quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 46 (Serie Feios)


FUGA

Preciso de uma faca – disse Maddy, esticando o braço e ignorando a expressão atordoada no rosto do filho.
Tally enfiou a mão na mochila e, em seguida, entregou um canivete à mãe de David, que puxou uma lâmina e cortou um pedaço da manga do macacão. Quando o elevador chegou ao nível da superfície, as portas só se abriram até a metade, detidas pelo rombo feito na chegada ao prédio. Os fugitivos passaram um por um e saíram correndo para a beirada do terraço.
A cerca de cem metros, as pranchas cruzavam o espaço aéreo do complexo, respondendo ao chamado dos braceletes de Tally. Mesmo que os Especiais não tivessem percebido nada até então, as pranchas sem passageiros certamente haviam acionado o sistema de segurança. Alarmes soavam por todos os lados.
Tally se virou para procurar David. Ele vinha devagar, fechando o grupo, ainda num estado de perplexidade. Ela o aguardou e, então, pôs as mãos em seus ombros.
– Sinto muito mesmo – disse.
David demonstrava contrariedade, mas não em relação a ela ou a qualquer coisa em particular.
– Não sei o que fazer, Tally.
– Temos de correr – respondeu ela, segurando sua mão. – É tudo que podemos fazer agora. Ir atrás da sua mãe.
Ele a encarou com um semblante perturbado.
– Tudo bem.
David tentou falar mais, mas as palavras foram engolidas por um barulho que lembrava unhas gigantes arranhando metal. O portão de saída dos carros estava sendo forçado. Porém, com a nanocola contendo quem quer que fosse, o único efeito perceptível era um tremor no terraço.
Maddy, a última a sair do elevador, travara as portas com um macaco. Agora, a voz repetia sem parar: “Elevador solicitado.”
Apesar de todos os cuidados tomados, havia outras maneiras de se chegar ao terraço. Maddy se dirigiu a David:
– Cole essas escotilhas, para que não consigam sair.
Depois de levar um instante para voltar à realidade, David fez que sim.
– Vou buscar as pranchas – disse Tally, antes de sair em disparada pelo terraço.
Ao chegar à beirada, ela saltou no ar, torcendo para que sua jaqueta tivesse um restinho de carga. Após um único sobe e desce, Tally pousou no chão e saiu correndo. As pranchas detectaram os braceletes e foram em sua direção.
– Tally! Cuidado!
Ela se virou na direção do berro de Croy. Um grupo de Especiais se aproximava, saídos de um portão. Eles corriam a uma velocidade sobre–humana, dando passadas largas.
Tally sentiu as pranchas cutucando suas pernas, como se fossem cães ansiosos para brincar. Ela subiu a bordo e, por um momento, buscou o equilíbrio com um pé em cada par. Nunca tinha ouvido falar em alguém usando quatro pranchas ao mesmo tempo. No entanto, não havia tempo para hesitação: o primeiro perfeito cruel já se encontrava a poucos passos de distância.
Um estalo de dedos, e prontamente ela ascendeu no ar.
O Especial deu um salto incrível, e seus dedos esticados tocaram nas pontas das pranchas. O contato causou um desequilíbrio. Tally se sentiu como uma pessoa num trampolim, depois de alguém pular na outra ponta. O resto dos Especiais aguardava lá embaixo, esperando que ela caísse.
Tally, entretanto, conseguiu se equilibrar e projetar o corpo para a frente, seguindo em alta velocidade na direção do prédio. Em poucos segundos, desembarcou no terraço e, com um chute, empurrou um dos pares para Croy. Os dois trataram de separar as pranchas rapidamente.
– Vá logo – disse Maddy. – Leve isso.
Ela lhe entregou um pedaço de pano laranja, com um pequeno circuito preso a um dos lados. Tally notou que Maddy havia cortado partes das mangas dos macacões de todos os fugitivos.
– Há um rastreador nesse chip – explicou Maddy. – Deixe–o cair pelo caminho para despistá–los.
Tally assentiu e olhou ao redor em busca de David. Ele vinha correndo, segurando o tubo de cola vazio, o rosto ainda tomado por uma expressão desolada.
– David... – disse Tally.
– Vão agora! – gritou Maddy, empurrando Shay para cima da prancha, atrás de Tally.
– Ei, não vou ganhar braceletes antiqueda? – perguntou Shay, trocando as pernas. – Não se esqueça de que esta não é minha primeira festa da noite.
