domingo, 4 de novembro de 2012

Capítulo 2 (Doce Vampiro)


Espere um pouco. Antes de começar minha história de humilhação (a
primeira de muitas), vou contar mais um pouco sobre a mudança para Nova
York.
     Em agosto, nos mudamos de Indiana para Pelham, Nova York. Pelham é
cercada pela praia e pelo Bronx, e eu e Luke achávamos os dois lugares
incríveis. Em uma semana, minha mãe já tinha encontrado todas as igrejas
católicas e prontos-socorros num raio de vinte quilômetros da nossa casa. Ela
cresceu em Boston e estava contente por morar perto de Nova York e ver
ressurgir todas as suas neuroses urbanas — como cair no vão entre a
plataforma e o trem, ser assaltado num beco, ser tentado a entrar para uma
gangue com algum cumprimento descolado, contrair doenças de mendigos e
pombos (minha mãe ainda não alcançou o nível de compaixão que seu
modelo, Jesus Cristo, tinha pelos pobres). Ela deu máscaras cirúrgicas e apitos
de emergência para mim e para o Luke. Depois de perceber que parecíamos
dois doentes com gripe suína à procura de uma boate gay, nós rapidamente
―perdemos tudo aquilo — em um incidente infeliz envolvendo o Estuário de
Long Island e a maré vazante.
     Meu pai ganhou um aumento no novo emprego, por isso Luke e eu
ganhamos um carro novo. Um Volvo prateado. Passamos todo o mês de julho
aprendendo a dirigir e fomos aprovados no exame de direção. Eu era um bom
motorista, para falar a verdade. Luke era mais do tipo perigoso, e acho que
nosso avaliador deixou que ele passasse no exame de tão aliviado que ficou

por sobreviver. Um carro para dois adolescentes ansiosos... e, uma vez na
vida, as coisas funcionaram a meu favor. Fiquei com o Volvo, com seus
sensuais airbags e tudo o mais, para ir para a escola. Luke tinha de pegar o
trem para uma escola católica no Bronx chamada Escola Preparatória
Fordham. Esse colégio havia recrutado Luke para o time de futebol, e ele
pegaria o trem todos os dias. Fordham era bem parecida com St. Luke — uma
comunidade pequena, uniforme, forte concentração nos esportes e só garotos.
      Num raro momento de genuína empatia, minha mãe percebeu que eu
precisava de uma mudança em relação ao St. Luke, ou talvez ao Luke. Então
me matriculou na Escola Secundária Pública de Pelham.
      — Você vai conhecer mais pessoas! — disse minha mãe. — Eu ficava
triste porque você quase não tinha amigos em St. Luke.
      — Mãe — resmunguei. — Eu tinha amigos.
      — Ah, sim, Henry Kim! Tinha esquecido o Henry Kim — ela respondeu.
— Que menino bonzinho. Ele era tão bom em matemática. E no violino.
      (A pior parte do embaraçoso estereótipo da minha mãe sobre o Henry
Kim, que era americano de origem coreana, é o fato de que ele era mesmo
muito bom em matemática e no violino. Claro que ele também era um astro
do time de futebol da escola, mas eu não contei isso para minha mãe, porque
não queria que ela soubesse que o Henry era melhor do que eu nos esportes.)
      Era minha primeira vez numa escola pública. Era minha primeira vez
numa escola sem o Luke. E o mais importante: era minha primeira vez numa
escola com garotas. Mas eu já conhecia uma garota em Nova York. Celine.
      Conversávamos pela Internet fazia quatro meses. Nós nos conhecemos
numa sala de bate-papo chamada Faculdade Confidencial. Não é um site de
encontros. Geralmente serve para alunos do ensino médio postarem uma lista
de matérias extras do tamanho de Guerra e paz e perguntarem: ―Será que
entro na Duke?!?!?!?!? Às vezes serve para os pais trocarem ideias sobre qual
é a melhor atividade extracurricular para ajudar na admissão, esgrima ou oboé.
      Para Celine e para mim, era onde podíamos conversar sobre faculdades
com os melhores cursos de literatura comparada. Depois disso, nosso
relacionamento ficou mais íntimo, migrando para o Facebook e para o MSN.
Começamos a conversar toda semana, depois diariamente, falando sobre

