domingo, 4 de novembro de 2012

Capítulo 3 (Doce Vampiro)


Eu havia sido rejeitado por uma francesa malvada e farejado como uma
salsicha italiana por turistas famintos. Dava para ficar pior?
      — Finn! É você?
      Sim, dava. Minha mãe. Ela ia exigir uma reprise do pior encontro de
todos os tempos desde que pegaram Adão e Eva trapaceando. Ela veio
caminhando da sala de estar, onde tinha travado um combate com nosso novo
filtro de ar, que comprara porque nossa casa em Pelham era mais antiga que a
de Alexandria, o que a convenceu de que o lugar estava cheio de micro-
organismos malignos.
      — Finbar! — ela começou, flutuando em torno de mim como um beija-
flor que tomou energético. — Como foi o encontro?
      — Ah — comecei a responder, enquanto fechava a porta. — Foi bom.
      — Celine gostou do jantar? Você está com um cheiro delicioso. Deve ter
sido ótimo.
      É, cheiro de humilhação, pensei. Enquanto tirava os sapatos, minha mãe
me seguiu. Eu estava acostumado com isso. Mas dessa vez ela não sacou seu
conjunto de vassoura e pá para varrer as moléculas de sujeira invisíveis, porém
mortais.
      — O jantar? — respondi. — Ah, ela pediu um monte de comida.
      Minha mãe bateu palmas, entusiasmada.

     — Isso quer dizer que ela gostou! E o livro?
     — É... — tentei evitar a pergunta e escapar de uma vez por todas subindo
a escada, que estava com o corrimão coberto de protetores de assento de vaso
sanitário. Olha o que acontece quando eu deixo essa mulher sozinha numa
sexta à noite.
     Minha mãe me seguiu sem a menor cerimônia escada acima e até o quarto
que eu dividia com o Luke. Tínhamos quartos separados desde a época que
começamos a botar para quebrar ao som de músicas infantis, mas aqui em
Pelham dormíamos no mesmo quarto. Luke quase nunca estava em casa,
ocupado com os treinos de futebol americano e o monte de amigos que tinha
feito em apenas cinco dias. Mas ele tinha deixado um rastro de suor e
entusiasmo excessivo para me fazer companhia, além de um monte de grama,
suficiente para transformar nosso quarto em um campo de futebol.
     Depois que passamos a dividir o quarto, ficou muito mais difícil evitar o
Luke do que na época em que eu podia inventar uma desculpa qualquer e
recusar convites para orgias suecas com latas de cerveja amassadas (ou
qualquer outro evento bizarro que ele tivesse planejado). Agora, quando
minha mãe achava garrafas de cerveja irlandesa escondidas dentro de sapatos
no armário, eu era chamado para o interrogatório (―Finbar, isso aqui é seu?
―Eu não bebo cerveja. ―Luke, isso aqui é seu? ―Eu acho que veio junto com
o sapato. Ele é de couro irlandês.). Eu estava presente quando ela colocou a
garrafa vazia sobre a nossa cômoda e a encheu de flores, com um bilhete
sobre os perigos do envenenamento por álcool. Eu também estava lá quando
Luke olhou para a garrafa e disse: ―Ei, acho que reconheço este vaso. Não
veio da casa do vovô? E quando ele cuspiu seu chiclete mastigado no bilhete
sobre envenenamento por álcool. Mas onde estava o Luke quando eu
precisava dele?
     — Ela gostou do livro? — minha mãe cutucou.
     Pensei por um segundo.
     — Causou impacto — respondi, sem mentir.
     — Maravilha! — Minha mãe se enrolou na colcha da minha cama e nem
tentou arrancar as bolinhas do tecido. Ela adorava ouvir histórias de amor.
     — Quando você vai vê-la novamente? — perguntou, ansiosa.

