quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 43 (Serie Feios)


NO LIMITE

Os dois esperaram o dia inteiro nas Ruínas de Ferrugem. Os raios de sol que passavam pelo buraco no teto avançavam lentamente pelo chão – um facho de luz que servia para marcar as horas. Tally levou uma eternidade para cair no sono. Quando estava cansada demais até para sonhar, ela finalmente dormiu.
Ao acordar, no fim da tarde, viu que David já havia arrumado duas mochilas com tudo de que precisariam para o resgate. Eles subiram nas pranchas – duas para cada um e voaram até a entrada das ruínas. Se o plano desse certo, precisariam das pranchas extras quando saíssem da Circunstâncias Especiais, acompanhados dos fugitivos.
No café da manhã, à beira do rio, Tally tentou apreciar o sabor das NaboMôndegas. Caso fossem pegos essa noite, pelo menos nunca mais teria de encarar comida desidratada. Às vezes, Tally quase achava que conseguiria aceitar as mudanças no cérebro, desde que aquilo significasse uma vida sem macarrão reconstituído.
Tally e David alcançaram as corredeiras com a noite caindo. Assim que passaram pelo cinturão verde, as luzes de Vila Feia se apagaram. À meia–noite, estavam no topo da montanha, de onde podiam ver a Circunstâncias Especiais.
Tally pegou o binóculo e o apontou na direção de Nova Perfeição, onde as torres de festa começavam a se acender. David soprava as mãos. A respiração era visível no frio de outubro.
– Acha que eles vão mesmo fazer o que pedimos?
– E por que não fariam? – devolveu ela, observando as áreas escuras do maior jardim da cidade. – Eles pareceram bem empolgados.
– Eu sei. Mas não seria um risco muito grande? Afinal, acabaram de nos conhecer.
– A vida dos feios se resume a esse tipo de coisa. Nunca fez nada só porque um estranho misterioso provocou você?
– Uma vez dei minhas luvas para um desses. Mas só me trouxe problemas.
Ao baixar o binóculo, Tally viu que David estava rindo.
– Não parece tão nervoso hoje – comentou ela.
– Estou feliz por termos chegado aqui, por estarmos prontos para fazer alguma coisa. E, depois que os três garotos aceitaram nos ajudar, sinto que...
– Que pode acabar dando certo?
– Não. Uma coisa muito melhor. – Ele olhou para o complexo de prédios que abrigava a Circunstâncias Especiais. – Estavam tão prontos a ajudar, só para dar trabalho, só para criar problemas. No início, sofri ao ouvir você falar como se a Fumaça ainda existisse. Mas, se houver outros feios como esses por aí, talvez ela possa voltar a existir de verdade.
– Tenho certeza de que isso vai acontecer.
– Talvez sim, talvez não. Porém, mesmo que nós falhemos hoje e acabemos na mesa de operação, sei que pelo menos haverá alguém resistindo. Criando problemas, você entende?
– Espero que sejamos nós – disse Tally.
– Eu também.
David puxou–a para perto e lhe deu um beijo. Depois que ele a soltou, Tally respirou fundo e fechou os olhos. O beijo parecia mais gostoso, mais verdadeiro, agora que ela estava para desfazer os estragos que causara.
– Olhe lá – disse David.
Alguma coisa estava acontecendo nas áreas escuras de Nova Perfeição.
Tally levou o binóculo ao rosto.
Uma linha cintilante cruzou a vastidão negra do jardim, como se uma fenda se abrisse na terra. Mais linhas apareceram, uma após a outra, curvas trêmulas e círculos que se destacavam na escuridão. As várias formas pareciam surgir em ordem aleatória, mas depois de um tempo pareciam compor letras e palavras.
Finalmente, a obra se completou, com alguns segmentos recém–iluminados e outros já começando a desaparecer à medida que os sinalizadores se consumiam. Apesar disso, por alguns momentos, Tally conseguiu ler tudo, mesmo sem usar o binóculo. Da Vila Feia, então, as palavras deviam parecer enormes, visíveis a qualquer pessoa que estivesse olhando ansiosamente pela janela: A FUMAÇA VIVE.
Enquanto assistia às palavras sumirem, voltando a ser apenas linhas e curvas aleatórias, Tally se perguntou se a mensagem seria verdadeira.
– Lá vão eles – avisou David.
Um buraco se abriu no teto do prédio maior, e três carros partiram em sequência, espalhando barulho rumo à cidade. Tally torceu para que An, Dex e Sussy tivessem seguido o conselho e já estivessem longe de Nova Perfeição.
– Está pronto? – perguntou ela.
Como resposta, David ajustou as tiras de sua jaqueta e subiu em sua prancha dupla.
Eles desceram a encosta, deram meia volta e começaram a subir de novo.
Pela décima vez, Tally conferiu a luz na gola de sua jaqueta. Continuava verde, assim como a de David. Não havia mais desculpas.
Os dois ganhavam velocidade à medida que se aproximavam do céu negro, subindo a montanha como se esta fosse uma rampa gigante. O vento jogava para trás os cabelos de Tally, que piscava para se proteger dos insetos que se chocavam contra seu rosto. Com cuidado, ela deslizou os pés até a extremidade de seu par de pranchas, deixando as pontas dos tênis antiderrapantes para fora.