nossos livros favoritos e metendo o pau em suas adaptações medonhas para o
cinema. Uma vez ela foi a uma leitura de Jeffrey McDaniel (um poeta
performático que nós dois gostávamos) e mandou uma mensagem para mim
assim que chegou em casa: ―Queria que você estivesse online!!! Foi um
momento espetacular. Eu podia ver meu próprio sorriso de pateta no reflexo
da tela.
     Por sorte, eu conseguia parecer muito descolado através de uma conexão
wireless. Celine nunca tinha visto meu rosto, já que no meu perfil no
Facebook havia uma foto de Tolstói em vez de uma foto minha.
     Celine tinha nascido na França, mas morava no Upper West Side, em
Manhattan. Ela estudava numa dessas escolas esnobes para meninas, com
filhas de magnatas donos de hotéis e de astros do rock decadentes no segundo
casamento. Celine me contou um monte de coisas sobre a sua vida que não
contava para mais ninguém, como as festas que suas colegas davam em seus
lofts quando os pais estavam viajando e como elas faziam seus cãezinhos
mistos de maltês e poodle beberem Smirnoff Ice. Celine, como eu, não bebia,
o que fazia de nós dois provavelmente os únicos adolescentes do mundo que
não enchiam a cara de cerveja nas noites de sexta-feira. Celine fumava, mas só
cigarro de cravo. E isso não contava, já que ela era europeia. Ela tinha
experimentado maconha duas vezes. Na primeira vez foi só para ver como
era, e na segunda alguém a enganou, colocando a erva dentro de um bolo, que
ela não conseguiu rejeitar porque estava de TPM (eu não perguntei mais nada
sobre essa história).
     Como toda europeia, ela certamente apreciava alguém com sofisticação,
inteligência, boas maneiras e amplo conhecimento literário e cultural. Eram
exatamente esses os traços que eu havia desenvolvido durante anos de leitura
na Biblioteca de Alexandria, espremido entre os seios gigantescos da
bibliotecária da seção infantil e o Live Bait, bar/clube de strip/loja de pesca ao
lado da biblioteca.
     Celine e eu tínhamos avançado para a intimidade das mensagens via
celular depois da minha mudança para Nova York. Combinamos de nos
encontrar no fim de agosto para nos conhecer. Havíamos planejado um café,
mas depois eu mudei tudo: em vez de um café, procurei na Internet por

restaurantes franceses no Upper West Side. Mandei uma mensagem para
Celine: ―Mudança de planos, e junto enviei o endereço do restaurante. Ela
iria pensar que eu tinha achado um ótimo café entre minha estação de trem e
o apartamento dela, mas na verdade eu ia impressioná-la com um chique jantar
do seu país natal num lugar chamado Les Poissons, que tinha ótimas críticas
na Internet, mas também uma que dizia que ―os garçons são extremamente
mal-educados. Esses comentários juntos me fizeram crer que se tratava de
um autêntico restaurante francês.
      Sim, eu sei, sou um gentil e romântico cavalheiro. Para falar a verdade,
aquilo me faria passar por alguém com a elegância de Richard Gere em Uma
linda mulher, a espontaneidade de George em Uma janela para o amor, a audácia
de Harrison Ford em Guerra nas estrelas e as habilidades tecnológicas de Tom
Hanks em Mensagem para você.
      Mas mesmo quando você tem um plano romântico traçado e está
vestindo uma camisa social, não há nada mais estressante do que esperar que
sua paquera da Internet dê as caras. Então comecei a me questionar, de ―Será
que passei muito gel no cabelo? a ―Mocassim? O que eu tinha na cabeça?.
      Depois, quando ela já estava dezesseis minutos atrasada, comecei a ficar
preocupado. Será que ela era tão bonita quanto nas fotos? Talvez um dia ela
tivesse sido daquele jeito, mas depois engordou cento e cinquenta quilos. Ou
encheu o rosto de piercings. Agora ela tinha noventa por cento do corpo
coberto de metal e nunca mais poderia voltar para seu país por causa dos
detectores dos aeroportos. Ou ela podia ser uma alienígena. Ou uma assassina.
Ou um homem!
      Com dezessete minutos de espera, a ansiedade se transformou em medo.
Olhei rapidamente ao redor do restaurante. Quem estaria lá para me proteger
se Celine aparecesse do nada com uma serra elétrica e seu rosto metálico?
Havia duas mesas com casais mais velhos — e por mais velhos quero dizer
que podiam pedir bebida alcoólica sem infringir a lei. Também havia uma
mesa com cientistas de jaleco branco celebrando alguma descoberta. O clichê
do cientista maluco não estava tão distante da realidade...
      Até que...
      Meu. Deus. Lá estava ela.

