CENÁRIOS FAMILIARES
Eles
chegaram ao fim do deserto na noite seguinte, como previsto, e depois seguiram
um rio por três dias, até alcançarem o mar. Estavam mais ao norte, onde o frio
do outono parecia tão intenso quanto qualquer inverno que Tally já enfrentara.
David desembrulhou um par de roupas fabricadas na cidade, especiais para regiões
árticas; eram feitas de Mylar, um tipo de poliéster metalizado. Tally vestiu–a
por cima do suéter que agora era sua única lembrança da Fumaça. Agradecia por
não o ter tirado para dormir na noite anterior à invasão dos Especiais,
evitando que se perdesse, como todo o resto.
As noites a bordo das pranchas passavam rápido. Tally não
precisava desvendar as pistas enigmáticas de Shay, nem escapar de queimadas ou
de veículos antigos e assustadores da época dos Enferrujados. O mundo parecia
vazio, à exceção das ruínas que surgiam ocasionalmente. Era como se Tally e
David fossem os últimos sobreviventes.
Os dois reforçavam a dieta com peixes do rio. Tally chegou a assar
um coelho numa fogueira que ela própria tinha preparado. Por outro lado, depois
de assistir a David consertando suas roupas de couro, concluiu que nunca seria
capaz de manejar agulha e linha direito. Ele, no entanto, conseguiu ensiná–la a
calcular as horas e a direção pela posição das estrelas. Ela, por sua vez,
mostrou a entrar no software especial das pranchas e, assim, otimizá–las para
voos noturnos.
Após alcançarem o mar, eles rumaram para o sul, descendo pela
mesma ferrovia que Tally havia percorrido em sua ida à Fumaça. David contou
que, no passado, os trilhos seguiam ininterruptamente até a cidade dela e além.
Agora, porém, havia grandes falhas na ferrovia e cidades construídas no mar, o
que os obrigava a viajar frequentemente sobre o continente. Mas David conhecia
os rios, os trechos de trilhos e todos os outros caminhos de metal que os Enferrujados
tinham deixado para trás, o que permitiu que fizessem a viagem dentro do tempo
previsto.
O único obstáculo foi o clima. Depois de alguns dias de viagem
pela costa, uma formação escura e assustadora de nuvens surgiu no oceano. De
início, a tempestade pareceu lutar em avançar sobre a orla; permaneceu no mar,
ganhando força ao longo de demoradas 24 horas. A pressão atmosférica mudava de
um jeito que tornava difícil dominar as pranchas. Apesar de todo o aviso,
quando a tempestade chegou para valer, mostrou–se bem pior do que qualquer
coisa que Tally tivesse imaginado até então.
Ela nunca havia enfrentado a fúria de um furacão, a não ser de
dentro das sólidas estruturas de sua cidade. Estava recebendo mais uma lição
sobre o poder selvagem da natureza.
Por três dias, Tally e David se espremeram dentro de uma barraca
de plástico armada sob a proteção de um afloramento rochoso. Usavam
sinalizadores para obter calor e luz e torciam para que os ímãs das pranchas
não atraíssem um relâmpago. Nas primeiras horas, a dramaticidade da tempestade
os deixou fascinados, assombrados com tamanho poder, tensos à espera do
estrondo seguinte de um trovão que sacudiria as montanhas. Com o tempo,
contudo, a chuva forte se tornou apenas monótona. Perderam um dia inteiro
conversando sobre todo tipo de assunto, principalmente suas infâncias. Tally
passou a achar que conhecia David melhor do que qualquer outra pessoa. No
terceiro dia, brigaram feio – embora ela não se lembrasse da razão – que só
acabou depois que David saiu da barraca e ficou sozinho no vento gelado por
cerca de uma hora. Quando ele retomou, passou horas tremendo, mesmo aconchegado
nos braços de Tally.
– Estamos perdendo muito tempo – disse ele.
Tally o abraçou mais forte. A preparação para a operação era
demorada, especialmente no caso de pacientes com mais de 16 anos. Mas a dra.