– Eu sei. Segure firme – avisou Tally, antes de disparar como um foguete.
No início, as duas balançaram no ar e quase caíram. Mas logo Tally conseguiu se firmar, sentindo os braços de Shay bem apertados em torno de sua cintura.
– Opa, Tally! Vá mais devagar!
– Continue segurando – insistiu Tally. Impaciente com a lentidão da prancha, ela acelerou em plena curva. Além de ter de carregar duas pessoas, era preciso lidar com os movimentos bruscos de Shay. – Não lembra mais como se voa nisto aqui?
– Claro que lembro! Só estou meio enferrujada, Vesguinha. E bebi um pouco além da conta.
– Bem, tome cuidado para não cair. Vai se machucar.
– Ei, eu não pedi para ser resgatada!
– É, eu sei que não pediu.
Tally olhou para baixo enquanto sobrevoavam a Vila dos Coroas, desviando do cinturão verde para seguir direto até o rio. Se Shay caísse daquela altura, naquela velocidade, não estaria gravemente machucada. Estaria morta.
Morta como o pai de David. Tally se perguntava como haveria acontecido. Talvez numa tentativa de escapar dos Especiais, a exemplo do Chefe. Ou algo feito pela dra. Cable. Uma coisa, porém, não lhe saía da cabeça: não importava o modo, a culpa era dela.
– Shay, se você cair, me leve junto.
– Como é que é?
– Me agarre e não me solte de jeito nenhum. Estou usando uma jaqueta e braceletes. Eles vão nos manter no ar.
Provavelmente. Desde que a jaqueta não a puxasse numa direção e os braceletes, noutra. E que o peso combinado de Tally e Shay não superasse o limite dos sustentadores.
– Não é mais fácil me passar os braceletes, espertinha?
– Não temos tempo para parar.
– É, tem razão. Nossos amigos Especiais devem estar profundamente irritados – disse Shay, segurando firme em Tally.
Estavam quase no rio e não havia sinal de perseguidores. A nanocola devia ter resistido bem. No entanto, a Circunstâncias Especiais dispunha de outros carros – no mínimo, os três vistos pela manhã. E os guardas comuns também usavam veículos.
Tally se perguntou se a Circunstâncias Especiais preferiria pedir ajuda ou tentar manter o sigilo da operação. O que os guardas achariam da prisão subterrânea? O governo oficial da cidade sabia o que havia sido feito à Fumaça e a Az?
Assim que viu a água reluzir lá embaixo, pouco antes de uma curva, Tally deixou o pedaço de pano laranja cair. O farrapo flutuou na direção do rio. A correnteza o levaria de volta à cidade, no sentido oposto ao da rota de fuga.
Tally e David tinham combinado se encontrar mais para cima, num ponto bem depois das ruínas, onde ele encontrara uma caverna anos antes. Como a entrada ficava escondida atrás de uma cachoeira, eles estariam protegidos de sensores de calor. Dali, poderiam caminhar de volta às ruínas para recolher o resto do equipamento e então...
Reconstruir a Fumaça? Erguer sete Fumaças? Com Shay assumindo o posto de perfeita honorária? Tally se deu conta de que não havia planos para depois daquela noite. O futuro simplesmente não parecera muito palpável até aquele momento.
Evidentemente, ainda havia o risco de todos serem capturados.
– Acha que é verdade? – perguntou Shay. – Aquilo que a Maddy disse? – Tally arriscou olhar para trás e viu um quê de preocupação no rosto perfeito de Shay. – O que estou tentando dizer é que Az estava bem quando eu passei por lá, alguns dias atrás. Achei que fossem deixá–lo perfeito e não morto.
– Não sei mesmo.
Não parecia ser o tipo de coisa sobre o qual Maddy mentiria. Mas talvez Tally estivesse enganada. Ela se inclinou, fazendo a prancha deslizar velozmente, bem perto do rio, numa tentativa de esquecer as sensações negativas. O borrifo da água molhou os rostos das duas quando a prancha encostou na água. Shay passara a se posicionar corretamente, acompanhando as curvas do rio.
– Ei, eu me lembro daqui! – gritou ela.
– Você se lembra de mais alguma coisa de antes da operação? – berrou Tally, por cima do rugido das águas.
Shay se escondeu atrás de Tally ao ver uma nuvem de água vindo em sua direção.
– É claro que sim, sua bobinha – respondeu.
– Passou a me odiar porque eu roubei David de você. Porque eu traí a Fumaça. Você se lembra disso?