     Eu nunca entendi o que as aulas de ciências ensinavam sobre a matéria,
sobre as coisas estritamente físicas da existência, mas lá estava ela, na vida real,
com um contorno sólido no espaço entre as elegantes portas de vidro. Não
era uma mensagem enviada ao meu computador ou uma foto tirada de cima
por ela mesma. Celine era real.
     E ela era perfeita, com um vestido cor-de-rosa que mostrava a pele
dourada das coxas, dos braços, do peito. Que bronzeado! A garota era uma
deusa da melanina!
     Contrariando todas as expectativas, ela veio na minha direção.
     Os homens no restaurante se viravam para observá-la. As mulheres no
restaurante se viravam para observá-la. Até os cientistas a olhavam. E todos
viram quando ela se aproximou e deu um abraço... em mim. Sim, eu mesmo, o
garoto todo curvado, com manchas de suor na camisa e pernas trêmulas. Eu
podia imaginar os cientistas furiosamente desenvolvendo hipóteses para
responder à pergunta: ―O que ela está fazendo com ele?
     Eu podia sentir que me avaliavam.
     — Ele parece sofrer de falta de pigmentação — observaria clinicamente o
cientista mais velho.
     — E de transpiração excessiva — acrescentaria ansiosamente o mais
novo.
     — Ele não parece muito fértil — imaginaria a única mulher. — Eu não o
escolheria como companheiro.
     Mas os cientistas podiam ir para aquele lugar, porque Celine veio e me
abraçou! Com a cabeça pressionada contra o meu peito, seus cabelos
castanhos pareciam uma porção de fitas. Ela cheirava como se passasse
desodorante em cada centímetro do corpo. Nossa. Uau.
     — Que legal conhecer você! — Celine disse, afastando-se. — E que
restaurante! Isso é... bem, uma surpresa.
     — Gostou? — perguntei, puxando a cadeira para ela sentar.
     — É realmente uma surpresa! — ela riu, dobrando o vestido cor-de-rosa
sob as coxas bronzeadas. — Pensei que seria apenas um café.
     — Pensei em jantarmos em vez disso.
     — Ah!... Ótimo! — Sua voz era tão alta que eu não conseguia dizer se ela

estava empolgada ou fingindo entusiasmo no volume mais alto possível.
     Voltei para o meu lugar e ficamos sentados de frente um para o outro,
como adversários em uma partida de xadrez. Eu olhava para o guardanapo
que estava colocando no colo, mas Celine me encarava sem o menor
constrangimento.
     Aquilo começou a me incomodar, já que eu não sou do tipo comum.
Bem, não que eu seja incomum. Não sou nenhum Van Gogh ou coisa
parecida. Mas meu cabelo preto é um pouco chamativo, porque meus olhos
são azuis muito claros. Tipo, azul bem claro. Imagine um husky siberiano. E,
como eu já disse, meu bronzeado não é dos melhores.
     — Você é tão pálido — foi o que ela disse.
     Fiquei surpreso por ela dizer isso assim, sem rodeios.
     — Ah, é... — respondi sem jeito. — Então...
     — Não pensei que você fosse tão pálido.
     — Eu me descrevi como uma folha de papel... — comecei a dizer. Nós
havíamos passado descrições físicas um ao outro pelo Facebook. Eu tinha
sido honesto, mas me concentrei na altura, meu melhor atributo.
     — Eu não sabia que era tanto.
     — ... coberta com Liquid Paper — finalizei.
     — Certo. Entendi — Celine tomou um gole d’água. — Este lugar é
encantador!
     Para uma moça encantadora, pensei. Nem pensar. Censurado. Não fale esse
tipo de besteira, Finbar. Você sabe que essa garota é demais para você.
     Definitivamente, aquela era uma situação do tipo A Bela e a Fera. Celine
era uma morena francesa que gostava de ler, como a Bela. Eu podia imaginar
todos aqueles padeiros saindo de suas lojas e cantando ―Bonjour para ela. É
claro que eu não tinha tanto assim de Fera. Ele era supermachão e podia
encher alguém de porrada. Além disso, tinha pelos de uma maneira anormal.
Eu não tenho pelos nem de uma maneira normal, pelo que deu para notar em
minhas rápidas e assustadoras espiadas no vestiário do St. Luke... Ok, eu tinha
que parar de pensar em pelos. E em filmes da Disney. E em como Celine
estava completamente fora do meu alcance.
     Vira homem, Finbar! Chega mais! Fica esperto! Get your, get your, get your,