Quando o horizonte sumiu de sua frente, Tally se agachou, pronta para pular.
O chão desapareceu.
Tally empurrou com toda força, lançando as pranchas ladeira abaixo, no lado mais íngreme, onde em algum momento acabariam parando. Ela e David haviam desligado os braceletes antiqueda. Não queriam que as pranchas os seguissem por cima da cerca. Não por enquanto, pelo menos.
Tally continuou ganhando altura por alguns segundos. A periferia da cidade se espalhava lá embaixo, uma mistura de pontos iluminados e áreas escuras. Ela abriu os braços e as pernas.
No ponto mais alto de sua trajetória, o silêncio parecia absoluto. A sensação de falta de gravidade lhe revirava o estômago; a mistura de empolgação e medo tomava conta de seu corpo; o vento soprava em seu rosto. Tally desviou o olhar do chão e arriscou fitar David. À distância de um braço, ele também a observava, com o rosto iluminado.
Ela sorriu e, sentindo que caía mais rápido, voltou a se concentrar no chão, que agora se aproximava. Como previsto, eles estavam descendo bem no meio da cerca. Tally imaiginou o solavanco violento que sentiria quando a jaqueta começasse a puxá–la para cima.
Por longos momentos, porém, nada aconteceu, a não ser a aproximação do chão. Tally se perguntou se as jaquetas eram capazes de lidar com quedas de distância tão longas. Ela pensou em centenas de desfechos possíveis para um impacto daquela altura. De qualquer maneira, não daria tempo de sentir muita coisa.
Nunca mais.
O chão continuou se aproximando até Tally ter certeza de que havia alguma coisa errada. Então, de repente, as fitas da jaqueta entraram em ação, apertando suas coxas e ombros violentamente e deixando–a completamente sem ar. A impressão era de estar envolvida por um elástico que tentava interromper a queda. Mas o chão de terra do complexo ainda vinha em sua direção, bem plano, compacto e duro. A jaqueta lutava desesperadamente, esmagando Tally como se fosse um inseto.
Finalmente, quando o elástico imaginário estava prestes a se partir, a velocidade diminuiu, até uma parada completa. Se esticasse os braços, Tally poderia tocar o solo. Seus olhos pareciam querer pular para fora das órbitas.
Então, o movimento se inverteu, e ela começou a subir de cabeça para baixo. Via o céu e a terra girando, como se estivesse num brinquedo de parque de diversões. Tally não sabia por onde andava David. Nem o que era chão e o que era céu. Aquele salto fora de uma altura dez vezes maior que o da Mansão Garbo. Quantos vaivéns seriam necessários até parar definitivamente?
Agora estava caindo novamente, só que com o chão substituído por um prédio. Um de seus pés quase tocou o terraço, mas antes disso Tally foi puxada para cima mais uma vez, ainda avançando por causa do impulso que havia tomado ao saltar da montanha.
Ela conseguiu se situar, identificando o que estava em cima e o que estava embaixo, bem a tempo de ver a beirada do terraço, mas antes disso Tally foi puxada para cima mais uma vez, ainda avançando por causa do impulso que havia tomado ao saltar da montanha.
Ela conseguiu se situar, identificando o que estava em cima e o que estava embaixo, bem a tempo de ver a beirada do terraço se aproximando. Tally ia passar direto pelo prédio.
Agitando os braços dentro da jaqueta, subindo e descendo sem poder fazer nada, ela viu o terraço ficar para trás. Seu braço esticado, porém, agarrou uma calha de chuva no último instante. Tally parou.
– Ufa!
O prédio não era muito alto e, mesmo se caísse, a jaqueta a puxaria para cima. No entanto, assim que pusesse os pés no chão, o alarme soaria. Ela segurou a calha com as duas mãos.
A jaqueta, satisfeita porque a queda fora interrompida, se desligou e parou de exercer pressão sobre o corpo de Tally. Ela se esforçava para subir, mas a mochila cheia de equipamentos fazia muito peso. Era como tentar fazer uma flexão de braço usando tênis de chumbo.
Ela ficou pendurada ali, sem pensar em nada, esperando a queda.
Segundos depois, entretanto, ouviu passos se aproximando pelo terraço. Logo apareceu um rosto. David.
– Algum problema? – perguntou ele.
Enquanto ela murmurava alguma coisa, ele se abaixou e segurou firme numa das alças da mochila. Sem o peso nos ombros, Tally conseguiu subir.
David se sentou no terraço, balançando a cabeça.
– Quer dizer, Tally, que você costumava fazer esse tipo de coisa por diversão?
– Não todo dia.
– Imaginei. Podemos descansar um pouco?
Ela examinou o terraço. Não havia sinal de aproximação ou de alarmes soando. Aparentemente, o sistema de segurança não detectava a presença de estranhos. Tally sorriu.
– Claro. Dois minutos. Parece que os Especiais não esperando que alguém caísse do céu.



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