Shay permaneceu em silêncio por um minuto. Só se ouvia o barulho da água e do vento. Finalmente, ela aproximou o rosto do ouvido de Tally e disse com voz séria:
– É, eu me lembro. Mas foi só um comportamento de feio. Amor exagerado, ciúme e revolta contra a cidade. Toda criança age desse jeito. Mas chega uma hora em que a gente cresce, não é mesmo?
– E você cresceu graças a uma operação? Não acha isso meio estranho?
– Não foi por causa da operação.
– Então qual é a explicação?
– Tally, simplesmente foi bom para mim voltar para casa. Isso me fez perceber que a história toda da Fumaça era uma maluquice.
– E aquilo que disse sobre ter distribuído chutes e mordidas?
– Ah, precisei de uns dias para entender as coisas.
– Antes ou depois de se tornar perfeita?
A pergunta deixou Shay sem palavras novamente. Tally se indagava se seria possível corrigir a lesão cerebral por meio de uma simples conversa.
Ela tirou um localizador do bolso: as coordenadas indicavam que ainda faltava meia hora de voo até a caverna. Olhando por cima do ombro, Tally não conseguia ver nenhum sinal de carros voadores. Com cada uma das quatro pranchas pegando um caminho até o rio e se livrando dos rastreadores em pontos diferentes, os Especiais teriam uma noite complicada pela frente.
Além disso, havia a ajuda de Dex, Sussy e An, que prometeram convencer todos os feios que conheciam a dar uma voltinha naquela noite. O cinturão verde devia estar bem movimentado.
Tally imaginava quantos feios teriam visto a mensagem vinda de Nova Perfeição, quantos sabiam o que era a Fumaça e quantos estariam inventando suas próprias histórias para explicar as palavras misteriosas. Quantas novas lendas ela e David haviam criado com sua estratégia de distração?
Assim que as duas chegaram a uma parte mais calma do rio, Shay reiniciou a conversa.
– E então, Tally?
– O que foi?
– Por que quer tanto que eu odeie você?
– Não quero que me odeie, Shay. Bem, talvez eu queira. Traí você e me sinto muito mal por causa disso.
– Tally, não havia como a Fumaça existir para sempre. Você ter nos entregado não muda esse fato.
– Eu não entreguei vocês! – gritou Tally. – Não de propósito, pelo menos. E a história toda com David... foi sem querer. Nunca quis magoar você.
– Claro que não. Só está um pouco confusa – disse Shay.
– Eu estou confusa? É você que está...
As palavras se perderam no meio do caminho. Como era possível Shay não compreender que tinha sido mudada pela operação? Que não ganhara apenas um rosto perfeito, mas também uma... mente perfeita? Não havia outra explicação para ela ter mudado tão rapidamente, abandonando os companheiros para ir a festas e noites de sauna, esquecendo–se dos amigos, exatamente como Peris, meses antes.
– Você o ama? – perguntou Shay.
– David? Eu, ahn... talvez.
– Que bonitinho.
– Não é bonitinho. É real!
– E por que sente vergonha disso?
– Eu não... – reagiu Tally, sem saber o que dizer.
Naquele instante de distração, a traseira da prancha baixou e jogou água para trás. Shay deu um grito e se segurou em Tally, que tratou de levá–Ias mais para cima. Quando conseguiu parar de rir, Shay disse:
– E você acha que eu estou confusa?
– Escuta, Shay, existe uma coisa de que estou muito certa. Nunca pretendi trair a Fumaça. Fui obrigada a ir lá como espiã. E quando enviei o sinal aos Especiais, acredite, foi um acidente. Mesmo assim, sinto muito, Shay. Sinto muito por ter estragado seu sonho – disse Tally chorando, as lágrimas carregadas pelo vento soprando em sentido contrário.
Por algum tempo, o único som foi o das árvores passando na escuridão.
– Fico feliz por vocês dois terem voltado à civilização. – disse Shay, em voz baixa, bem segura atrás de Tally. – E não lamento nada do que aconteceu, se isso faz você se sentir melhor.
Tally pensou nas lesões no cérebro de Shay: os pequenos tumores, machucados ou o que fossem, cuja existência ela ignorava. Estavam lá dentro, em alguma parte, alterando pensamentos, manipulando sentimentos, corroendo as raízes de tudo aquilo que a definia. Fazendo–a perdoar Tally.
– Obrigada, Shay. Mas não me sinto nada melhor.

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