CÚMPLICES
– Se corrermos, dá tempo.
– Se corrermos, dá tempo.
– Tempo para o quê?
– Para ir até a escola de arte de Vila Feia. Eles têm jaquetas de
bungee jump guardadas no subsolo. Uma prateleira cheia.
David respirou fundo.
– Está bem.
– Ei, você não está com medo, está? – perguntou Tally.
– Não... – começou David, com uma cara de sofrimento. – É que
nunca vi tantas pessoas juntas.
– Tantas pessoas? Ainda não vimos ninguém.
– Eu sei. Estou falando das casas pelas quais passamos. Fico
pensando nas pessoas que moram em cada uma delas, todas espremidas lá dentro.
Tally deu uma risada.
– Acha que as pessoas vivem espremidas nos subúrbios? Espere só
até chegarmos em Vila Feia.
Eles
retomaram em velocidade máxima por cima dos telhados. O céu estava
completamente escuro. Tally, contudo, já conhecia a posição das estrelas bem o
suficiente para saber que os primeiros raios do amanhecer surgiriam em poucas
horas.
Depois de alcançarem o cinturão verde, refizeram o percurso, ao contrário,
sem dizer nada, apenas se concentrando em desviar das árvores. O trajeto
passava pelo Parque Cleópatra, onde Tally decidiu voar por entre as varetas de
slalom, só para lembrar dos velhos tempos. Sentiu um arrepio ao cruzar o
caminho que levava ao dormitório. Por um instante, teve a impressão de que
entraria no desvio, subiria até uma janela e iria dormir.
Logo, os telhados irregulares da escola de arte de Vila Feia
apareceram à sua frente, e Tally fez um sinal para David parar.
Aquela parte era fácil. Parecia uma eternidade desde que ela e
Shay pegaram as jaquetas da escola para seu último número: o salto sobre os
feios recém–chegados na biblioteca do alojamento. Tally refez os passos até a
janela que elas tinham arrombado, um pedaço de vidro velho e esquecido atrás de
algumas plantas decorativas. Continuava destrancada.
Tally custava a acreditar. Aquela invasão parecera muito ousada
dois meses antes. Na época, a brincadeira na biblioteca era o máximo em que ela
e Shay podiam pensar. Agora Tally entendia o significado real daquelas
travessuras: um modo de os feios gastarem energia até o aniversário de 16 anos.
Não passava de uma distração até que sua rebeldia fosse apagada pela vida
adulta – e pela operação.
– Passe a lanterna para mim. E fique esperando aqui.
Ela entrou pela janela, encontrou a prateleira, pegou duas
jaquetas e saiu menos de um minuto depois. Quando reapareceu, deparou–se com a
cara de espanto de David.
– O que foi? – perguntou ela.
– Nada. É só que você é... tão boa nisso. Tão segura. Eu fico
nervoso só de estar na cidade.
– Não é nada de mais. Todo mundo faz isso.
Apesar de suas palavras, Tally estava feliz em poder impressionar
David com suas habilidades de invasora. Naquelas últimas semanas, ele lhe
ensinara como acender uma fogueira, escamar peixes, montar uma barraca e ler
mapas topográficos. Era bom ser a mais competente de vez em quando.
Eles voltaram ao cinturão verde e chegaram ao rio antes mesmo de
os primeiros tons de rosa surgirem no céu. Seguiram a toda sobre as corredeiras,
até o veio de minério, e já avistavam as ruínas quando as cores do céu
finalmente começaram a mudar. Na descida, a pé, Tally perguntou:
– Amanhã à noite, então?
– Sim, não há razão para esperarmos.
– Certo.
Pelo contrário: havia muitas razões para tentarem o resgate quanto
antes. Fazia duas semanas desde a invasão à Fumaça.
David limpou a garganta.
– Quantos Especiais acha que vamos encontrar lá dentro?
– Quando estive lá, havia muitos. Mas isso foi durante o dia.
Imagino que eles tenham de dormir em algum momento.
– Então o lugar vai estar vazio à noite.
– Isso também não. Acho que haverá alguns guardas. – Ela se calou
por um instante. Bastaria um único Especial para cuidar de uma dupla de feios.
Surpresa alguma compensaria a força e os reflexos daqueles perfeitos cruéis. –
Precisaremos tomar todo cuidado para que não nos vejam.
– Claro. Ou torcer para que tenham outra coisa a fazer.
Caminhando à frente, Tally sentia a exaustão se espalhando, agora
que estavam em segurança, fora da cidade. Sua determinação se esvaía a cada
passo. Eles fizeram a viagem inteira sem pensar muito na tarefa que tinham
adiante. Resgatar pessoas da Circunstâncias Especiais não era mais uma
brincadeira de feios, como roubar uma jaqueta ou subir o rio sem ninguém saber.
Tratava–se de uma missão perigosa.
Além disso, ainda que o mais provável fosse que Croy, Shay, Maddy
e Az estivessem aprisionados naqueles prédios horripilantes, não era impossível
que os Enfumaçados tivessem sido levados para outro lugar. De qualquer maneira,
Tally não fazia ideia de sua localização exata no interior daquele labirinto de
corredores cor de vômito.
– Só espero que tenhamos algum tipo de ajuda – disse Tally,
baixinho.
David pôs a mão em seu ombro, fazendo–a parar.
– Talvez tenhamos.
Ela o encarou, intrigada, e seguiu seu olhar, que estava fixo nas
ruínas. No terraço da torre mais alta, as últimas fagulhas de um sinalizador
ainda podiam ser vistas.
