quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 47 (Serie Feios)


NOITE SOLITÁRIA

Tally e Shay foram as primeiras a chegar à caverna.
Croy apareceu poucos minutos depois, de surpresa, passando pela cachoeira numa súbita explosão de água e palavrões. Ele despencou na escuridão, rolando pelo cheio de pedra e provocando uma sequência de sons abafados assustadora.
Do fundo da caverna, Tally se aproximou, com a lanterna numa das mãos. Croy sacudiu a cabeça e murmurou:
– Consegui despistá–los.
Tally observou a entrada da caverna: o véu de água continuava firme diante do céu noturno.
– Espero que sim – disse. – Onde estão os outros?
– Não sei. Maddy nos mandou pegar caminhos diferentes. Como eu estava sozinho, dei a volta inteira no cinturão verde, para confundi–los.
Ele jogou a cabeça para trás, ainda ofegante. A mão aberta segurava um localizador.
– Caramba. Foi bem rápido – comentou Tally.
– Você nem imagina. E sem braceletes.
– Sei como é. Pelo menos estava de tênis. Alguém veio atrás de você?
– Fiquei com o rastreador o máximo que pude. A maioria dos Especiais veio atrás de mim. Mas havia um monte de gente voando no cinturão. Sabe, garotos da cidade. Os Especiais ficaram confusos.
TalIy sorriu. Dex, An e Sussy fizeram sua parte muito bem.
– David e Maddy estão bem? – perguntou.
– Não tenho como responder. Tudo que sei é que partiram logo depois de vocês, e não parecia haver ninguém atrás deles. Maddy disse que iriam direto para as ruínas. Devemos encontrá–los por lá amanhã à noite.
– Amanhã?
– Maddy queria ficar um tempo a sós com David, entende?
Apesar de responder que sim, Tally sentiu um aperto no coração. David precisava dela. Ou, ao menos, essa era sua esperança. Pensar nele encarando a morte de Az sem ela por perto tornou sua angústia um pouco mais intensa.
Maddy estava lá, e Az era marido dela, enquanto Tally só o havia visto uma vez. Mas ainda assim achava que sua presença era importante.
Ela suspirou. Lembrou–se das últimas palavras que dissera a David e desejou que fossem mais consoladoras. Sequer houvera tempo para dar–lhe um abraço. Desde a invasão da Fumaça, Tally e David não haviam se separado por mais de uma hora, durante aquela tempestade, e agora precisava se acostumar à ideia de passar um dia inteiro longe dele.
– Talvez fosse melhor eu ir logo às ruínas. Poderia fazer a caminhada à noite.
– Seria loucura – disse Croy. – Os Especiais ainda estão por aí.
– Mas e se eles precisarem de alguma coisa?
– Maddy me mandou dizer que não.