get your head in the game... Não! Não cante músicas do High School Musical na
sua cabeça! Esse é outra porcaria de filme da Disney! Será que o Zac Efron
tem mais pelo no corpo do que eu?
      — E então? — eu disse, interrompendo meu fluxo de insanidade. —
Quais são os lugares legais para conhecer em Manhattan?
      Conhecendo meus interesses, ou talvez com os seus em mente, Celine
começou a falar sobre livrarias. Eu estava hipnotizado pelos movimentos
daquela boca, imaginando-a colada na minha, e isso fez com eu não falasse
quase nada. Por sorte, Celine gostava de falar, dando detalhes de cada livraria
da ilha. Apenas quando o garçom nos interrompeu eu percebi que não
conseguia ler o cardápio, todo escrito em francês.
      Eu disse para Celine pedir primeiro, e ela fez ainda mais beicinho para
fazer o pedido. Meu Deus, francês é uma língua tão sexy. Você tem que fazer
cara de beijo para falar qualquer coisa! Celine pediu dois pratos diferentes.
Soavam muito sensuais, mas depois descobri que eram lesmas e fígado
inchado de pato.
      Tinha alguma coisa escrita no meu idioma? Ou algo que eu pudesse
comer? Eu estava todo atrapalhado.
      — Hambúrguer! — declarei, triunfante. — Vou querer um hambúrguer.
      Um leve aceno de cabeça do garçom e ele arrancou o cardápio de minhas
mãos não europeias.
      — Ham-burr-guérr — pronunciou Celine.
      Ah. Hambúrguer. Em francês.
      — Ham-borr-guirr — tentei.
      Celine riu suavemente. Enquanto esperávamos a comida, começamos a
conversar sobre os cafés de Manhattan.
      — Eu simplesmente não entendo qual é a dos americanos com o café —
ela disse. Nunca tomei café na vida, pensei, enquanto Celine comparava a
expansão da rede Starbucks com um ―genocídio empresarial. Talvez eu devesse
começar. É claro que, para tomar café, eu teria de ser uma pessoa
completamente diferente. Um cara com pelos não apenas no corpo, mas
também no rosto. Um bigode. Talvez eu devesse ser uma pessoa
completamente diferente. Se eu fosse sofisticado e ousado como Celine — se

eu fosse sofisticado e ousado com a Celine —, eu não encanaria tanto com as
coisas. Não ia ficar encanado por não ser bom nos esportes como o Luke. E
não ia ligar para caras como o Johnny Frackas me chamando de veado. Se eu
passasse os fins de semana tomando café em xícaras bem pequenas com uma
garota francesa e ostentasse um bigode, ninguém ia poder me chamar de
veado.
     Peraí, talvez eles pudessem. Apaga isso. Se eu tivesse uma namorada,
ninguém ia poder me chamar de veado. Então eu tinha de tomar uma atitude.
Enquanto Celine comia seu foiegras, aproveitei para falar:
     — Trouxe uma coisa para você.
     Diante de seu caro e gorduroso fígado, ela pareceu surpresa. Tirei um
pacote do bolso e coloquei na frente dela. Era um livro embrulhado numa fita,
como um presente. Eu mesmo havia feito aquele laço.
     — É Entre quatro paredes — falei. — Lembrei que você disse que era sua
peça de teatro favorita.
     Celine olhou para a capa como se aquilo fosse um objeto de outro
planeta, algo que ela não sabia como tocar ou abrir.
     — Mas hoje não é meu aniversário — ela disse.
     — Não — respondi. — É só um presente.
     — Por quê?
     Celine inicialmente pareceu confusa, mas logo a confusão diminuiu até
virar simpatia, quando meus olhos encontraram os dela. Ela não percebia por
que eu estava me esforçando tanto. Decepção e constrangimento eram tudo
que eu sentia. Durante o resto do jantar, Celine se esforçou para ser simpática,
como se eu fosse um garotinho gago pedindo ajuda na rua. Ela sorria e
concordava o tempo todo, e tinha até tocado minha mão algumas vezes. Mas
não quis café depois do jantar, e o garçom entregou a conta para mim. Acho
que ele sabia que era eu quem ia pagar, pois aquilo era um encontro, mesmo
que fosse o pior do mundo. Ou talvez ele apenas não tenha achado espaço
para pôr a conta entre os vários pratos de Celine, pratos que iam me custar...
nossa! Meu pai ia se arrepender por ter me dado um cartão de crédito. Celine
pegou sua bolsa e eu carreguei o livro para ela.
     Na calçada, ela interrompeu de repente seu discurso exaltado contra as

