quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 41 (Serie Feios)


CENÁRIOS FAMILIARES

Eles chegaram ao fim do deserto na noite seguinte, como previsto, e depois seguiram um rio por três dias, até alcançarem o mar. Estavam mais ao norte, onde o frio do outono parecia tão intenso quanto qualquer inverno que Tally já enfrentara. David desembrulhou um par de roupas fabricadas na cidade, especiais para regiões árticas; eram feitas de Mylar, um tipo de poliéster metalizado. Tally vestiu–a por cima do suéter que agora era sua única lembrança da Fumaça. Agradecia por não o ter tirado para dormir na noite anterior à invasão dos Especiais, evitando que se perdesse, como todo o resto.
As noites a bordo das pranchas passavam rápido. Tally não precisava desvendar as pistas enigmáticas de Shay, nem escapar de queimadas ou de veículos antigos e assustadores da época dos Enferrujados. O mundo parecia vazio, à exceção das ruínas que surgiam ocasionalmente. Era como se Tally e David fossem os últimos sobreviventes.
Os dois reforçavam a dieta com peixes do rio. Tally chegou a assar um coelho numa fogueira que ela própria tinha preparado. Por outro lado, depois de assistir a David consertando suas roupas de couro, concluiu que nunca seria capaz de manejar agulha e linha direito. Ele, no entanto, conseguiu ensiná–la a calcular as horas e a direção pela posição das estrelas. Ela, por sua vez, mostrou a entrar no software especial das pranchas e, assim, otimizá–las para voos noturnos.
Após alcançarem o mar, eles rumaram para o sul, descendo pela mesma ferrovia que Tally havia percorrido em sua ida à Fumaça. David contou que, no passado, os trilhos seguiam ininterruptamente até a cidade dela e além. Agora, porém, havia grandes falhas na ferrovia e cidades construídas no mar, o que os obrigava a viajar frequentemente sobre o continente. Mas David conhecia os rios, os trechos de trilhos e todos os outros caminhos de metal que os Enferrujados tinham deixado para trás, o que permitiu que fizessem a viagem dentro do tempo previsto.
O único obstáculo foi o clima. Depois de alguns dias de viagem pela costa, uma formação escura e assustadora de nuvens surgiu no oceano. De início, a tempestade pareceu lutar em avançar sobre a orla; permaneceu no mar, ganhando força ao longo de demoradas 24 horas. A pressão atmosférica mudava de um jeito que tornava difícil dominar as pranchas. Apesar de todo o aviso, quando a tempestade chegou para valer, mostrou–se bem pior do que qualquer coisa que Tally tivesse imaginado até então.
Ela nunca havia enfrentado a fúria de um furacão, a não ser de dentro das sólidas estruturas de sua cidade. Estava recebendo mais uma lição sobre o poder selvagem da natureza.
Por três dias, Tally e David se espremeram dentro de uma barraca de plástico armada sob a proteção de um afloramento rochoso. Usavam sinalizadores para obter calor e luz e torciam para que os ímãs das pranchas não atraíssem um relâmpago. Nas primeiras horas, a dramaticidade da tempestade os deixou fascinados, assombrados com tamanho poder, tensos à espera do estrondo seguinte de um trovão que sacudiria as montanhas. Com o tempo, contudo, a chuva forte se tornou apenas monótona. Perderam um dia inteiro conversando sobre todo tipo de assunto, principalmente suas infâncias. Tally passou a achar que conhecia David melhor do que qualquer outra pessoa. No terceiro dia, brigaram feio – embora ela não se lembrasse da razão – que só acabou depois que David saiu da barraca e ficou sozinho no vento gelado por cerca de uma hora. Quando ele retomou, passou horas tremendo, mesmo aconchegado nos braços de Tally.
– Estamos perdendo muito tempo – disse ele.