     — Ainda não sei.
     — Você não marcou outro encontro?
     — Não — eu disse, tentando dar a impressão de que não me importava.
— Acho que é melhor a gente ser amigos.
     Quando me virei, minha mãe estava me encarando com um olhar de
cachorro pidão.
     — Ah, Finbar — ela disse. — Eu sinto muito...
     Fiquei feliz quando meu pai interrompeu. Botando a cara na porta, ele
disse:
     — Ei, Finn! Você tem que ir lá embaixo conferir a nova TV. Essa tela de
alta definição é demais. Dá para ver o suor no...
     — Paul! — gritou minha mãe, ofendida.
     — O quê?
     Meu pai ficou um pouco assustado. Todos nós morríamos de medo da
minha mãe.
     — Você não perguntou ao Finbar sobre o encontro!
     — Ah, desculpe — meu pai respondeu. — Finn, como foi o encontro?
     — Paul! Não pergunte a ele sobre o encontro! — ela interrompeu. Em
seguida avançou na direção do meu pai e falou baixinho, mas não o suficiente:
     — As coisas não correram bem.
     — Finbar — aconselhou meu pai com as mãos na cintura, bloqueando a
entrada do quarto —, você nunca vai entender as mulheres.
     — Não fale essas coisas para ele! — censurou minha mãe, atrás dele. —
Você me entende.
     — Não, não entendo — respondeu meu pai. — Acabei de deixar você
puta da vida.
     — Olha a boca, Paul.
     — Enfim, eu não quis dizer que o Finbar nunca vai entender as mulheres
— ele explicou. — Eu disse ―você. Quis dizer ―você em geral, um ―você
coletivo. ―Você como todos os homens...
     — Já chega, Paul — minha mãe interrompeu.
     — Então, Finn, vamos lá para baixo e...
     — Sem essa de TV outra vez! — ela falou. — Ele não precisa daquele

tipo de radiação...
     E lá se foi minha mãe atrás do meu pai. Apesar de tudo, ela realmente me
fez sentir um pouco melhor sobre Celine. Talvez eu não precisasse de outra
maluca na minha vida.
     Minha mãe tinha um plano a longo prazo para me consolar e reconstruir
minha autoestima. Ela escondia bilhetes elogiosos no meu armário e embaixo
do meu travesseiro. O primeiro, por exemplo, estava enfiado entre minhas
cuecas e dizia: ―Qualquer menina que ficasse com você seria uma sortuda.
Outros bilhetes elogiavam meu físico e meu sex appeal, o que me deixou
perturbado. Quem quer que tenha ensinado a palavra tesudão para minha mãe
devia ser processado.
     O plano a curto prazo dela era que no sábado todos nos reuniríamos para
um dia na praia em família. Iríamos aproveitar o sol, nadar, restaurar meu
senso de masculinidade e comer sanduíches de peru. O plano rapidamente
furou. Luke caiu fora porque tinha jogo com o time de futebol de Fordham.
Ele iria passar a manhã treinando, então sobraram Maud, Paul e eu.
     A porta do meu quarto se abriu às nove horas. Me erguendo sobre o
ombro direito dolorido, olhei ao redor. Luke já havia saído. Minha mãe surgiu
como um carcereiro com um copo de suco de laranja na mão.
     — Acorde! — ela me chamou. — É dia de praia!
     Quando terminei o suco, minha mãe me jogou dentro do carro com um
guarda-sol, um isopor cheio de Coca-Cola light e um tubo de protetor solar
fator 50. No caminho, meus pais começaram a discutir sobre o brinquedinho
novo do meu pai, o GPS do carro. Quando ouço os dois discutindo sobre
coisas triviais, como postes telefônicos e a validade de um pacote de passas
(―Elas sempre foram enrugadas, Maud! ―Não tão enrugadas, Paul. Essas aqui
viraram múmias!), esqueço que já foram apaixonados. Mas é verdade. Aliás,
minha mãe jura que foi amor à primeira vista.
     Imagine só: Chestnut Hill, Massachusetts, 1978. Minha mãe era uma nerd
que tinha acabado de entrar na faculdade e assistia a um jogo de hóquei na
Universidade de Boston através das lentes fundo de garrafa de seus óculos.
Com suas duas colegas de quarto, ela não parava de dar risadinhas e de
apontar para os jogadores bonitões. Era duro sentir alguma atração, minha