Cable não esperaria muito para transformar os pais de David. A cada dia perdido
em consequência da tempestade, as chances de Maddy e Az já terem passado pela
cirurgia aumentavam. Para Shay, que estava na idade, o prognóstico era ainda
mais sombrio.
Não se preocupe. Vamos chegar lá. Eles tiraram minhas medidas uma
vez por semana, durante um ano. Precisam de tempo antes da separação para fazer
as coisas direito – explicou Tally.
David sentiu um arrepio.
– Tally, e se eles não estiverem preocupados em fazer as coisas
direito?
A
tempestade acabou na manhã seguinte. Ao saírem da barraca, eles descobriram que
as cores do mundo haviam mudado. As nuvens ostentavam um rosa intenso; a grama,
um verde extraordinário. O escuro absoluto do mar era quebrado apenas pela
espuma das cristas das ondas e por pedaço de madeira lançados na água pelo
vento. Eles voaram um dia inteiro para recuperar o tempo, surpresos pelo fato
de o mundo ainda existir depois daquela tempestade.
Pouco à frente, a ferrovia deixou o litoral, e em algumas noites
eles chegaram às Ruínas de Ferrugem.
As ruínas pareciam menores, como se os prédios tivessem encolhido
desde a última visita de Tally, mais de um mês antes, quando partira rumo à Fumaça
sem nada além do bilhete de Shay e uma mochila cheia de EspagBol. Agora,
enquanto passavam pelas ruas escuras, não tinha mais a impressão de ser
ameaçada por fantasmas de Enferrujados escondidos atrás das janelas.
– Na primeira vez que vim aqui à noite, fiquei apavorada – contou.
– É meio assustador ver como tudo está tão preservado. De todas as
ruínas que conheço, estas parecem ser as mais recentes.
– Eles passaram alguma substância para mantê–las em boas condições
para as excursões da escola.
Tally percebeu que aquilo resumia o espírito de sua cidade. Nada
seguia seu próprio destino. Tudo era transformado para seduzir, alertar ou
ensinar algo.
Os equipamentos foram escondidos num prédio desmoronado distante
da área central– um lugar tão acabado que nem os feios mais ousados teriam
vontade de visitar. Eles levaram consigo apenas purificadores de ar, uma
lanterna e alguns pacotes de comida. Como as ruínas eram o mais perto da cidade
que David já estivera, Tally assumiu a frente pela primeira vez, seguindo o
veio de ferro que Shay havia lhe mostrado meses antes.
– Acha que um dia seremos amigas de novo? – perguntou, enquanto
caminhavam na direção do rio, carregando as pranchas pela primeira vez na
viagem.
– Você e Shay? É claro que sim.
– Mesmo depois de... eu e você?
Depois que a resgatarmos dos Especiais, acho que a perdoará por
praticamente qualquer coisa.
Tally ficou em silêncio. Shay já deduzira que ela havia traído os
Enfumaçados. Dificilmente poderia fazer algo para compensar aquilo.
Assim que chegaram ao rio, eles subiram nas pranchas e deslizaram
por cima da correnteza alta velocidade, satisfeitos por estarem finalmente
livres dos sacos pesados. Sentindo os respingos em seu rosto e ouvindo o
barulho da água, Tally quase conseguia se imaginar numa de suas expedições, na
época em que não passava de uma menina despreocupada da cidade, em vez de...
Como se definiria naquele momento? Não era mais uma espiã, nem
podia se considerar uma Enfumaçada. Estava longe de ser perfeita, mas também
não se sentia uma feia. Não era nada em particular. Mas, pelo menos, tinha um
objetivo.
A cidade apareceu no horizonte.
– Lá está ela – gritou para David, encoberta pelo rumor da
correnteza.
– Você já viu outras cidades, não viu?
– Já estive a esta distância de algumas. Nunca mais perto.