Tally o abraçou mais forte. A preparação para a operação era demorada, especialmente no caso de pacientes com mais de 16 anos. Mas a dra. Cable não esperaria muito para transformar os pais de David. A cada dia perdido em consequência da tempestade, as chances de Maddy e Az já terem passado pela cirurgia aumentavam. Para Shay, que estava na idade, o prognóstico era ainda mais sombrio.
Não se preocupe. Vamos chegar lá. Eles tiraram minhas medidas uma vez por semana, durante um ano. Precisam de tempo antes da separação para fazer as coisas direito – explicou Tally.
David sentiu um arrepio.
– Tally, e se eles não estiverem preocupados em fazer as coisas direito?
A tempestade acabou na manhã seguinte. Ao saírem da barraca, eles descobriram que as cores do mundo haviam mudado. As nuvens ostentavam um rosa intenso; a grama, um verde extraordinário. O escuro absoluto do mar era quebrado apenas pela espuma das cristas das ondas e por pedaço de madeira lançados na água pelo vento. Eles voaram um dia inteiro para recuperar o tempo, surpresos pelo fato de o mundo ainda existir depois daquela tempestade.
Pouco à frente, a ferrovia deixou o litoral, e em algumas noites eles chegaram às Ruínas de Ferrugem.
As ruínas pareciam menores, como se os prédios tivessem encolhido desde a última visita de Tally, mais de um mês antes, quando partira rumo à Fumaça sem nada além do bilhete de Shay e uma mochila cheia de EspagBol. Agora, enquanto passavam pelas ruas escuras, não tinha mais a impressão de ser ameaçada por fantasmas de Enferrujados escondidos atrás das janelas.
– Na primeira vez que vim aqui à noite, fiquei apavorada – contou.
– É meio assustador ver como tudo está tão preservado. De todas as ruínas que conheço, estas parecem ser as mais recentes.
– Eles passaram alguma substância para mantê–las em boas condições para as excursões da escola.
Tally percebeu que aquilo resumia o espírito de sua cidade. Nada seguia seu próprio destino. Tudo era transformado para seduzir, alertar ou ensinar algo.
Os equipamentos foram escondidos num prédio desmoronado distante da área central– um lugar tão acabado que nem os feios mais ousados teriam vontade de visitar. Eles levaram consigo apenas purificadores de ar, uma lanterna e alguns pacotes de comida. Como as ruínas eram o mais perto da cidade que David já estivera, Tally assumiu a frente pela primeira vez, seguindo o veio de ferro que Shay havia lhe mostrado meses antes.
– Acha que um dia seremos amigas de novo? – perguntou, enquanto caminhavam na direção do rio, carregando as pranchas pela primeira vez na viagem.
– Você e Shay? É claro que sim.
– Mesmo depois de... eu e você?
Depois que a resgatarmos dos Especiais, acho que a perdoará por praticamente qualquer coisa.
Tally ficou em silêncio. Shay já deduzira que ela havia traído os Enfumaçados. Dificilmente poderia fazer algo para compensar aquilo.
Assim que chegaram ao rio, eles subiram nas pranchas e deslizaram por cima da correnteza alta velocidade, satisfeitos por estarem finalmente livres dos sacos pesados. Sentindo os respingos em seu rosto e ouvindo o barulho da água, Tally quase conseguia se imaginar numa de suas expedições, na época em que não passava de uma menina despreocupada da cidade, em vez de...
Como se definiria naquele momento? Não era mais uma espiã, nem podia se considerar uma Enfumaçada. Estava longe de ser perfeita, mas também não se sentia uma feia. Não era nada em particular. Mas, pelo menos, tinha um objetivo.
A cidade apareceu no horizonte.
– Lá está ela – gritou para David, encoberta pelo rumor da correnteza.
– Você já viu outras cidades, não viu?
– Já estive a esta distância de algumas. Nunca mais perto.
