quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 48 (Serie Feios)


JURAMENTO DE HIPÓCRATES

Eles ficaram no refúgio das Ruínas de Ferrugem.
De tempos em tempos, carros voadores sobrevoavam os restos da cidade, numa lenta varredura aérea. Os Enfumaçados, porém, sabiam tudo sobre como se esconder de satélites e aeronaves. Espalharam iscas por toda parte – sinalizadores que geravam um calor equivalente ao de um ser humano – e cobriram as janelas do prédio em que estavam com pedaços de Mylar preto. Além disso, as ruínas ocupavam uma área vasta; encontrar sete pessoas num lugar que fora uma cidade de milhões de habitantes não era uma tarefa fácil.
Toda noite, Tally via a influência da “Nova Fumaça” crescer. Muitos feios tinham lido a mensagem na noite da fuga, ou pelo menos ouviram falar dela, e as peregrinações noturnas às ruínas não paravam de crescer. Algumas vezes, as luzes dos sinalizadores, agitadas dos terraços dos prédios mais altos, podiam ser vistas da meia–noite ao amanhecer. Tally, Ryde, Croy e Astrix se aproximavam dos feios da cidade para espalhar boatos, ensinar novos truques e mostrar as antigas revistas que o Chefe conseguira salvar da destruição da Fumaça. A quem duvidava da existência da Circunstâncias Especiais, Tally mostrava as algemas de plástico que permaneciam em seus pulsos e desafiava qualquer um a tentar arrebentá–las.
Uma nova lenda se destacava entre as demais. Maddy concluíra que as lesões cerebrais não podiam mais ser um segredo; todo feio tinha o direito de conhecer as verdadeiras consequências da operação. Tally e os outros espalharam a história entre seus amigos da cidade: a cirurgia não mudava apenas o rosto das pessoas. A perda da personalidade – o que definia cada um em seu interior – era o preço a se pagar pela beleza.
Obviamente, nem todos os feios aceitavam uma versão tão radical. Mas alguns acreditavam. E outros iam escondidos até Nova Perfeição, tarde da noite, para conversar pessoalmente com antigos amigos e julgar por si próprios.
Às vezes, os Especiais tentavam acabar com a festa, preparando armadilhas para os Novos Enfumaçados, mas alguém sempre dava o alerta antes. E nenhum carro voador era capaz de alcançar uma prancha naqueles caminhos intricados e no meio dos destroços. Os Novos Enfumaçados passaram a conhecer cada cantinho da cidade como se tivessem nascido ali. Assim, conseguiam desaparecer num instante.
Maddy tentava descobrir uma cura usando materiais encontrados nas ruínas ou trazidos das cidades por feios dispostos a fazer empréstimos informais de hospitais e aulas de química. Ela se mantinha afastada dos outros, à exceção de David. Era particularmente fria com Tally, que se sentia culpada por todos os momentos passados ao lado dele, agora que sua mãe estava sozinha. Ninguém falava sobre a morte de Az.
Shay permaneceu entre eles, reclamando da comida, das ruínas, do cabelo e das roupas. Também era obrigada a ver todas aquelas caras feias ao seu redor. Apesar disso, numa agia com antipatia; apenas parecia estar sempre incomodada. Passados os primeiros dias, deixou até de falar em ir embora. Talvez a lesão cerebral a tornasse mais complacente. Ou simplesmente não tivesse vivido em Nova Perfeição por tempo suficiente para sentir muita falta. Ainda pensava em todos como amigos. Por vezes, Tally se perguntava se Shay, em segredo, gostava de ter o único rosto perfeito no pequeno grupo rebelde. De qualquer maneira, ela não trabalhava mais do que se estivesse na cidade; Ryde e Astrix obedeciam a todas as suas ordens.
David ajuda a mãe, procurando objetos úteis nas ruínas, e ensinava tecnicas de sobrevivência a qualquer feio que quisesse aprender. Naquelas duas semanas após a morte de Az, Tally percebeu que sentia falta dos tempos em que eram apenas ela e David.
Vinte dias depois do resgate, Maddy anunciou que encontrara uma cura.


– Shay, quero lhe explicar isso muito bem.
– Claro, Maddy.
– Quando você passou pela operação, eles fizeram algo em seu cérebro.
Shay sorriu.
– Ah, tá. – Ela olhou para Tally, como se entendesse tudo. – É o que Tally vive me dizendo o problema é que vocês não entendem.
– O que quer dizer com isso? – perguntou Maddy.
– Eu gosto da minha aparência. Estou mais feliz neste corpo. Quer falar mesmo de lesões cerebrais? Olhe só para vocês, correndo pelas ruínas, brincando de operação militar. Estão todos preocupados com planos e rebeliões, dominados pelo medo e pela paranoia. E pela inveja. – Seus olhos se alternavam entre Tally e Maddy. – Essa é a consequência de ser feio.