mãe me contou, já que os caras usavam máscara, protetores, camisa e luvas —
e elas ainda por cima estavam nas cadeiras mais distantes. Mas de alguma
forma ela se apaixonou pelo meu pai, um aluno novato que jogava na ala
esquerda do time de hóquei. Para falar a verdade, ela se apaixonou pela palavra
FRAME formada por esparadrapos atrás da camisa dele.
     — Eu não conseguia ver o rosto dele — minha mãe costumava lembrar,
sonhadora. — Mas me apaixonei. Naquele instante. Mesmo com a máscara, as
luvas e todo o resto. Para falar a verdade...
     (Nessa hora ela sempre olhava em volta para ver se meu pai não estava
por perto.)
     — Para falar a verdade, eu pensei que ele tinha uns dez quilos a mais de
músculos. Era aquela armadura peitoral, sabe?
     Assim, minha mãe se apaixonou pelo meu pai naquele primeiro jogo de
hóquei para os calouros. E meu pai nem sabia que ela existia. Na tentativa de
ser notada, ela se tornou repórter esportiva do jornal da faculdade. Pensou que
os dois começariam a conversar, com perguntas e respostas inteligentes entre
repórter e entrevistado, e que aquilo poderia se transformar em amor. Até hoje
ela tem cópias dos jornais da faculdade daquela época. Ela entrevistou meu pai
para sete artigos diferentes no primeiro ano. E toda vez ele se apresentava
para ela, pois não lembrava que já se conheciam.
     No segundo ano, minha mãe resolveu se esforçar mais. Ela se juntou à
equipe de hóquei. Pesando quarenta e cinco quilos, ela arrastava as enormes
mochilas de equipamentos, cheias de patins e protetores, de Boston para
Michigan, de Quebec para Toronto. Ela viajava com meu pai. Limpava o
armário dele. Sentava numa cadeira especial, bem perto do rinque, para assistir
às partidas. Houve até um incidente íntimo envolvendo Gelol, cujas
circunstâncias eu nunca conheci por completo. Meu pai era educado, sempre
agradecia minha mãe pelas toalhas e pelas garrafas de Gatorade que ela
fornecia — mas nunca a chamava pelo nome.
     No anuário do segundo ano da minha mãe, uma de suas amigas escreveu:
―Missão para o ano que vem: CONHECER O PAUL ALTO. As palavras
―Paul alto foram escritas em letras finas e altas, como meu pai. Essa história
de luxúria materna me deixa meio perturbado, mas também explica minha

tendência a me apaixonar a distância.
     Mas minha mãe quase desistiu de sua presa — quer dizer, de seu amor.
No penúltimo ano da faculdade, ela trocou a seção de esportes do jornal pela
de artigos. Também desistiu do cargo no time de hóquei e nem assistia mais às
partidas. Quer dizer, até que os Eagles se classificaram para as finais. Então
minha mãe foi ver uma partida, o primeiro jogo daquela fase. Ela se sentou na
terceira fila, à esquerda da proteção de vidro. E meu pai conseguiu acertar o
disco bem na cara dela.
     Tiveram de parar o jogo por causa do tumulto. Todo mundo que estava
sentado perto da minha mãe se levantou e ficou em volta dela. Meu pai
escalou a mureta, subiu pela arquibancada e passou pelas pessoas, com suas
gigantescas e desajeitadas luvas de hóquei. Ele subiu pelos degraus
emborrachados sem tirar os patins, deixando um rastro de gelo derretido.
     — Todo mundo se afastou e eu a vi, chorando e com sangue jorrando do
nariz — meu pai costuma dizer. Esse é o jeito que ele conta a história. — E eu
me apaixonei ali mesmo. Me apaixonei por ela. E eu nunca tinha visto aquela
garota em toda a minha vida!
     A praia de Glen Island ficava a dez minutos de casa, no Estuário de Long
Island, uma enseada do oceano Atlântico. Não tinha grandes ondas nem nada,
mas era um lugar bonito, com boias, barcos e todas essas coisas. Depois de
arrastar a cadeira de praia ergonômica do meu pai por quarenta e cinco metros
pela areia, eu estava começando a suar e louco por um mergulho. Também
queria entrar e sair da água antes que chegassem pessoas da minha idade.
Minha pele ficava quase transparente quando eu me molhava. Preferia usar
uma camiseta branca a ir só de bermuda, embora eu ficasse quase igual nos
dois casos.
     — Finbar, não esqueça do filtro solar — disse minha mãe.
     — Está com meu pai.
     Meu pai é tão pálido quanto eu, mas, devido à idade avançada, está um
pouco mais próximo do câncer de pele. Por isso deixei que ele atacasse o
protetor antes. Sentei na cadeira ergonômica (nossa, era confortável — não
que valesse o esforço de arrastar aquilo pela areia, mas...) e dei uma olhada
para o Estuário de Long Island, com pensamentos profundos sobre a água, o