Tally observou as linhas familiares e os rastros sutis dos fogos de artifício iluminando as torres e mansões de festa. Sentiu uma pontada, como se fosse saudade, só que muito pior. No passado, a imagem de Nova Perfeição a enchia de ansiedade. Agora, no entanto, a cidade era uma concha vazia, sem promessas para seduzi–la. A exemplo de David, ela perdera sua casa. Porém, diferentemente da Fumaça, sua cidade ainda existia e estava bem diante dela. No entanto, desprovida de qualquer significado que um dia tivera.
– Faltam algumas horas para o amanhecer – disse ela. – Quer dar uma olhada na Circunstâncias Especiais.
– Quanto antes, melhor – respondeu David.
Tally examinou os padrões de luz e sombras da cidade ao seu redor. O tempo era suficiente para ir e voltar antes de o sol nascer.
– Então, vamos lá.
Eles prosseguiram pelo rio até o cinturão de árvores e arbustos que separava Vila Feia dos subúrbios. Passar por lá era a melhor opção para não serem vistos.
– Não vá tão rápido! – alertou David, ao ver Tally disparando por entre as árvores.
– Não precisa falar baixo – disse ela, reduzindo a velocidade. – Ninguém vem aqui à noite. Estamos numa área dos feios, e eles estão todos dormindo. A não ser que alguém tenha saído para aprontar.
– Tudo bem. Mas não devíamos ficar mais atentos aos trilhos de prancha?
– Trilhos de prancha? David, as pranchas funcionam em qualquer ponto da cidade. Existe uma estrutura de metal embaixo do chão.
– Ah, entendi.
Tally sorriu. Depois de tanto tempo vivendo no mundo de David, era bom poder lhe explicar coisas, para variar.
– Qual é o problema? Não consegue acompanhar meu ritmo? – provocou.
– Quer apostar? – disse David, rindo.
Ela se virou e saiu como um raio, fazendo um ziguezague por entre as árvores altas, deixando–se guiar apenas pelo instinto.
Lembrou–se das duas viagens de carro até a Circunstâncias Especiais. Tinha atravessado o cinturão verde na extremidade da cidade, ido até o anel de transportação e, finalmente, chegado à zona industrial que ficava entre os subúrbios dos perfeitos de meia–idade e a Vila dos Coroas. A parte mais difícil, então, seria passar pelos subúrbios, uma região perigosa para pessoas com rosto feio. Por sorte, os perfeitos de meia–idade iam dormir cedo. A maioria, pelo menos.
A corrida durou até metade da extensão do cinturão. Nesse ponto, eles avistaram o grande hospital, do outro lado do rio. Tally lembrou–se daquela terrível primeira manhã, quando tinha sido afastada da operação prometida e submetida a um interrogatório, vendo seu futuro lhe ser arrancado. Ela ficou nervosa ao se dar conta de que, desta vez, estava procurando a Circunstâncias Especiais.
Ao saírem do cinturão, Tally achou ter ouvido um tinido; uma parte de seu corpo ainda esperava que o anel de interface a alertasse de que estava deixando Vila Feia. Por que usara aquela coisa estúpida por 16 anos? Antes, era simplesmente uma parte dela, mas agora a ideia de ser rastreada, monitorada e orientada durante cada minuto do dia lhe causava repulsa.
– Fique perto de mim – disse a David. – Agora, sim, é hora de sussurrar.
Quando criança, Tally tinha vivido com Sol e Ellie no subúrbio da meia–idade. Naquela época, seu mundo era pateticamente limitado: alguns parques, o caminho até a escola, um pedacinho do cinturão aonde ela ia escondida espiar os feios. Assim como as Ruínas de Ferrugem, as fileiras arrumadinhas de casas e jardins agora lhe pareciam muito menores, nada mais que um bairro de casas de bonecas.
Eles deslizaram por cima dos telhados, mantendo–se bem agachados. Esperavam que, se houvesse alguém acordado, caminhando ou levando o cachorro para passear, essa pessoa não olhasse para cima. A uma distância de menos de um palmo das casas, viam as telhas passarem de um modo hipnótico. Quebrando o padrão, nada além de alguns ninhos e gatos de rua, que fugiam imediatamente daquelas figuras inesperadas.
