogo de
hóquei para os calouros. E meu pai nem sabia que ela
existia. Na tentativa de
ser notada, ela se tornou repórter esportiva do jornal
da faculdade. Pensou que
os dois começariam a conversar, com perguntas e
respostas inteligentes entre
repórter e entrevistado, e que aquilo poderia se
transformar em amor. Até hoje
ela tem cópias dos jornais da faculdade daquela época.
Ela entrevistou meu pai
para sete artigos diferentes no primeiro ano. E toda
vez ele se apresentava
para ela, pois não lembrava que já se conheciam.
No segundo
ano, minha mãe resolveu se esforçar mais. Ela se juntou à
equipe de hóquei. Pesando quarenta e cinco quilos, ela
arrastava as enormes
mochilas de equipamentos, cheias de patins e protetores,
de Boston para
Michigan, de Quebec para Toronto. Ela viajava com meu
pai. Limpava o
armário dele. Sentava numa cadeira especial, bem perto
do rinque, para assistir
às partidas. Houve até um incidente íntimo envolvendo
Gelol, cujas
circunstâncias eu nunca conheci por completo. Meu pai
era educado, sempre
agradecia minha mãe pelas toalhas e pelas garrafas de
Gatorade que ela
fornecia — mas nunca a chamava pelo nome.
No anuário
do segundo ano da minha mãe, uma de suas amigas escreveu:
―Missão para o ano que vem: CONHECER O PAUL ALTO‖. As palavras
―Paul alto‖ foram escritas em letras finas e altas, como meu pai.
Essa história
de luxúria materna me deixa meio perturbado, mas também
explica minha
|
tendência a me apaixonar a distância.
Mas minha
mãe quase desistiu de sua presa — quer dizer, de seu amor.
No penúltimo ano da faculdade, ela trocou a seção de
esportes do jornal pela
de artigos. Também desistiu do cargo no time de hóquei
e nem assistia mais às
partidas. Quer dizer, até que os Eagles se
classificaram para as finais. Então
minha mãe foi ver uma partida, o primeiro jogo daquela
fase. Ela se sentou na
terceira fila, à esquerda da proteção de vidro. E meu
pai conseguiu acertar o
disco bem na cara dela.
Tiveram de
parar o jogo por causa do tumulto. Todo mundo que estava
sentado perto da minha mãe se levantou e ficou em volta
dela. Meu pai
escalou a mureta, subiu pela arquibancada e passou
pelas pessoas, com suas
gigantescas e desajeitadas luvas de hóquei. Ele subiu
pelos degraus
emborrachados sem tirar os patins, deixando um rastro
de gelo derretido.
— Todo mundo
se afastou e eu a vi, chorando e com sangue jorrando do
nariz — meu pai costuma dizer. Esse é o jeito que ele
conta a história. — E eu
me apaixonei ali mesmo. Me apaixonei por ela. E eu
nunca tinha visto aquela
garota em toda a minha vida!
A praia de
Glen Island ficava a dez minutos de casa, no Estuário de Long
Island, uma enseada do oceano Atlântico. Não tinha
grandes ondas nem nada,
mas era um lugar bonito, com boias, barcos e todas
essas coisas. Depois de
arrastar a cadeira de praia ergonômica do meu pai por
quarenta e cinco metros
pela areia, eu estava começando a suar e louco por um
mergulho. Também
queria entrar e sair da água antes que chegassem
pessoas da minha idade.
Minha pele ficava quase transparente quando eu me
molhava. Preferia usar
uma camiseta branca a ir só de bermuda, embora eu
ficasse quase igual nos
dois casos.
— Finbar,
não esqueça do filtro solar — disse minha mãe.
— Está com
meu pai.
Meu pai é
tão pálido quanto eu, mas, devido à idade avançada, está um
pouco mais próximo do câncer de pele. Por isso deixei
que ele atacasse o
protetor antes. Sentei na cadeira ergonômica (nossa,
era confortável — não
que valesse o esforço de arrastar aquilo pela areia,
mas...) e dei uma olhada
para o Estuário de Long Island, com pensamentos
profundos sobre a água, o
|
renascimento e perder a virgindade. Ou melhor, sobre não
perder a
virgindade. Eu não estava nem a cem quilômetros de
perder a virgindade. Não
estava nem na mesma revolução planetária de... ok, você
já sacou.
De repente,
tive uma visão. Eu, todo molhado, com uma roupa grudada
na pele. Soa assustador, eu sei. Mas eu estava me
imaginando como surfista.
Um surfista! Eu poderia ser um surfista! Eu gostava de
praia. E não me
importava com o esforço físico. Eram só esportes
coletivos que eu detestava.
ão tão agressivos, e eu não sou desse tipo. Nem mesmo
na mesa de jantar. Sou
sempre eu que fico com o último pedaço de frango.