– E como você se sente, Shay? – perguntou Maddy, mantendo a calma.
– Me sinto borbulhante. É bom não ficar toda agitada por causa dos hormônios. É claro que estar aqui, em vez de curtindo na cidade, é um saco.
– Você não é obrigada a ficar aqui, Shay. Por que não foi embora?
Ela hesitou por um instante.
– Não sei... Acho que me preocupo com vocês. Este lugar é perigoso, e criar caso com os Especiais não é uma ideia muito boa. Você já devia saber disso, Maddy.
Tally respirou fundo, tentando se controlar, mas a expressão de Maddy não mudou em nada.
– E você vai nos proteger deles? – perguntou.
– Sabe, eu me sinto mal por causa de Tally. Se eu não tivesse falado a respeito da Fumaça, agora ela seria uma perfeita, em vez de estar aqui nesta pocilga. Acho que uma hora ela vai decidir agir como adulta. E aí poderemos voltar juntas.
– Parece que não quer decidir por conta própria – disse Maddy.
– Decidir o quê? – perguntou Shay, revirando os olhos, como se quisesse mostrar a Tally como aquilo era chato.
As duas tiveram aquela conversa uma dezena de vezes até Tally concluir que não conseguiria convencer Shay de que sua personalidade tinha mudado. Para Shay, seu novo comportamento era apenas resultado de um processo de amadurecimento, de seguir em frente deixando as emoções exageradas dos tempos de feia para trás.
– Você não foi sempre assim, Shay – disse David.
– Não mesmo. Eu era feia.
Maddy sorriu com gentileza.
– Esses comprimidos não vão mudar sua aparência. Só vão mudar seu cérebro, desfazer o que a dra. Cable alterou no modo de funcionamento da sua mente. Depois disso, você poderá decidir sozinha quanto à sua aparência.
– Decidir? Depois que você tiver mexido no meu cérebro?
– Shay! – gritou Tally, esquecendo–se da promessa de permanecer em silêncio. – Não somos nós que estamos manipulando seu cérebro!
– Tally! – interveio David, num tom controlado.
– Ah, deve ser isso mesmo, eu que sou a maluca aqui – disse Shay, assumindo a mesma entonação de sua sessão diária de reclamações. – Não são vocês, que vivem num prédio destruído, num canto de uma cidade–fantasma, transformando–se aos poucos em aberrações, quando podiam ser lindos. É, sou maluca... por tentar ajudar vocês!
Tally se sentou e cruzou os braços, sem resposta para as palavras de Shay. Sempre que tinham aquela conversa, a realidade se tornava um pouco difícil de entender, como se ela e os outros Novos Enfumaçados pudessem de fato ser os insanos. Tudo aquilo lhe lembrava seus primeiros dias na Fumaça, quando ainda não sabia de que lado estava.
– Como você está nos ajudando, Shay? – perguntou Tally.
– Estou tentando fazê–los entender.
– Daquele jeito que fazia quando a dra. Cable a levava à minha cela?
Os olhos de Shay se apertaram, e seu rosto ficou confuso, como se as lembranças da prisão subterrânea não se encaixassem ao resto de sua visão perfeita do mundo.
– Sei que a dra. C foi horrível com vocês – admitiu ela. – Os Especiais são psicopatas... é só olhar para eles. Mas isso não significa que as pessoas devem passar a vida inteira fugindo. É isso que estou tentando dizer. Depois que se transformarem, os Especiais não irão mais atrás de vocês.
– E por que não?
– Porque vocês não vão mais criar confusão.
– E por que não?
– Porque serão felizes! – Shay parou para respirar até recuperar sua calma habitual. Então, ela sorriu, novamente encantadora. – Felizes como eu.
Maddy pegou as pílulas que estavam sobre a mesa.
– Não quer tomar esses comprimidos?
– De jeito nenhum. Você mesma disse que não são seguros.
– Eu disse que havia uma pequena chance de algo dar errado – corrigiu Maddy.
Shay deu uma risada.
– Deve achar mesmo que sou maluca. Ainda que essas pílulas funcionem, pense bem no que elas prometem fazer. Até onde eu entendo, estar "curada" significa ser uma pessoa invejosa, orgulhosa, reclamona e dona de um cérebro de feia. Significa me considerar dona de todas as respostas.
– Ela cruzou os braços. – Em vários aspectos, você e a dra. Cable se parecem. As duas acreditam que podem mudar o mundo. Bem, eu não preciso disso. E também não preciso dessas coisas aí.
– Tudo bem. – Maddy enfiou os comprimidos no bolso.
– Era tudo que eu tinha a dizer.
– Como assim? – perguntou Tally.
David segurou sua mão.
– É tudo que podemos fazer, Tally.