renascimento e perder a virgindade. Ou melhor, sobre não perder a
virgindade. Eu não estava nem a cem quilômetros de perder a virgindade. Não
estava nem na mesma revolução planetária de... ok, você já sacou.
     De repente, tive uma visão. Eu, todo molhado, com uma roupa grudada
na pele. Soa assustador, eu sei. Mas eu estava me imaginando como surfista.
Um surfista! Eu poderia ser um surfista! Eu gostava de praia. E não me
importava com o esforço físico. Eram só esportes coletivos que eu detestava.
ão tão agressivos, e eu não sou desse tipo. Nem mesmo na mesa de jantar. Sou
sempre eu que fico com o último pedaço de frango.
     Duas meninas da minha idade apareceram na praia e confirmaram na
mesma hora meu amor pelo estilo de vida do surfe. Elas não tinham nenhuma
cadeira ergonômica e andavam descalças pela areia. Seus biquínis eram tão
pequenos quanto seus óculos de sol eram grandes. Ou seja, alucinadamente
pequenos. Aquilo era inacreditável para mim. Era inacreditável que pudessem
andar por aí daquele jeito. A bunda exposta. As coxas bronzeadas. Os seios
arredondados. Sim, eu definitivamente gostava de surfe — ou pelo menos do
uniforme. Eu poderia olhar meninas como aquelas o dia todo. Eu poderia ser
um rato de praia. Eu poderia ser um pegador. Eu poderia ser...
     — Vermelho como um sinal de trânsito, Finbar! — meu pai observou,
com o nariz coberto de pasta branca. Minha mãe se aproximou, usando um
chapéu do tamanho de um estádio de futebol. Como você pode notar, meus
pais quase não dão vexame.
     — Ah, não! — ela gritou, enquanto cobria os olhos com as mãos. —
Finbar, eu não consigo nem olhar para você!
     Em pânico, olhei para o meu ombro. Eu tinha ficado com um hematoma
enorme no formato de um arco-íris nojento por causa do acidente com os
pimentões. Mas como eu estava de camiseta, não era aquela marca que estava
deixando minha mãe pirada.
     — Como ele se queimou tão rápido? — meu pai perguntou. — Nós só
estamos aqui há vinte minutos.
     — Eu não consigo olhar! — minha mãe gritou. Em seguida, espiou por
entre os dedos e gemeu.
     — Não olhe para o rosto dele se isso te deixa descontrolada — observou