Astrix e Ryde chegaram meia hora mais tarde, num estilo mais gracioso que o de Croy, e com suas versões de como despistaram os carros voadores. A caçada fora estranha: os Especiais pareciam confusos com tudo o que vinha acontecendo naquela noite.
– Nem se aproximaram de nós – contou Astrix.
– Mas estavam por toda parte – ponderou Ryde.
– É como se tivéssemos vencido uma batalha – disse Croy. – Derrotamos os Especiais na cidade deles. Ficaram com cara de bobos.
– Talvez não precisemos mais nos esconder na natureza – prosseguiu Ryde. – Poderíamos agir exatamente como quando éramos feios, fazendo bagunça. Mas desta vez revelando a verdade à cidade inteira.
– E, se formos pegos, Tally aparecerá para nos salvar! – gritou Croy.
Tally tentou sorrir com a empolgação dos companheiros, mas sabia que não conseguiria aproveitar nada até voltar a ver David. Até a noite seguinte. Sentia–se isolada, afastada da única coisa que realmente importava.
Numa pequena fenda, Shay já dormia, depois de reclamar da umidade e do estado do seu cabelo e de perguntar quando seria levada de volta para casa. Tally engatinhou até lá e se aconchegou ao seu lado, tentando esquecer o estrago causado à mente da amiga. Pelo menos, o novo corpo de Shay não era mais tão magro; na verdade, parecia bastante macio e quente, principalmente no frio da caverna. Encostada nela, Tally conseguiu parar de tremer.
Mesmo assim, levou muito tempo para dormir.
Ao acordar, sentiu um cheiro de MacaThai no ar.
Croy encontrara os pacotes de comida e o purificador dentro de sua mochila e estava preparando uma refeição usando água da cachoeira. Aparentemente, o objetivo era acalmar Shay.
– Dar uma escapadinha, tudo bem. Eu só não sabia que vocês iam me arrastar para cá. Enchi o saco dessa coisa de rebelião, estou com uma dor de cabeça insuportável e preciso desesperadamente lavar meu cabelo.
– Há uma queda d'água bem aí – disse Croy.
– Mas a água é gelada! Não aguento mais essa fraude de vida de acampamento.
Tally engatinhou até a parte mais ampla da caverna. Todos os seus músculos estavam rígidos; todo seu corpo marcado pelas pedras sobre as quais dormira. Através da cortina de água, podia notar o anoitecer. Ela se perguntou se um dia conseguiria voltar a dormir à noite.
Sentada numa rocha, Shay avançava no MacaThai, reclamando que não estava apimentado o suficiente. Mesmo molhada, usando roupas sujas de festa e com o cabelo colado no rosto, ainda era deslumbrante. Ryde e Astrix a observavam em silêncio, fascinados por sua beleza. Eles eram dois dos velhos amigos de Shay que tinham fugido para a Fumaça na época em que ela desistira. Portanto, devia fazer meses que não viam um rosto perfeito. Todos pareciam dispostos a permitir que ela continuasse reclamando.
Uma das vantagens de ser perfeito, é que as pessoas toleram seus hábitos mais irritantes.
– Bom dia – disse Croy. – NaboMôndegas ou ArrozVege?
– O que for mais rápido de preparar – respondeu Tally, esticando os braços.
Ela queria chegar às ruínas o quanto antes.
Assim que a noite caiu, Tally e Croy saíram de trás da cachoeira. Não havia sinal de Especiais no céu. Ela não acreditava que houvesse alguém realizando buscas numa região tão distante. Quarenta minutos da cidade, numa prancha de alta velocidade, correspondiam a uma viagem muito longa.
Eles fizeram um sinal, e os outros também saíram. Todos subiram pelo rio na direção das ruínas. Depois, iniciaram uma longa caminhada. Os quatro feios se revezavam para carregar as pranchas e os mantimentos. Shay tinha parado de reclamar, e agora, de ressaca, limitava–se a um silêncio mal–humorado. Andar não era problema. Sua boa forma, fruto do trabalho duro na Fumaça, não se perdera em duas semanas. Além disso, a operação tornara seus músculos mais firmes – por algum tempo, pelo menos. Embora houvesse anunciado seu desejo de voltar para casa, ir sozinha não parecia ter–lhe ocorrido.
Tally se perguntava o que fariam com ela depois. Não existia uma cura. Maddy e Az trabalharam durante vinte anos sem obter sucesso. Mas eles não podiam deixar Shay daquele jeito.
Evidentemente, no momento em que estivesse curada, seu ódio por Tally reapareceria.
O que seria pior: uma amiga com danos cerebrais ou uma que a detestasse?
Eles alcançaram a entrada das ruínas depois da meia–noite e seguiram imediatamente até o prédio abandonado em que Tally e David tinham montado uma base.
David estava à espera do lado de fora.
Ele parecia exausto, com manchas escuras sob os olhos, visíveis mesmo sob a luz tênue das estrelas. Logo que Tally desceu da prancha, ele a envolveu em seus braços com força, e ela retribuiu o abraço.
– Você está bem? – perguntou Tally,baixinho, e na hora se sentiu uma idiota. Que tipo de resposta esperava? – Ai, David, claro que você não está bem. Sinto muito, eu...
– Shhh. Eu sei.
David se afastou e deu um sorriso. Sentindo–se aliviada, Tally apertou suas mãos, como que para se certificar de sua presença ali.
– Senti falta de você.
– Eu também.
Os dois se beijaram.
– Vocês dois são tão fofos – comentou Shay, usando os dedos para pentear o cabelo embaraçado durante o voo.
– Oi, Shay – disse David, esforçando–se para sorrir. – Vocês parecem estar com fome.
– Só se você tiver comida, não fraudes – respondeu Shay.
 Acho que não. Temos três tipos de curry reconstituído.
Shay murmurou algo e, passando por ele, entrou no prédio em ruínas. David a seguiu com os olhos, mas sem demonstrar a admiração que permanecia nos rostos de Ryde e Astrix. Era como se ele não percebesse a beleza de Shay.
– Finalmente tivemos sorte com alguma coisa – disse David.
Tally reparou em seu rosto, marcado pelo cansaço.
– Sério?
– Conseguimos fazer o Palm funcionar. Sabe, aquele que estava com a dra. Cable. Mamãe tentava arrancar a parte telefônica, para que não pudessem nos rastrear, e conseguiu acessar os dados de trabalho da doutora.
– E o que havia lá?
– Todas as anotações sobre a transformação de perfeitos em Especiais. E não só em relação à parte física. Também falam do funcionamento das lesões. Tudo que meus pais nunca souberam quando eram médicos.
– Shay... – lembrou–se Tally.
Sim. Mamãe acredita que pode achar uma cura.

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