Tally observou as linhas familiares e os rastros sutis dos fogos
de artifício iluminando as torres e mansões de festa. Sentiu uma pontada, como
se fosse saudade, só que muito pior. No passado, a imagem de Nova Perfeição a
enchia de ansiedade. Agora, no entanto, a cidade era uma concha vazia, sem
promessas para seduzi–la. A exemplo de David, ela perdera sua casa. Porém,
diferentemente da Fumaça, sua cidade ainda existia e estava bem diante dela. No
entanto, desprovida de qualquer significado que um dia tivera.
– Faltam algumas horas para o amanhecer – disse ela. – Quer dar
uma olhada na Circunstâncias Especiais.
– Quanto antes, melhor – respondeu David.
Tally examinou os padrões de luz e sombras da cidade ao seu redor.
O tempo era suficiente para ir e voltar antes de o sol nascer.
– Então, vamos lá.
Eles
prosseguiram pelo rio até o cinturão de árvores e arbustos que separava Vila
Feia dos subúrbios. Passar por lá era a melhor opção para não serem vistos.
– Não vá tão rápido! – alertou David, ao ver Tally disparando por
entre as árvores.
– Não precisa falar baixo – disse ela, reduzindo a velocidade. –
Ninguém vem aqui à noite. Estamos numa área dos feios, e eles estão todos
dormindo. A não ser que alguém tenha saído para aprontar.
– Tudo bem. Mas não devíamos ficar mais atentos aos trilhos de
prancha?
– Trilhos de prancha? David, as pranchas funcionam em qualquer ponto
da cidade. Existe uma estrutura de metal embaixo do chão.
– Ah, entendi.
Tally sorriu. Depois de tanto tempo vivendo no mundo de David, era
bom poder lhe explicar coisas, para variar.
– Qual é o problema? Não consegue acompanhar meu ritmo? –
provocou.
– Quer apostar? – disse David, rindo.
Ela se virou e saiu como um raio, fazendo um ziguezague por entre
as árvores altas, deixando–se guiar apenas pelo instinto.
Lembrou–se das duas viagens de carro até a Circunstâncias
Especiais. Tinha atravessado o cinturão verde na extremidade da cidade, ido até
o anel de transportação e, finalmente, chegado à zona industrial que ficava
entre os subúrbios dos perfeitos de meia–idade e a Vila dos Coroas. A parte
mais difícil, então, seria passar pelos subúrbios, uma região perigosa para
pessoas com rosto feio. Por sorte, os perfeitos de meia–idade iam dormir cedo.
A maioria, pelo menos.
A corrida durou até metade da extensão do cinturão. Nesse ponto,
eles avistaram o grande hospital, do outro lado do rio. Tally lembrou–se
daquela terrível primeira manhã, quando tinha sido afastada da operação
prometida e submetida a um interrogatório, vendo seu futuro lhe ser arrancado.
Ela ficou nervosa ao se dar conta de que, desta vez, estava procurando a
Circunstâncias Especiais.
Ao saírem do cinturão, Tally achou ter ouvido um tinido; uma parte
de seu corpo ainda esperava que o anel de interface a alertasse de que estava
deixando Vila Feia. Por que usara aquela coisa estúpida por 16 anos? Antes, era
simplesmente uma parte dela, mas agora a ideia de ser rastreada, monitorada e
orientada durante cada minuto do dia lhe causava repulsa.
– Fique perto de mim – disse a David. – Agora, sim, é hora de
sussurrar.
Quando criança, Tally tinha vivido com Sol e Ellie no subúrbio da
meia–idade. Naquela época, seu mundo era pateticamente limitado: alguns
parques, o caminho até a escola, um pedacinho do cinturão aonde ela ia
escondida espiar os feios. Assim como as Ruínas de Ferrugem, as fileiras
arrumadinhas de casas e jardins agora lhe pareciam muito menores, nada mais que
um bairro de casas de bonecas.
Eles deslizaram por cima dos telhados, mantendo–se bem agachados.
Esperavam que, se houvesse alguém acordado, caminhando ou levando o cachorro
para passear, essa pessoa não olhasse para cima. A uma distância de menos de um
palmo das casas, viam as telhas passarem de um modo hipnótico. Quebrando o
padrão, nada além de alguns ninhos e gatos de rua, que fugiam imediatamente
daquelas figuras inesperadas.