meu pai.
     De quem eles estavam falando, do Fantasma da Ópera?
     — O que está acontecendo? — perguntei. — Meu rosto está meio
coçando.
     — E seus braços — completou meu pai.
     — Eles não estão coçando — retruquei.
     — Mas vão coçar — ele disse, em tom de ameaça.
     Olhei para baixo. Bolotas vermelhas pipocavam em meus antebraços. Eu
parecia uma pizza de calabresa, só que não tão gostosa. Na verdade, nem um
pouco gostosa. Eu estava nojento. Havia umas manchas vermelhas grandes,
com um dedo de diâmetro, e algumas estavam salientes. E meu pai tinha
razão: elas começaram a coçar.
     — Talvez ele tenha sido mordido por algum bicho — minha mãe disse.
— Talvez ele tenha sido picado por algum inseto de Nova York.
     — Um o quê? — perguntou meu pai, completamente perdido.
     — Ele precisa ir ao médico — respondeu minha mãe, olhando de
propósito para o meu pai e evitando minha aparência de aberração. — Vamos
lá, Paul, você junta as coisas e eu vou pegar o Finn e...
     Ela tinha criado coragem para me ver, então tirou as mãos da frente dos
olhos.
     — AHHHH! — gritou, acabando com meus tímpanos. Até meus braços
doeram. E meu rosto. E minhas pernas, logo abaixo dos joelhos. Eu estava
destruído, vermelho, ardido e cheio de coceira.
     — Mãe, se você quiser que eu vá ao médico, eu vou sozinho — eu disse.
— Não tenho 12 anos.
     — Pode ir de carro, Finn — meu pai falou.
     — Ele não pode dirigir desse jeito! — minha mãe reclamou.
     Aquilo não fazia o menor sentido.
     — Vou pegar o trem — informei.
     — Você ao menos sabe onde fica o consultório médico? — perguntou
minha mãe.
     — É claro que sei! — respondi, irritado. — É o lugar para onde você me
arrastou para tomar oito vacinas e arranjar uma máscara contra gripe suína!

     Tentei dar o fora dali, mas é bem difícil sair correndo de chinelo de dedo.
     O veredicto do médico foi o seguinte:
     — Você é alérgico ao sol.
     O quê? Como isso é possível? O sol é uma coisa natural. Uma coisa boa
para as pessoas. Isso é como ser alérgico à água ou ao ar. Ou a alguma coisa
muito importante, como bolacha recheada. Passei ao todo vinte minutos na
praia esse verão e virei um monstro?
     — Urticária solar — ele continuou. — É assim que se chama. O sol faz
com que apareçam erupções na sua pele.
     Eu definitivamente não ia mais ser surfista. E acho que também não ia
mais para a escola. Ou para a igreja. Oba, eu ia ficar livre da igreja! Até que
enfim uma notícia boa! Mas ficar trancado no quarto como se fosse o
Corcunda de Notre Dame? Essa notícia não era tão boa.
     — O sol já tinha causado isso em você antes? — perguntou o médico.
     Claro que não. Eu não sou exatamente um aventureiro, mas sobrevivi a
tardes de verão ao ar livre desde criança até hoje. Para cada duas horas que
passava vidrado na bibliotecária da seção infantil, eu ficava uma hora na
piscina pública de Alexandria, cultivando meu bronzeado de estivador.
     — Então vamos atribuir isso à mudança de ambiente — o médico falou.
— Espero que seja temporário. Evite exposição ao sol por mais de meia hora
nos próximos meses, está certo?
     Meia hora?
     — Enquanto isso, vou lhe receitar um anti-histamínico — ele continuou.
— E pedir para as enfermeiras colocarem ataduras em você. É preciso
proteger essa pele!
     Depois, parecendo um fugitivo de uma colônia de leprosos, peguei o trem
até o Bronx para encontrar meus pais no jogo de futebol do Luke. O médico
tinha me dado um remédio que baixou a temperatura da minha pele e eu não
sentia mais coceira. Mas, embora eu não estivesse mais tão vermelho (mais
para pêssego do que para tomate), os enfermeiros tinham me dado aqueles
óculos escuros gigantescos, considerados estilosos talvez em asilos.
     As enfermeiras também tinham enfaixado meus braços, dos pulsos até as
mangas da camiseta, fazendo com que eu parecesse, do pescoço para baixo, o