Duas meninas
da minha idade apareceram na praia e confirmaram na
mesma hora meu amor pelo estilo de vida do surfe. Elas
não tinham nenhuma
cadeira ergonômica e andavam descalças pela areia. Seus
biquínis eram tão
pequenos quanto seus óculos de sol eram grandes. Ou
seja, alucinadamente
pequenos. Aquilo era inacreditável para mim. Era
inacreditável que pudessem
andar por aí daquele jeito. A bunda exposta. As coxas
bronzeadas. Os seios
arredondados. Sim, eu definitivamente gostava de surfe
— ou pelo menos do
uniforme. Eu poderia olhar meninas como aquelas o dia
todo. Eu poderia ser
um rato de praia. Eu poderia ser um pegador. Eu poderia
ser...
— Vermelho
como um sinal de trânsito, Finbar! — meu pai observou,
com o nariz coberto de pasta branca. Minha mãe se
aproximou, usando um
chapéu do tamanho de um estádio de futebol. Como você
pode notar, meus
pais quase não dão vexame.
— Ah, não! —
ela gritou, enquanto cobria os olhos com as mãos. —
Finbar, eu não consigo nem olhar para você!
Em pânico,
olhei para o meu ombro. Eu tinha ficado com um hematoma
enorme no formato de um arco-íris nojento por causa do
acidente com os
pimentões. Mas como eu estava de camiseta, não era
aquela marca que estava
deixando minha mãe pirada.
— Como ele
se queimou tão rápido? — meu pai perguntou. — Nós só
estamos aqui há vinte minutos.
— Eu não
consigo olhar! — minha mãe gritou. Em seguida, espiou por
entre os dedos e gemeu.
— Não olhe
para o rosto dele se isso te deixa descontrolada — observou
|
meu pai.
De quem eles
estavam falando, do Fantasma da Ópera?
— O que está
acontecendo? — perguntei. — Meu rosto está meio
coçando.
— E seus
braços — completou meu pai.
— Eles não
estão coçando — retruquei.
— Mas vão
coçar — ele disse, em tom de ameaça.
Olhei para
baixo. Bolotas vermelhas pipocavam em meus antebraços. Eu
parecia uma pizza de calabresa, só que não tão gostosa.
Na verdade, nem um
pouco gostosa. Eu estava nojento. Havia umas manchas
vermelhas grandes,
com um dedo de diâmetro, e algumas estavam salientes. E
meu pai tinha
razão: elas começaram a coçar.
— Talvez ele
tenha sido mordido por algum bicho — minha mãe disse.
— Talvez ele tenha sido picado por algum inseto de Nova
York.
— Um o quê?
— perguntou meu pai, completamente perdido.
— Ele
precisa ir ao médico — respondeu minha mãe, olhando de
propósito para o meu pai e evitando minha aparência de
aberração. — Vamos
lá, Paul, você junta as coisas e eu vou pegar o Finn
e...
Ela tinha
criado coragem para me ver, então tirou as mãos da frente dos
olhos.
— AHHHH! —
gritou, acabando com meus tímpanos. Até meus braços
doeram. E meu rosto. E minhas pernas, logo abaixo dos
joelhos. Eu estava
destruído, vermelho, ardido e cheio de coceira.
— Mãe, se
você quiser que eu vá ao médico, eu vou sozinho — eu disse.
— Não tenho 12 anos.
— Pode ir de
carro, Finn — meu pai falou.
— Ele não
pode dirigir desse jeito! — minha mãe reclamou.
Aquilo não
fazia o menor sentido.
— Vou pegar
o trem — informei.
— Você ao
menos sabe onde fica o consultório médico? — perguntou
minha mãe.
— É claro
que sei! — respondi, irritado. — É o lugar para onde você me
arrastou para tomar oito vacinas e arranjar uma máscara
contra gripe suína!
|
Tentei dar o
fora dali, mas é bem difícil sair correndo de chinelo de dedo.
O veredicto
do médico foi o seguinte:
— Você é
alérgico ao sol.
O quê? Como
isso é possível? O sol é uma coisa natural. Uma coisa boa
para as pessoas. Isso é como ser alérgico à água ou ao
ar. Ou a alguma coisa
muito importante, como bolacha recheada. Passei ao todo
vinte minutos na
praia esse verão e virei um monstro?
— Urticária
solar — ele continuou. — É assim que se chama. O sol faz
com que apareçam erupções na sua pele.
Eu
definitivamente não ia mais ser surfista. E acho que também não ia
mais para a escola. Ou para a igreja. Oba, eu ia ficar
livre da igreja! Até que
enfim uma notícia boa! Mas ficar trancado no quarto
como se fosse o
Corcunda de Notre Dame? Essa notícia não era tão boa.
— O sol já
tinha causado isso em você antes? — perguntou o médico.
Claro que
não. Eu não sou exatamente um aventureiro, mas sobrevivi a
tardes de verão ao ar livre desde criança até hoje.
Para cada duas horas que
passava vidrado na bibliotecária da seção infantil, eu
ficava uma hora na
piscina pública de Alexandria, cultivando meu bronzeado
de estivador.
— Então
vamos atribuir isso à mudança de ambiente — o médico falou.
— Espero que seja temporário. Evite exposição ao sol
por mais de meia hora
nos próximos meses, está certo?
Meia hora?
— Enquanto isso, vou lhe receitar um
anti-histamínico — ele continuou.
— E pedir para as enfermeiras colocarem ataduras em
você. É preciso
proteger essa pele!
Depois,
parecendo um fugitivo de uma colônia de leprosos, peguei o trem
até o Bronx para encontrar meus pais no jogo de futebol
do Luke. O médico
tinha me dado um remédio que baixou a temperatura da
minha pele e eu não
sentia mais coceira. Mas, embora eu não estivesse mais
tão vermelho (mais
para pêssego do que para tomate), os enfermeiros tinham
me dado aqueles
óculos escuros gigantescos, considerados estilosos
talvez em asilos.
As
enfermeiras também tinham enfaixado meus braços, dos pulsos até as
mangas da camiseta, fazendo com que eu parecesse, do
pescoço para baixo, o
|
Homem Invisível. Mas eu estava bem visível, mesmo
largado num banco
perto do banheiro do trem. Uns pirralhos ficavam
apontando para mim.
Donas de casa me olhavam de um jeito triste e
solidário, mas afastavam os
filhos de mim, morrendo de medo que fosse contagioso.
Um homem de terno
pensou que eu fosse cego e atirou uns trocados no meu
colo. Depois desse
incidente, resolvi tirar os óculos escuros.
Bom, pelo
menos ninguém sentou do meu lado. Até a estação de Mount
Vernon East, quando uma loira mais ou menos da minha
idade entrou no
trem. Detesto loiras, detesto mesmo. Não que eu pense
que elas são boas
demais para mim — elas é que pensam. Todas as loiras
que conheci me
cortaram na hora, das loiras da Playboy até as
descoladas de cabelo curto e
óculos. As loiras sempre acham que você está a fim
delas.
E eu não
estava a fim daquela loira. Não queria olhar para ela. Não a
queria nem perto de mim. Mas ela veio direto pelo
corredor, passou três
assentos vazios e resolveu se sentar bem do meu lado.
Ficou me olhando mais
um pouco, o que me deu uma sensação estranha. Eu não
sou o tipo de cara
que as garotas cobiçam como se fosse um sapato caro.
A princípio,
a loira não disse nada. Estava com a cara enterrada num livro
enorme enquanto o trem seguia em direção a Fordham. Mas
de vez em
quando olhava para as ataduras que cobriam meus braços
de cima a baixo, as
manchas avermelhadas em minhas mãos e o reflexo oleoso
da pomada em
minha pele. Em seguida, me perguntou:
— O que aconteceu com seus braços?
Vá cuidar da sua própria vida.
— Muito sol — resmunguei. Quando alguém me enche o
saco, eu viro
mesmo um troglodita.
— Ah, tá! —
ela respondeu. A garota estava feliz da vida, apesar das
minhas ataduras e erupções. Aparentemente, ela sentia
prazer com a desgraça
alheia.
Então
perguntou:
—Você já leu
este livro?
Olhei para o
lado. Ela me mostrou a capa. Havia uma masmorra de pedra
assustadora, além de morcegos e um homem de capa, com
garras e caninos
|
afiados. O título era Terror noturno.
—
Terror noturno? — respondi alto. — Não, não li.
E não estou a fim de papo, tive vontade de dizer também. Nem mesmo sobre
livros.
— Ah, é
incrível! — ela falou, animada. Em seguida começou a me contar
a história toda... de todas as trezentas páginas.
Começou contando sobre os
ancestrais dos personagens principais e tudo que tinha
acontecido com eles,
depois sobre a segunda geração e tudo que tinha
acontecido com eles também,
com seus primos, com o cachorro do vizinho do irmão da
cabeleireira... e
continuou sem parar. Posso contar o que aconteceu com
toda aquela gente (e
com seus animais de estimação) em seis palavras: todos
eles acabaram mortos
por vampiros.
— E então, a
tataraneta acha que pode transformar o vampiro — a garota
continuou. Ela gesticulava tanto que fiquei com medo de
levar um soco no
meio da cara.
— Aí ela
aparece no castelo à noite. E, tipo, rola uma química entre os
dois. Como uma faísca, sabe? Então eles ficam cada vez
mais perto um do
outro e se beijam. Os dois estão se beijando e ela acha
que ele tem todas as
emoções de um ser humano. Mas ele avança no pescoço
dela... e dá uma
MORDIDA! Ele suga todo o sangue do corpo dela...
— Hum... —
interrompi, de mau humor. — Parece interessante. É
melhor você não me contar mais nada. Senão vai estragar
a surpresa do final.
— É verdade!
— a loira disse, animada. — Você tem mesmo que ler.
Acho que você vai adorar este livro.
Emiti um som
qualquer para me livrar dela e me virei para olhar pela
janela.
Ela só me
deu um minuto de sossego. Logo depois, chegou bem pertinho
e sussurrou no meu ouvido:
— Eu sei o
que você é.
Virei a
cabeça e quase acertei o rosto dela.
— O quê?
— Eu sei o
que você é — a loira repetiu. Para ter certeza de que eu tinha
entendido, ela apontou para os meus braços enfaixados.
O quê? Ela sabia que
|
eu era alérgico ao sol?
Então ela
apontou para o meu rosto, que não estava coberto de urticária.
E para os meus olhos sinistros de husky siberiano. Ela
sabia o que eu era?
Sabia que eu era o perdedor na loteria genética? Um
futuro portador de câncer
de pele?
— Um vampiro —
ela sussurrou.
Ai, meu
Deus. As loiras não apenas me odeiam, elas também são malucas.
Ela apontou
para a capa do livro. Lá estava o vampiro, um velho branco,
com unhas podres assustadoras e a cara tão enrugada
quanto uma uva-passa
vencida. Ele usava uma capa totalmente metrossexual.
Tinha deixado o
cadáver de uma mulher no canto do seu apavorante
calabouço. E estava
curtindo com alguns morcegos rosados que provavelmente
eram seus únicos
amigos.
Como aquela
garota ousava me dizer aquilo? Eu não sou velho! Eu não
sou assustador! Eu não sou um assassino! E mais
importante: eu nunca usaria
uma capa. Uns meninos que enfrentei numa competição de
conhecimentos
gerais do colégio usavam capas em vez do uniforme, e
eram uns esquisitões
completos. Além disso, eu não me sentava em um
calabouço frio e ficava
chupando sangue e conversando com morcegos, conspirando
para atrair
mulheres até lá. Eu tenho um irmão, uma família e uma
vida! Ok, ainda
preciso conspirar para atrair mulheres. Mas eu não bebo
o sangue delas!
De repente,
a frustração de uma semana de insultos acumulados me
atingiu em cheio. Odiei aquela loira que eu não
conhecia, com todas as minhas
forças. Odiei aquele cabelo loiro e aquele livro de
terror idiota. Odiei as
conclusões que ela tirava das outras pessoas com base
nas raras condições
médicas e na pele pálida que apresentavam. Odiei os
sapatos idiotas e as
roupas idiotas dela. Odiei aquele colar imbecil que
dizia ―melhores amigas‖ e
tinha formato de metade de um coração. Odiei quem tinha
a outra metade,
porque era uma idiota por ser amiga daquela garota.
— Sabe de
uma coisa? — eu disse violentamente, levantando com raiva
(para em seguida cair no banco à minha frente porque o
trem sacudiu; mas
minha raiva continuou intacta). — Se eu sou tão
medonho, tão assustador, se
sou um vampiro
— disse bem alto —, por que você
sentou do meu lado?
|
— Não —
interrompeu a garota. — Você não entendeu...
— Claro que
entendi — eu disse. Me espremi para passar por ela, ficando
preso como um idiota em seus joelhos, mas continuei
forçando passagem até
chegar ao corredor do trem.
— Eu entendi
que você é uma imbecil — falei. — E que você deveria ter
sentado do lado daquele cara que parece um mendigo.
O cara que
parecia um mendigo do outro lado do corredor levantou os
olhos e me encarou.
— Ou daquele
cara que fica olhando de um jeito esquisito para os peitos
daquela garota — continuei.
Esse cara,
sentado no terceiro banco do vagão, baixou o olhar na mesma
hora em direção ao jornal, que estava de ponta-cabeça.
E a garota, do outro
lado do corredor, abotoou a jaqueta.
— Mas você
não fez isso! — eu disse para a loira. — Você sentou do
meu lado.
— Você não
entendeu — ela insistiu. — Eu adoro vampi...
— Vou sair
fora — falei. — Minha estação é a próxima.
Fiquei ali
me segurando, tentando não olhar de novo para a loira. Ou para
o cara que acusei de estar secando os peitos da menina.
Ou para o homem de
negócios que estava indignado por eu não ser cego — nem
pensar que eu ia
devolver a grana. E então percebi que sair correndo do
trem estava se
tornando algo meio anticlimático, porque ainda rolariam
uns três minutos de
silêncio angustiante antes que o trem finalmente
parasse e as portas se
abrissem em Fordham.
|
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