Os subúrbios chegavam ao fim de repente, numa última área verde
que se perdia no anel de transportação, onde as pontas das fábricas
subterrâneas brotavam da terra e caminhões de carga percorriam as vias de
concreto dia e noite, Tally inclinou a prancha para cima e acelerou.
– Tally! – sussurrou David. – Eles vão nos ver.
– Relaxa. Os caminhões são automáticos. Ninguém anda por aqui,
principalmente à noite – explicou Tally. Ainda nervoso, David observou os
veículos pesados. – Repare bem, eles não têm faróis, nem lanternas.
Ela apontou para uma imensa carreta que passava na hora.
Só havia uma luz fraquinha na parte de baixo – um laser de
navegação que lia os códigos de barras da rodovia.
Embora David continuasse tenso com os veículos em movimento lá
embaixo, eles seguiram em frente. Pouco depois, Tally avistou um ponto de
referência no meio daquela região infértil.
– Está vendo a montanha? A Circunstâncias Especiais fica ao seu
pé. Vamos subir para dar uma olhada.
A montanha era muito íngreme para abrigar uma fábrica e,
aparentemente, muito grande e maciça para ser removida com explosivos e
escavadeiras. Por isso, foi deixada no meio da área plana, como uma pirâmide
desequilibrada, com um lado extremamente inclinado e outro num declive suave,
coberto por arbustos e grama de tom quase marrom. David e Tally subiram pela
parte mais fácil, desviando apenas de algumas pedras e árvores ocasionais, até
alcançarem o topo.
Daquela altura, Tally enxergava até Nova Perfeição, embora o
tamanho da cidade iluminada equivalesse ao de um prato de comida. Na região
onde estavam, porém, não havia luz. Os prédios baixos e marrons da
Circunstâncias Especiais se destacavam apenas pela iluminação de segurança.
– Lá embaixo – indicou Tally, num sussurro.
– Não parece muito grande.
– A maior parte está embaixo da terra. Não sei a profundidade.
Eles ficaram observando o conjunto de prédios em silêncio. De onde
estavam, Tally podia ver claramente o perímetro cercado, formando um quadrado
quase perfeito ao redor das edificações. A segurança do local era para valer.
Na cidade, não havia muitas barreiras visíveis. Se alguém estivesse num lugar
proibido, simplesmente recebia um aviso educado do anel de interface.
– Acho que dá para passar pela cerca voando – disse David.
– Não é uma cerca – corrigiu Tally. – É um sensor de movimento. Se
você chegar a menos de vinte metros, os Especiais vão saber que há alguém na
área. Tanto faz se for voando ou andando.
– Vinte metros? É muito alto para as pranchas. E aí, o que fazemos
então? Batemos no portão?
– Não estou vendo nenhum portão. Quando estive aqui, entrei e saí
num carro voador.
David batucava na prancha enquanto pensava.
– E se roubássemos um? – sugeriu ele, finalmente.
– Um carro? Isso seria bem audacioso. Conheci feios que saíam para
passeios, mas não em carros da Circunstâncias Especiais.
– Pena que não podemos pular.
– Pular?
– É, daqui de cima. Subiríamos nas pranchas lá embaixo, viríamos a
toda e pularíamos deste exato lugar. Provavelmente acertaríamos aquele prédio
em cheio.
– Põe em cheio nisso. Viraríamos uma pasta.
– É, acho que sim. Mesmo com os braceletes antiqueda, depois de
uma queda desse tipo, nossos braços provavelmente sairiam do lugar. Para fazer
isso, precisaríamos de paraquedas.
Tally olhou para baixo, esboçando trajetórias na cabeça, num ritmo
frenético. Ela não deixava David falar. Estava ocupada com as lembranças da
festa na Mansão Garbo, algo que parecia ter ocorrido anos antes.
Depois de um tempo, ela sorriu.
– David, não precisamos de paraquedas. Precisamos de jaquetas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário