RESGATE
– Shay...
– Shay...
–Você conseguiu! – O sorriso atordoante de Shay sumiu no instante
em que ela viu a figura desamparada da dra. Cable no chão. – O que houve?
Tally não conseguia se concentrar, impressionada pela
transformação da amiga. A beleza de Shay parecia se sobrepor a tudo que sentia
naquele momento; o medo, a surpresa e a empolgação davam lugar a um sentimento
único de estupefação.
– Você... se transformou.
– Que perspicaz – disse Shay, com deboche. – David! Vocês dois
estão bem!
– Ahn... oi. – A voz de David era seca. Suas mãos trêmulas
seguravam o macaco. – Shay, precisamos da sua ajuda.
– É, parece que precisam mesmo. – Ela olhou para a dra. Cable e
suspirou. – Estou vendo que ainda são ótimos em criar problemas.
Desviando o olhar da beleza de Shay, Tally tentou se concentrar.
– Onde está todo mundo? Os pais de David? Croy?
– Bem aqui – respondeu Shay, apontando para trás, por cima do
ombro. – Estão todos trancafiados. A dra. C é uma fraude.
– Mantenha ela aqui – disse David.
Ele passou por Shay e entrou na sala. De fora, Tally conseguiu ver
pequenas portas lá dentro, com uma pequena janela em cada uma.
– Estou tão feliz que você esteja bem, Tally – disse Shay,
sorrindo. – Imaginei você sozinha na natureza... mas é óbvio que não estava
sozinha, não é?
Ao encarar Shay, mais uma vez Tally ficou completamente aturdida.
– O que eles fizeram com você? – perguntou.
– Além do óbvio?
– Sim. Quero dizer, não. – Tally não sabia como perguntar sobre os
danos cerebrais. – Mais alguém...
– Virou perfeito? Não. Eu fui a primeira porque dava menos
trabalho. Você precisava me ver distribuindo chutes e mordidas para todos os
lados – contou Shay, rindo.
– Eles te obrigaram?
– É. A dra. C sabe como ser desagradável. Mas, no fim, fiquei até
aliviada.
Tally engoliu em seco.
– Aliviada...
– Isso mesmo. Eu não aguentava mais este lugar. Aliás, só voltei
aqui porque a dra. C queria que eu conversasse com os Enfumaçados.
– Você está morando em Nova Perfeição – concluiu Tally,tentando
enxergar através da beleza e descobrir o que havia por atrás dos grandes e
perfeitos olhos de Shay.
– Estou. Acabei de chegar de uma festa incrível.
Tally finalmente reparou como as palavras de Shay saíam
arrastadas. Estava bêbada. Aquela devia ser a explicação para seu comportamento
estranho. Mas, de qualquer modo, ela tinha chamado os outros de “Enfumaçados”.
Portanto, não se considerava mais um deles.
– Shay, você vai a festas? Enquanto todo mundo está preso aqui?
– Acho que sim – respondeu Shay, sem saber o que dizer. – Ah,
todos eles vão sair depois que forem transformados. Assim que a dra. Cable
superar essa necessidade de demonstrar poder. – Ela olhou para o ser
inconsciente no chão e balançou a cabeça. – Mas amanhã ela vai estar com um
humor péssimo. Graças a vocês dois. – O som crescente de metal batendo veio da
sala de Detenção Prolongada. Tally ouviu outras vozes familiares. – Obviamente,
parece que não haverá ninguém na área para testemunhar a cena. Ei, nem
perguntei como andam as coisas entre vocês dois.
Tally abriu e fechou a boca, hesitante, antes de conseguiu dizer
alguma coisa.
– Nós estamos... bem.
– Que legal. Escuta, sinto muito por ter feito aquele escândalo
por causa disso. Sabe como são os feios. – Shay deu uma risada. – Claro que
sabe, né?
– Então você não me odeia?
– Não seja boba, Tally!
– Fico feliz em ouvir isso.
Naturalmente, a aprovação de Shay não significava nada. Não era um
perdão, mas apenas resultado de danos cerebrais.
– Você me fez um grande favor ao me tirar daquela Fumaça.
– Shay, não pode estar falando sério.
– Como assim?
– Não pode ter mudado de opinião tão rapidamente – argumentou Tally.
Shay deu outra risada.
– Se quer saber, precisei apenas de uma ducha quente para mudar de
opinião. – Ela esticou o braço e tocou os cabelos de Tally, desarrumados e
embaraçados, depois de duas semanas de acampamentos e voos de prancha. – Por
falar em ducha, você está um lixo.
Tally piscou. Podia sentir as lágrimas tentando sair de seus
olhos. Antes, Shay tinha demonstrado um desejo intenso de manter seu rosto, de
viver de acordo com as próprias regras, fora da cidade. Agora, porém, aquela
vontade havia se extinguido.
– Eu não queria... trair você – disse Tally.
Shay olhou por cima do ombro e sorriu.
– Ele não sabe que você estava trabalhando para a dra. C, não é?