sandálias Croc e eu disse:
     — Eu acompanho você até sua casa.
     — Ah... — Celine tentou olhar para o relógio, mas ela não estava usando
um. Então apontou vagamente em duas direções distintas. — Estou indo para
outra parte da cidade, por isso vou pegar o metrô.
     — Eu acompanho você até lá — falei timidamente.
     Eu sabia que o restaurante e o presente tinham sido demais. Mas eu
realmente queria ser um cavalheiro até o fim.
     — Não precisa se incomodar! — ela disse, me cortando na hora. — É na
direção oposta da sua casa.
     Na verdade, eu não tinha ideia de onde era a estação do trem que eu iria
pegar. Era a segunda vez que eu ia até Manhattan. Mas concordei com ela e
hesitei. Era hora de se despedir. Bem ali, naquela calçada movimentada. A rua
estava cheia de mesas de restaurantes, e estávamos sendo interrompidos pela
conversa de outras pessoas e por quantidades letais de fumaça de cigarro.
Caramba, as pessoas em Nova York fumam sem parar.
     Celine se aproximou e ficou na ponta dos pés para me dar um beijo de
tchau. Não me beijar, só me dar um beijo. Ela foi direto para a bochecha. Não
havia nada de romântico ou sexual naquilo — até homens franceses
heterossexuais se beijam assim. Para mim, aquele beijo soava como um
prêmio de consolação.
     O problema é que, ao mesmo tempo, eu me inclinei para abraçar Celine.
Minha cabeça estava indo na direção do ombro direito dela. Seus lábios iam na
direção da minha bochecha esquerda. Como resultado...
     Nós nos beijamos na boca.
     Ou, mais precisamente, colidimos.
     O choque empurrou Celine com os pés de volta ao chão. Meus braços
ficaram pendurados no vazio à minha frente, como se eu estivesse imitando
um gorila.
     — Ah, Finbar! — Celine murmurou suavemente e me deu uns tapinhas
no braço. — Eu realmente acho que nós devíamos ser bons amigos.
     — Na verdade foi um acidente... — comecei a explicar.
     — Mas apenas amigos.

     Um vendedor de falafel tinha observado nossa ceninha de novela e
obviamente pensou que eu estava tentando seduzir Celine. Ele me olhava
desconfiado e remexia as longas e pontudas varetas de seus kebabs crepitantes
de um jeito sinistro.
     — Só amigos — Celine repetiu mais uma vez.
     Tá bom! Eu não precisava que ela traduzisse ―só amigos para o francês e
para a língua de sinais. Então eu disse:
     — A gente se vê por aí — e me afastei.
     Eu estava indo na direção certa? Não tinha a menor ideia. Não conhecia a
cidade de Nova York. Por isso resolvi pegar meu mapa no bolso.
     Ops alguma coisa lá de dentro. Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre,
primeira edição em inglês. Merda.
     Pensando nisso agora, eu devia ter jogado a porcaria do livro no lixo.
Devia ter deixado para lá. Mas na hora eu não queria nenhuma lembrança
daquele primeiro (e único) encontro desastrado.
     Então eu voltei.
     — Celine! — chamei da esquina. Ela já estava atravessando a rua
movimentada entre dois táxis que buzinavam sem parar. E não tinha me
escutado.
     Uma multidão se arrastava daquele jeito bem nova-iorquino para fora da
estação do metrô. Apertei o passo na direção de Celine. Vendo que minha
corrida era mais lenta que a caminhada das outras pessoas, torci para que
ninguém percebesse meu esforço desesperado para alcançá-la.
     Chamei:
     — Celine! Espera!
     Mas já tinha perdido a garota de vista. Havia mais pessoas naquele trecho
de calçada em Nova York, entre Celine e eu, do que em toda a cidade de
Alexandria. Quando a multidão se dispersou, vi que ela estava um quarteirão e
meio na minha frente. Para chegar perto, eu tinha de superar uma pista de
obstáculos das mais bizarras. À direita, uma vendedora ambulante de uns cem
anos de idade. À esquerda, um pomposo homem de negócios. Um ângulo
acentuado para evitar um carrinho de bebê; um salto sobre um dachshund
enfurecido com seu suéter de cachorro; e uma corrida para ultrapassar uma

