quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 40 (Serie Feios)


A PRAGA DO PETRÓLEO

Tally e David partiram ao pôr do sol.
Cada um usava duas pranchas. Empilhadas, como num sanduíche, podiam carregar o dobro do peso, a maior parte dividida em sacos que ficavam pendurados nas laterais. Eles levaram tudo que parecia útil, além das revistas salvas pelo Chefe. Embora não soubessem exatamente o que havia acontecido, não fazia sentido retomar à Fumaça.
Tally seguiu o rio que descia a montanha com muito cuidado. O peso extra sacudia a prancha como se fosse um pêndulo. Pelo menos, ela estava novamente protegida pelos braceletes antiqueda.
A viagem seria feita por um caminho bastante diferente do que Tally percorrera para chegar à Fumaça. A rota original tinha sido pensada para ser simples – e incluía uma carona no helicóptero dos guardiões. Agora a jornada não seria tão direta. Sobrecarregados, Tally e David não conseguiriam cobrir sequer pequenas distâncias a pé. Cada centímetro teria passar por terras e águas propícias ao voo, não importava o quão fora de mão fossem. E, depois do ataque à Fumaça, evitariam qualquer cidade que aparecesse pela frente.
Felizmente, David tinha feito a viagem de ida e volta à cidade de Tally dezenas de vezes, sozinho ou acompanhado por feios inexperientes. Conhecia todos os rios e ferrovias, ruínas e veios naturais de minério, além de inúmeras rotas de fuga planejadas para o caso de ser perseguido por autoridades locais.
– Dez dias – avisou no início. – Se voarmos durante a noite toda e nos mantendo escondidos durante o dia.
– Para mim, está ótimo – disse Tally, embora se perguntasse se não seria tarde demais para salvar as pessoas da operação.
Por volta da meia–noite, no primeiro dia, eles saíram do córrego que levava à montanha que tinha a parte de cima desmatada. Dali, seguiram o leito de um riacho seco, passando por entre as flores brancas, e finalmente chegaram ao início de um vasto deserto.
– Como vamos atravessar isso aí?
David apontou para formas escuras que saíam da areia, numa fileira que se perdia no horizonte.
– Essas coisas eram torres interligadas por cabos de aço.
– E serviam para quê?
– Levavam energia elétrica de uma usina eólica até uma das antigas cidades.
– Não sabia que os Enferrujados usavam energia eólica – disse Tally, surpresa.
– Nem todos eram loucos. Só a maioria. Não se esqueça de que somos descendentes dos Enferrujados e ainda usamos parte de sua tecnologia. Alguns deles deviam pensar direito. Os cabos permaneciam enterrados no deserto, protegidos pela areia em movimento contínuo e pela ausência quase absoluta de chuva. Em pontos específicos, estavam partidos ou enferrujados demais, o que obrigava Tally e David a voar com bastante cuidado, de olhos atentos aos detectores de metal das pranchas. Quando se deparavam com uma lacuna que não podiam superar facilmente, desenrolavam um longo pedaço de cabo carregado por David e guiavam as pranchas por cima do caminho improvisado, como se fossem mulas passando por uma ponte estreita.
Tally nunca tinha visto um deserto de verdade. Ela havia aprendido que os desertos eram cheios de vida, mas aquele se parecia mais com o que costumava imaginar quando criança: apenas montes de areia que se prolongavam ao longe, um após o outro. Não havia movimento, à exceção do serpentear de alguns montes de areia levados pelo vento.
Ela só conhecia o nome de um grande deserto no continente.
– Estamos no Mojave?
– Não, este aqui não chega nem perto em tamanho. E também não é natural. Estamos na área em que as flores brancas começaram a se espalhar.
Tally assobiou. A areia parecia não ter fim.
– Que tragédia – comentou.
– Depois que a vegetação rasteira sumiu, substituída pelas orquídeas, não havia mais o que segurasse a terra fértil. Ela se desintegrou, e sobrou apenas a areia.
– E existe alguma chance de isto deixar de ser um deserto?
– Claro. Em mais ou menos mil anos. Talvez nesse tempo alguém descubra uma maneira de impedir a proliferação das flores. Do contrário, o processo recomeçará sempre.
Eles alcançaram uma das cidades dos Enferrujados por volta do amanhecer. Na verdade, não passava de um agrupamento de prédios indistintos enfiados no mar de areia.
Ao longo dos séculos, o deserto invadira o lugar, em dunas se espalhando pelas ruas como se fossem água. As construções, no entanto, encontravam–se em melhor estado do que outras ruínas que Tally já vira. A areia desgastava a superfície das coisas, mas não exercia uma ação tão destrutiva quanto a chuva e a vegetação.
Embora nenhum dos dois estivesse cansado, não podiam viajar durante o dia. No deserto, não estavam protegidos do sol, nem de ameaças que se aproximassem pelo ar. Eles se instalaram no segundo andar de uma fábrica que mantinha a maior parte de seu telhado intacta. Máquinas antigas, do tamanho de carros, observavam os dois em silêncio.
– O que havia neste lugar? – perguntou Tally.
– Acho que produziam jornais – disse David. – O jornal era como um livro, com a diferença de que você o jogava fora e comprava um novo no dia seguinte.
– Não brinca.
– É sério. E você achando que derrubávamos árvores à toa na Fumaça!
Ao ver um facho de luz entrando por uma das falhas no telhado, Tally tratou de abrir as pranchas e botá–las para recarregar. David, enquanto isso, pegou dois pacotes de SaladOvos.
– Acha que sairemos do deserto esta noite? – perguntou Tally,enquanto David derramava as últimas gotas de água potável nos purificadores.
– Tranquilamente. Chegaremos ao próximo rio antes da meia–noite.
Por alguma razão, Tally se lembrou de algo que Shay dissera muito tempo antes, na primeira vez que viera seu kit de sobrevivência.
– Podemos mesmo fazer xixi num purificador? Quero dizer, para beber a água depois?
– Claro. Eu já fiz isso.
Tally fez uma cara de nojo e, em seguida, virou–se para a janela.
– Quem mandou perguntar...
Ele se aproximou, rindo baixinho, e pôs as mãos nos ombros dela.
– É incrível o que as pessoas são capazes de fazer para sobreviver – disse.
– É, eu sei.
A janela dava para uma rua lateral, parcialmente protegida do deserto insaciável. Eles conseguiam ver alguns carros terrestres, semienterrados, com as latarias pretas se destacando em meio à areia branca. Tally passou as mãos pelas algemas de plástico, que continuavam em seus pulsos.
– Parece que os Enferrujados se esforçaram mesmo para sobreviver. Em todas as ruínas que vi, havia carros por toda parte, tentando escapar. Pelo visto, nenhum deles conseguiu.
– Alguns conseguiram, sim – corrigiu David. – Mas não em carros.
Tally se abrigou no calor do corpo de David. Ainda levaria um tempo até que o calor da manhã se impusesse ao frio do deserto.
– É engraçado. Na escola, não se fala muito de como tudo aconteceu. Do pânico final, de quando o mundo dos Enferrujados ruiu. Eles não dão importância. Dizem apenas que seus erros foram se somando, até que tudo desmoronou como um castelo de cartas.
– Isso é uma meia verdade. O Chefe tinha alguns livros que falavam dessa época – contou David.
– E o que diziam?
– Bem, os Enferrujados viviam num castelo de cartas, mas a verdade é que algo ajudou a derrubar esse castelo. Mas nunca se descobriu exatamente o quê. Talvez uma arma dos Enferrujados tenha saído do controle. Talvez o povo de um país pobre tenha se cansado de como os Enferrujados controlavam as coisas. Talvez tenha sido um mero acidente, como as flores, ou um cientista solitário que queria causar problemas.
– Mas, afinal, o que aconteceu? – insistiu Tally.
– Uma praga se disseminou. Só que ela não contaminava as pessoas. Contaminava o petróleo.
– Petróleo contaminado?
– O petróleo é orgânico. É derivado de plantas ancestrais e dinossauros. Esse tipo de coisa. Alguém criou uma bactéria que se alimentava de petróleo. Os esporos se espalhavam pelo ar e, quando pousavam no petróleo, cru ou refinado, germinavam. Como se fosse um fungo capaz de alterar a composição química do petróleo. Você já viu fósforo de perto?
– Isso é um elemento, certo?
– Sim. Um elemento que pega fogo em contato com o ar.
Tally fez que sim. Ela se recordava das aulas de química, sempre usando óculos protetores, e da empolgação que sentia ao pensar em tudo que poderia aprontar com aquilo. Mas nunca tinha passado por sua cabeça fazer algo que resultasse na morte de alguém.
– O petróleo infectado por essa bactéria era tão instável quanto o fósforo. Explodia em contato com oxigênio. E enquanto queimava, dispersava esporos, que se espalhavam com ajuda do vento. Então os esporos voavam até outro carro, avião ou poço de petróleo e começavam a se multiplicar de novo.
– Caramba. E eles usavam petróleo para tudo, né?
– Naqueles carros lá embaixo, por exemplo. Devem ter sido infectados durante a tentativa de fuga da cidade.
– Por que eles não tentaram simplesmente andar? – perguntou Tally.
– Acho que por estupidez.
Tally sentiu um arrepio, mas não por causa do frio. Era difícil pensar nos Enferrujados como pessoas de verdade, em vez de uma mera entidade idiota, perigosa e às vezes engraçada que tinha se perdido na história. O problema era que havia seres humanos ali, ou o que restava deles depois de alguns séculos, sentados em seus carros carbonizados, tentando escapar de seus destinos.
– Queria saber por que não nos contam isso nas aulas. Geralmente eles adoram histórias que fazem os Enferrujados parecerem patéticos.
– Talvez não quisessem que vocês percebessem que toda civilização tem sua fraqueza – disse David, em tom baixo. – Sempre dependemos de alguma coisa. E, se alguém toma isso de nós, tudo que resta são histórias contadas na sala de aula.
– Não é nosso caso. Usamos energia renovável e fontes sustentáveis. Temos uma população estável.
Os dois purificadores apitaram. David se afastou para buscá–los.
– Nem sempre tem a ver com dados econômicos – explicou, trazendo a comida. – A fraqueza também pode ser uma ideia.
Ela se virou para pegar sua SaladOvos e sentiu o vapor quente em suas mãos. Só depois reparou na expressão séria de David.
– Então, David, era essa uma das coisas em que pensava durante todos esses anos, quando se preocupava com a possibilidade de a Fumaça ser invadida? Você já imaginou o que poderia transformar as cidades em simples páginas da história?
Ele sorriu antes de encher a boca de comida.
– Está cada dia mais óbvio.

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