Os subúrbios chegavam ao fim de repente, numa última área verde que se perdia no anel de transportação, onde as pontas das fábricas subterrâneas brotavam da terra e caminhões de carga percorriam as vias de concreto dia e noite, Tally inclinou a prancha para cima e acelerou.
– Tally! – sussurrou David. – Eles vão nos ver.
– Relaxa. Os caminhões são automáticos. Ninguém anda por aqui, principalmente à noite – explicou Tally. Ainda nervoso, David observou os veículos pesados. – Repare bem, eles não têm faróis, nem lanternas.
Ela apontou para uma imensa carreta que passava na hora.
Só havia uma luz fraquinha na parte de baixo – um laser de navegação que lia os códigos de barras da rodovia.
Embora David continuasse tenso com os veículos em movimento lá embaixo, eles seguiram em frente. Pouco depois, Tally avistou um ponto de referência no meio daquela região infértil.
– Está vendo a montanha? A Circunstâncias Especiais fica ao seu pé. Vamos subir para dar uma olhada.
A montanha era muito íngreme para abrigar uma fábrica e, aparentemente, muito grande e maciça para ser removida com explosivos e escavadeiras. Por isso, foi deixada no meio da área plana, como uma pirâmide desequilibrada, com um lado extremamente inclinado e outro num declive suave, coberto por arbustos e grama de tom quase marrom. David e Tally subiram pela parte mais fácil, desviando apenas de algumas pedras e árvores ocasionais, até alcançarem o topo.
Daquela altura, Tally enxergava até Nova Perfeição, embora o tamanho da cidade iluminada equivalesse ao de um prato de comida. Na região onde estavam, porém, não havia luz. Os prédios baixos e marrons da Circunstâncias Especiais se destacavam apenas pela iluminação de segurança.
– Lá embaixo – indicou Tally, num sussurro.
– Não parece muito grande.
– A maior parte está embaixo da terra. Não sei a profundidade.
Eles ficaram observando o conjunto de prédios em silêncio. De onde estavam, Tally podia ver claramente o perímetro cercado, formando um quadrado quase perfeito ao redor das edificações. A segurança do local era para valer. Na cidade, não havia muitas barreiras visíveis. Se alguém estivesse num lugar proibido, simplesmente recebia um aviso educado do anel de interface.
– Acho que dá para passar pela cerca voando – disse David.
– Não é uma cerca – corrigiu Tally. – É um sensor de movimento. Se você chegar a menos de vinte metros, os Especiais vão saber que há alguém na área. Tanto faz se for voando ou andando.
– Vinte metros? É muito alto para as pranchas. E aí, o que fazemos então? Batemos no portão?
– Não estou vendo nenhum portão. Quando estive aqui, entrei e saí num carro voador.
David batucava na prancha enquanto pensava.
– E se roubássemos um? – sugeriu ele, finalmente.
– Um carro? Isso seria bem audacioso. Conheci feios que saíam para passeios, mas não em carros da Circunstâncias Especiais.
– Pena que não podemos pular.
– Pular?
– É, daqui de cima. Subiríamos nas pranchas lá embaixo, viríamos a toda e pularíamos deste exato lugar. Provavelmente acertaríamos aquele prédio em cheio.
– Põe em cheio nisso. Viraríamos uma pasta.
– É, acho que sim. Mesmo com os braceletes antiqueda, depois de uma queda desse tipo, nossos braços provavelmente sairiam do lugar. Para fazer isso, precisaríamos de paraquedas.
Tally olhou para baixo, esboçando trajetórias na cabeça, num ritmo frenético. Ela não deixava David falar. Estava ocupada com as lembranças da festa na Mansão Garbo, algo que parecia ter ocorrido anos antes.
Depois de um tempo, ela sorriu.
– David, não precisamos de paraquedas. Precisamos de jaquetas.

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