Homem Invisível. Mas eu estava bem visível, mesmo largado num banco
perto do banheiro do trem. Uns pirralhos ficavam apontando para mim.
Donas de casa me olhavam de um jeito triste e solidário, mas afastavam os
filhos de mim, morrendo de medo que fosse contagioso. Um homem de terno
pensou que eu fosse cego e atirou uns trocados no meu colo. Depois desse
incidente, resolvi tirar os óculos escuros.
     Bom, pelo menos ninguém sentou do meu lado. Até a estação de Mount
Vernon East, quando uma loira mais ou menos da minha idade entrou no
trem. Detesto loiras, detesto mesmo. Não que eu pense que elas são boas
demais para mim — elas é que pensam. Todas as loiras que conheci me
cortaram na hora, das loiras da Playboy até as descoladas de cabelo curto e
óculos. As loiras sempre acham que você está a fim delas.
     E eu não estava a fim daquela loira. Não queria olhar para ela. Não a
queria nem perto de mim. Mas ela veio direto pelo corredor, passou três
assentos vazios e resolveu se sentar bem do meu lado. Ficou me olhando mais
um pouco, o que me deu uma sensação estranha. Eu não sou o tipo de cara
que as garotas cobiçam como se fosse um sapato caro.
     A princípio, a loira não disse nada. Estava com a cara enterrada num livro
enorme enquanto o trem seguia em direção a Fordham. Mas de vez em
quando olhava para as ataduras que cobriam meus braços de cima a baixo, as
manchas avermelhadas em minhas mãos e o reflexo oleoso da pomada em
minha pele. Em seguida, me perguntou:
     — O que aconteceu com seus braços?
     Vá cuidar da sua própria vida.
     — Muito sol — resmunguei. Quando alguém me enche o saco, eu viro
mesmo um troglodita.
     — Ah, tá! — ela respondeu. A garota estava feliz da vida, apesar das
minhas ataduras e erupções. Aparentemente, ela sentia prazer com a desgraça
alheia.
     Então perguntou:
     —Você já leu este livro?
     Olhei para o lado. Ela me mostrou a capa. Havia uma masmorra de pedra
assustadora, além de morcegos e um homem de capa, com garras e caninos

afiados. O título era Terror noturno.
     — Terror noturno? — respondi alto. — Não, não li.
     E não estou a fim de papo, tive vontade de dizer também. Nem mesmo sobre
livros.
     — Ah, é incrível! — ela falou, animada. Em seguida começou a me contar
a história toda... de todas as trezentas páginas. Começou contando sobre os
ancestrais dos personagens principais e tudo que tinha acontecido com eles,
depois sobre a segunda geração e tudo que tinha acontecido com eles também,
com seus primos, com o cachorro do vizinho do irmão da cabeleireira... e
continuou sem parar. Posso contar o que aconteceu com toda aquela gente (e
com seus animais de estimação) em seis palavras: todos eles acabaram mortos
por vampiros.
     — E então, a tataraneta acha que pode transformar o vampiro — a garota
continuou. Ela gesticulava tanto que fiquei com medo de levar um soco no
meio da cara.
     — Aí ela aparece no castelo à noite. E, tipo, rola uma química entre os
dois. Como uma faísca, sabe? Então eles ficam cada vez mais perto um do
outro e se beijam. Os dois estão se beijando e ela acha que ele tem todas as
emoções de um ser humano. Mas ele avança no pescoço dela... e dá uma
MORDIDA! Ele suga todo o sangue do corpo dela...
     — Hum... — interrompi, de mau humor. — Parece interessante. É
melhor você não me contar mais nada. Senão vai estragar a surpresa do final.
     — É verdade! — a loira disse, animada. — Você tem mesmo que ler.
Acho que você vai adorar este livro.
     Emiti um som qualquer para me livrar dela e me virei para olhar pela
janela.
     Ela só me deu um minuto de sossego. Logo depois, chegou bem pertinho
e sussurrou no meu ouvido:
     — Eu sei o que você é.
     Virei a cabeça e quase acertei o rosto dela.
     — O quê?
     — Eu sei o que você é — a loira repetiu. Para ter certeza de que eu tinha
entendido, ela apontou para os meus braços enfaixados. O quê? Ela sabia que