– Como assim? Você disse que poderíamos curá–la.
– Somente se ela quiser – explicou Maddy. – Tally, essas pílulas são experimentais. Não podemos obrigar ninguém a tomá–las. Não sem saber se funcionam.
– Mas o cérebro dela... ela tem as lesões!
– Ei – disse Shay. – Ela está sentada bem aqui.
– Me desculpe por tudo isso, Shay – disse Maddy.
Maddy chamou Tally e passou para o outro lado da proteção de Mylar, onde havia uma área que os Novos Enfumaçados chamavam de varanda. Na verdade, era apenas um pedaço do último andar do prédio em que o teto desmorona, deixando uma vista panorâmica das ruínas.
Tally a seguiu, deixando para trás uma Shay preocupada com o que haveria para jantar. David também saiu, pouco depois.
– Então vamos fazê–la ingerir as pílulas sem saber, é isso? – perguntou Tally, sussurrando.
– Não – respondeu Maddy com firmeza. – Não podemos. Não vou realizar experimentos médicos com pacientes não cooperativos.
– Experimentos médicos?
– Não há como prever com segurança os resultados de algo desse tipo – explicou David, segurando sua mão. – Embora o risco seja de apenas um por cento, ela poderia ficar com o cérebro danificado para sempre.
– Mas ele já está danificado.
– Acontece que ela se sente feliz, Tally. E pode tomar decisões por conta própria.
Tally se afastou e ficou parada, observando a cidade. Podia ver um sinalizador na torre mais alta, com feios se reunindo para conversar e trocar objetos.
– E por que nos importamos? Eles não pediram permissão para fazer o que fizeram com ela!
– Essa é a diferença entre nós e eles – disse Maddy. – Depois que eu e Az descobrimos o significado real da operação percebemos que éramos parte de algo terrível. Pessoas tinham suas mentes modificadas sem saberem. Como médicos, fizemos um juramento pelo qual nos comprometíamos a nunca fazer algo desse tipo.
Tally encarou Maddy.
– Mas se não vai ajudar Shay, por que se esforçou para achar uma cura?
– Se soubéssemos que o tratamento é seguro, poderíamos dá–lo a Shay, para depois avaliar sua reação. Mas para testarmos a pílula precisamos de um voluntário.
– Onde vamos arrumar alguém? Nenhum perfeito aceitaria.
– Talvez por enquanto, Tally. Porém, se continuarmos avançando sobre a cidade podemos encontrar um perfeito que queira mudar de vida.
– Mas nós sabemos que Shay está maluca.
– Ela não está maluca – corrigiu Maddy. – Na verdade, seus argumentos fazem sentido. Ela está feliz desse jeito e não quer correr o risco de morrer.
– O problema é que ela não é realmente ela. Precisamos transformá–la de volta no que era antes – insistiu Tally.
– Az morreu porque alguém pensava dessa maneira – disse Maddy.
– Como é que é?
David passou um braço por trás do corpo de Tally.
– Meu pai... – Ele limpou a garganta. Tally esperou em silêncio. Finalmente, saberia como Az tinha morrido. David respirou fundo antes de prosseguir. – A dra. Cable queria transformar todos eles, mas receava que mamãe e papai fizessem a respeito das lesões cerebrais, mesmo depois da operação, pois haviam dedicado muito tempo ao assunto. Embora a voz de David estivesse alterada, ele falava com calma e cuidado, como se não quisesse contaminar as palavras com emoções. – A dra. Cable estava trabalhando em maneira de apagar memórias, um modo de tirar as lembranças da Fumaça da cabeça das pessoas. Meu pai foi levado à sala de operação, mas nunca voltou.
– Que coisa horrível – murmurou Tally e, em seguida, deu um abraço em David.
– Az foi vítima de um experimento médico, Tally – explicou Maddy. – Não posso fazer o mesmo com Shay. Do contrário, ela estaria certa a respeito de mim e da dra. Cable.
– Mas Shay era uma fugitiva. Não queria se tornar perfeita.
– Ela também não quer ser cobaia num experimento.
Tally fechou os olhos. Atrás da tela de Mylar, Shay contava a Ryde a respeito da escova de cabelo que fizera. Naqueles dias, nunca perdia a oportunidade de mostrar o pequeno objeto, feito de lascas de madeira enfiadas num pedaço de argila, a qualquer pessoa disposta a escutar. Como se fosse a coisa mais importante que já fizera na vida.
Eles arriscaram tudo para salvá–la, mas não havia recompensa. Shay nunca mais seria a mesma.
E a culpa era toda de Tally, que tinha ido à Fumaça e chamado os Especiais. O resultado: uma Shay cabeça de vento e Az morto.
Ela respirou fundo.
– Muito bem. Agora vocês têm uma voluntária.
– Como assim, Tally?
– Eu.

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