drag queen usando um sapato de salto tamanho 44.
     Celine já havia atravessado a rua. Quando alcancei o meio-fio, estava
quase sem fôlego (e, tá na cara, completamente fora de forma). Mas meu lado
animal se manifestou. Subi num táxi amarelo e gritei ―CELINE!, no melhor
estilo Rocky Balboa.
     Ela estava curtindo um passeio ao estilo francês pelo parque onde o sol se
punha. Não havia nenhum cachorro ou transexual em seu caminho —
provando mais uma vez como a vida é injusta. Celine não dava bola para o
vento, que levantava seu vestido, numa cena que chamaria a atenção dos
paparazzi. E também não me deu a menor bola quando chamei seu nome.
Talvez tenha sido melhor assim. Se ela tivesse se virado, teria visto seu pálido
e suado amante da Internet correndo em sua direção — e provavelmente teria
morrido de medo.
     Mas ela não se virou. Atravessei a rua, mas não consegui gritar seu nome
outra vez. Enquanto olhava seu vestido, alguma coisa me fez tropeçar e eu caí
no porão de um restaurante. Meu ombro foi batendo nos degraus de cimento,
o que dói pra diabo, e bati a cabeça numa caixa de pimentas. Pensei que era
melhor aterrissar de cabeça em pimentas do que me arrebentar no chão de
concreto do porão, mas não eram nem mesmo pimentas vermelhas, que são
todas duronas e até bem legais. Caí numa caixa de pimentões verdes.
Pimentões bunda-mole. Bem apropriado.
     Enquanto tentava sair dali, tonto por causa do cheiro, um caminhão
estacionou na calçada em frente ao porão do restaurante. Dois homens
desceram e começaram a descarregar engradados de madeira. Estavam
trazendo encomendas de comida para baixo. Eles não teriam me visto se eu
não tivesse derrubado a caixa e espalhado pimentões por todo lado, como
num jogo de bocha.
     — Ei! — um dos homens disse para o outro. — Tem um garoto aqui
embaixo!
     — Já estou indo embora — murmurei para os dois enquanto subia a
escada.
     — Tem certeza que você não é a carne branca que o restaurante
encomendou, garoto? — perguntou o segundo homem. Os dois começaram a

rir sem parar.
      As pessoas costumam me ridicularizar com tanto entusiasmo que ele
repetiu a piada. Por algum motivo, os dois acharam a segunda vez ainda mais
engraçada que a primeira.
      Eu nem tentei rir. Levantei, tão machucado quanto o pimentão esmagado
entre a minha bunda e o último degrau de cimento. Ajeitei minha camisa
social, pedi desculpas e fui embora. E o exemplar de Entre quatro paredes? Eu
nunca mais queria ver aquela merda de novo na minha vida. Deixei o livro
enterrado naquele monte de pimentões.
      De mãos vazias, percorri de volta os dezoito quarteirões até o Terminal
Central. Nem os longos quarteirões da cidade ao ar livre nem o perfume
Burberry falsificado que comprei perto da estação conseguiam disfarçar o
cheiro de pimentão. No trem das 8h43, um homem no meu vagão ficou
farejando perto do meu banco e comentou com o amigo:
      — Não sei por quê, mas de repente me deu uma vontade de comer pizza.

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