eu era alérgico ao sol?
     Então ela apontou para o meu rosto, que não estava coberto de urticária.
E para os meus olhos sinistros de husky siberiano. Ela sabia o que eu era?
Sabia que eu era o perdedor na loteria genética? Um futuro portador de câncer
de pele?
     — Um vampiro — ela sussurrou.
     Ai, meu Deus. As loiras não apenas me odeiam, elas também são malucas.
     Ela apontou para a capa do livro. Lá estava o vampiro, um velho branco,
com unhas podres assustadoras e a cara tão enrugada quanto uma uva-passa
vencida. Ele usava uma capa totalmente metrossexual. Tinha deixado o
cadáver de uma mulher no canto do seu apavorante calabouço. E estava
curtindo com alguns morcegos rosados que provavelmente eram seus únicos
amigos.
     Como aquela garota ousava me dizer aquilo? Eu não sou velho! Eu não
sou assustador! Eu não sou um assassino! E mais importante: eu nunca usaria
uma capa. Uns meninos que enfrentei numa competição de conhecimentos
gerais do colégio usavam capas em vez do uniforme, e eram uns esquisitões
completos. Além disso, eu não me sentava em um calabouço frio e ficava
chupando sangue e conversando com morcegos, conspirando para atrair
mulheres até lá. Eu tenho um irmão, uma família e uma vida! Ok, ainda
preciso conspirar para atrair mulheres. Mas eu não bebo o sangue delas!
     De repente, a frustração de uma semana de insultos acumulados me
atingiu em cheio. Odiei aquela loira que eu não conhecia, com todas as minhas
forças. Odiei aquele cabelo loiro e aquele livro de terror idiota. Odiei as
conclusões que ela tirava das outras pessoas com base nas raras condições
médicas e na pele pálida que apresentavam. Odiei os sapatos idiotas e as
roupas idiotas dela. Odiei aquele colar imbecil que dizia ―melhores amigas e
tinha formato de metade de um coração. Odiei quem tinha a outra metade,
porque era uma idiota por ser amiga daquela garota.
     — Sabe de uma coisa? — eu disse violentamente, levantando com raiva
(para em seguida cair no banco à minha frente porque o trem sacudiu; mas
minha raiva continuou intacta). — Se eu sou tão medonho, tão assustador, se
sou um vampiro — disse bem alto —, por que você sentou do meu lado?

     — Não — interrompeu a garota. — Você não entendeu...
     — Claro que entendi — eu disse. Me espremi para passar por ela, ficando
preso como um idiota em seus joelhos, mas continuei forçando passagem até
chegar ao corredor do trem.
     — Eu entendi que você é uma imbecil — falei. — E que você deveria ter
sentado do lado daquele cara que parece um mendigo.
     O cara que parecia um mendigo do outro lado do corredor levantou os
olhos e me encarou.
     — Ou daquele cara que fica olhando de um jeito esquisito para os peitos
daquela garota — continuei.
     Esse cara, sentado no terceiro banco do vagão, baixou o olhar na mesma
hora em direção ao jornal, que estava de ponta-cabeça. E a garota, do outro
lado do corredor, abotoou a jaqueta.
     — Mas você não fez isso! — eu disse para a loira. — Você sentou do
meu lado.
     — Você não entendeu — ela insistiu. — Eu adoro vampi...
     — Vou sair fora — falei. — Minha estação é a próxima.
     Fiquei ali me segurando, tentando não olhar de novo para a loira. Ou para
o cara que acusei de estar secando os peitos da menina. Ou para o homem de
negócios que estava indignado por eu não ser cego — nem pensar que eu ia
devolver a grana. E então percebi que sair correndo do trem estava se
tornando algo meio anticlimático, porque ainda rolariam uns três minutos de
silêncio angustiante antes que o trem finalmente parasse e as portas se
abrissem em Fordham.

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