Havia feios ali.
– Eles estão me procurando – disse David.
– E o que vamos fazer?
– Existe algum outro caminho até a cidade?
– Não. Eles terão de subir por aqui.
– Então vamos esperá–los.
Tally ficou observando as ruínas. O sinalizador havia apagado; não
dava para enxergar mais nada sob a luz fraca que começava a se espalhar pelo
céu. Quem quer que estivesse lá tinha esperado até o último momento antes de
voltar para casa.
Obviamente, se estavam mesmo procurando por David, aqueles feios
eram fugitivos em potencial. Rebeldes mais velhos não muito preocupados com a
possibilidade de perder o café da manhã.
Ela olhou para David.
– Parece que os feios continuam procurando por você. E não deve
ser só aqui.
– É claro – concordou ele. – As histórias persistirão por
gerações, em cidades por toda parte, esteja eu por perto ou não. Acender um
sinalizador nem sempre garante uma resposta. Assim, levará um bom tempo até que
os feios se convençam de que eu não aparecerei. E a maioria deles sequer tem
certeza de que a Fumaça...
As palavras se perderam no ar. Tally segurou sua mão. Por um
segundo, David se esquecera que a Fumaça, de fato, não existia mais.
Eles aguardaram em silêncio até que ouviram um som de passos
arrastados vindo de trás das rochas. Deviam ser uns três feios, conversando em
voz baixa, como se ainda temessem os fantasmas das ruínas.
– Veja só o que vou fazer – sussurrou David, tirando a lanterna do
bolso. Ele se pôs no caminho e jogou o facho de luz sobre o próprio rosto. –
Estão procurando por mim? – disse, num tom alto e imponente.
Os três feios ficaram paralisados. Não conseguiam fechar as bocas
ou piscar os olhos. Só quando o único garoto do grupo deixou a prancha cair
sobre as pedras, provocando um barulho, o efeito se quebrou.
– Quem é você? – conseguiu perguntar uma das meninas.
– Eu sou David.
– Ah. Está querendo dizer que você...
– Que eu existo? – Ele desligou a lanterna e sorriu.
– Sim. Muita gente me pergunta isso.
Seus
nomes eram Sussy, An e Dex. Fazia um mês que iam às montanhas. Tinham ouvido
boatos sobre a Fumaça durante anos, desde a fuga de um feio que vivia no mesmo
dormitório que eles.
– Eu tinha acabado de me mudar para Vila Feia – contou Sussy. – Ho
era veterano. Quando ele sumiu, apareceram as teorias mais malucas sobre para
onde teria ido.
– Ho? – repetiu David. – Lembro dele. Ficou alguns meses, depois
mudou de ideia e voltou. Agora é um perfeito.
– Mas ele conseguiu? Chegar à Fumaça? – perguntou An.
– Sim. Eu o levei até lá.
– Uau. Então ela existe – disse An. Os três trocaram olhares
empolgados. – Também queremos conhecer a Fumaça.
David abriu a boca, mas a fechou antes de falar. Ele desviou o
olhar para o lado.
– Isso não é possível – interveio Tally. – Não neste momento.
– Por quê? – perguntou Dex.
Tally pensou por um instante. A verdade – que a Fumaça fora
destruída por invasores armados – parecia inacreditável. Até poucos meses
antes, ela não acreditaria no que sua própria cidade era capaz de fazer. Além
disso, se dissesse que a Fumaça não existia mais, o rumor chegaria a várias
gerações de feios. O trabalho da dra. Cable estaria completo, mesmo que alguns
Enfumaçados libertados conseguissem, de alguma maneira, estabelecer outra
comunidade na natureza.
– É o seguinte: de tempos em tempos, a Fumaça tem de mudar de
lugar, para manter sua localização em segredo. Neste momento, portanto, ela não
existe. Todos estão espalhados. Não estamos recrutando novos membros.
– A coisa toda muda de lugar? Caramba – disse Dex.
– Espere um pouco – ponderou An. – Se não estão recrutando, por
que estão aqui?
– Para aprontar uma – respondeu Tally. – Uma das grandes... Talvez
possam nos ajudar. E depois, quando a Fumaça estiver novamente de pé, vocês
serão os primeiros a saberem.
– Querem nossa ajuda? Como se fosse uma iniciação? – perguntou
Dex.
– Não – disse David, com firmeza. – Não obrigamos ninguém a fazer
nada para ser aceito na Fumaça. Mas, se quiserem ajudar, eu e Tally ficaremos
muito agradecidos.
– Só precisamos criar uma distração – explicou Tally.
– Parece bem divertido – disse An olhando para os amigos, que
concordaram balançando a cabeça.
Estavam dispostos a tudo, pensou Tally, como ela própria em outros
tempos. Tinha certeza de que eram veteranos, menos de um ano mais novos que
ela, mas pareciam incrivelmente jovens.
David e os três esperavam para ouvir o resto do plano. Ela tinha
de pensar numa distração sem perda de tempo. E uma distração das boas. Algo que
intrigasse os Especiais o suficiente para que decidissem investigar.
Algo que atraísse a atenção da própria dra. Cable.
– Bem, vocês vão precisar de muitos sinalizadores – avisou ela.
– Sem problemas.
– E vocês sabem como ir até Nova Perfeição, não sabem?
– Nova Perfeição? – repetiu An, buscando ajuda entre os amigos. –
Mas as pontes não entregam todos os que tentam atravessar o rio?
Sempre feliz em poder ensinar seus truques, Tally sorriu.
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