Não se preocupe, Tally – sussurrou, levando o dedo elegantemente aos lábios. –
Seu pequeno segredo de feia está bem guardado comigo.
TalIy ficou nervosa, imaginando se Shay saberia da história
inteira. Talvez a dra. Cable tivesse contado a todo mundo o que ela fizera.
Um sinal sonoro veio do lado da dra. Cable. Havia uma luz piscando
no terminal que ela levava nas mãos – uma chamada. Tally pegou o dispositivo e
o entregou a Shay.
– Responda a eles!
Shay deu uma piscada, apertou um botão e começou a falar:
– Oi, sou eu, Shay. Não, sinto muito, a dra. Cable está ocupada.
Com o quê? Bem, é complicado... – Ela interrompeu a chamada por um instante. –
Tally, você não devia estar resgatando as pessoas ou alguma coisa assim? Esse é
o seu objetivo, certo?
– Você vai ficar?
– Que pergunta. Isto é tão borbulhante. Só porque sou perfeita não
significa que sou totalmente chata.
Tally passou por ela e entrou na sala. Viu duas portas já
arrebentadas: a mãe de David e outro Enfumaçado estavam livres. Os dois usavam
macacões laranja, e seus olhares mesclavam perplexidade e cansaço. Com o macaco
enfiado junto ao chão, David se preparava para pôr outra porta abaixo.
Nesse momento, Tally notou, atrás de uma das janelas minúsculas
das celas, os olhos arregalados de Croy. Ela encaixou seu macaco sob a porta.
Aos poucos, o ruído discreto foi se transformando num guincho, à medida que o
metal grosso se retorcia.
– David, eles já sabem que tem alguma coisa errada – gritou.
– Tudo bem. Estamos quase acabando.
O macaco que Tally manipulava abrira uma pequena passagem, mas
esta não era grande o suficiente. Depois de ajustar o encaixe da ferramenta,
ela conseguiu fazer o metal ceder mais um pouco. Não tinha passado dias
arrancando dormentes à toa: agora o buraco parecia a entrada de uma casa de
cachorro.
Os braços de Croy apareceram primeiro. Em seguida, vieram a cabeça
e o macacão, com vários rasgos causados pelas pontas de metal que pressionavam
seu corpo, por mais que se contorcesse. Maddy segurou suas mãos e o ajudou a
sair.
– Estamos todos aqui. Vamos embora – disse ela.
– E o papai? – gritou David.
– Não há nada que possamos fazer por ele – respondeu Maddy, antes
de sair da sala.
Tally e David trocaram um olhar nervoso e a seguiram. Maddy corria
pelo corredor, na direção do elevador, segurando Shay pelo pulso. Shay apertou
o botão de comunição do terminal.
– Espere um pouco, acho que ela está voltando a si. Não saia daí,
por favor – ela disse, rindo, e desligou o aparelho novamente.
– Tragam Cable! – avisou Maddy. – Precisamos dela.
– Mãe! – chamou David.
Tally encarou Croy e depois se virou para a dra. Cable, jogada no
chão. O feio acenou e cada um pegou um braço, arrastando a mulher pelo chão
lustroso, sem perder tempo. Os tênis antiderrapantes de Tally agarravam no piso
e faziam um barulho infernal.
Quando o grupo chegou ao elevador, Maddy segurou a dra. Cable pela
gola e encostou o rosto dela no leitor ótico. A mulher gemeu baixinho. Com
cuidado, Maddy expôs um dos olhos da doutora. O elevador soltou um sinal sonoro
e logo as portas se abriram.
Depois de arrancar o anel de interface da dra. Cable, Maddy a
largou no chão de novo e puxou Shay para dentro. Tally e os outros Enfumaçados
foram atrás. Apenas David não saía do lugar.
– Mãe, onde está meu pai?
– Não há nada que possamos fazer.
Maddy tomou o terminal das mãos de Shay e o espatifou contra a
parede. Os protestos de David não a impedir de arrastá–lo para dentro. Assim
que as portas se fecharam, o elevador perguntou: “Para que andar?”
– Terraço – respondeu Maddy, segurando o anel de interface. O
elevador começou a se mover. Os ouvidos de Tally sofriam com a velocidade da subida.
– Qual é o nosso plano de fuga? – perguntou.
O olhar de cansaço sumira do rosto da mãe de David. Era como se
ela tivesse dormido no dia anterior já esperando um resgate de manhã.
– Ahn, pranchas – respondeu Tally.– Temos quatro.
Percebendo que estava se esquecendo de algo, ela mexeu nos
braceletes antiqueda para chamar as pranchas.
– Hum, que legal! – disse Shay. – Sabe que não ando de prancha
desde que saí da Fumaça?
– Somos sete – lembrou Maddy. – Tally, você leva Shay.
Astrix e Ryde formam outra dupla. Croy vai sozinho e tenta
despistá–los. David, vou com você.
– Mãe... Se ele se tornou perfeito, não pode curá–lo? Não pode
pelo menos tentar?
– David, seu pai não virou perfeito. Ele está morto.
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