A
MODELO
A Fumaça era realmente enfumaçada.
Espalhadas pelo vale, havia fogueiras, e pequenos grupos de
pessoas em volta. O cheiro de madeira queimada e de comida alcançava Tally,
fazendo–a se lembrar de acampamentos e festas ao ar livre. Além da fumaça,
via–se uma névoa matutina, uma faixa branca descendo de nuvens posicionadas ao
lado da montanha mais alta. Alguns painéis solares refletiam em uma luz tênue.
Canteiros separavam as construções – cerca de vinte estruturas de um único
andar feitas com longas tábuas de madeira. Havia madeira por toda parte: em
cercas, áreas de cozinha, passarelas sobre partes enlameadas e grandes pilhas
ao lado das fogueiras. Tally se perguntava onde arranjavam tanta madeira.
Então viu os tocos nos limites do vilarejo e ficou chocada.
– Árvores... – disse baixinho, horrorizada. – Vocês derrubam
árvores.
– Só aqui neste vale – explicou Shay,apertando sua mão. – No
começo, parece estranho, mas era assim que os Pré–Enferrujados viviam, sabia? E
estamos plantando árvores no outro lado da montanha, tomando a área das
orquídeas.
– Entendi – disse Tally, desconfiada. Ela observou um grupo de
feios movendo uma árvore caída, empurrando–a com ajuda de duas pranchas. –
Vocês têm uma estrutura magnética?
– Em alguns pontos – respondeu Shay, orgulhosa. – Recolhemos um
monte de metal de uma ferrovia. Uma estrutura parecida com a que você seguiu no
litoral. Construímos alguns caminhos por dentro da Fumaça e pretendemos cobrir
todo o vale. Estou trabalhando nesse projeto. Contamos alguns passos e
enterramos um pedaço de ferro–velho Como tudo por aqui, é mais difícil do que
parece. Você não acreditaria em como uma mochila cheia de aço
é pesada.
David e os outros já estavam descendo, deslizando em ordem por
entre duas fileiras de pedras pintadas de laranja fluorescente.
– É um dos caminhos? – perguntou Tally.
– É, sim. Vamos lá. Vou levá–la à biblioteca. Quero que conheça o
Chefe.
Shay explicou que o Chefe não estava
realmente no comando. Ele apenas fingia estar, especialmente diante de novatos.
O único lugar em que mandava de fato era a biblioteca, o maior prédio na praça
central do vilarejo.
Na entrada, o cheiro familiar dos livros empoeirados chamou a
atenção de Tally. Ao olhar ao redor, ela notou que a biblioteca não tinha muita
coisa além de livros. Nada de telão no ar ou telas individuais de trabalho.
Apenas pares trocados de mesas e cadeiras e corredores intermináveis de
estantes.
Shay levou Tally a área central do lugar, onde um balcão
arredondado era ocupado por um sujeito pequeno que falava num telefone antigo.
Enquanto se aproximava, Tally sentia o coração bater acelerado. Temia o que
estava prestes a ver.
O Chefe era um feio velho. Antes de entrar, Tally
havia visto alguns deles, a certa distância, mas tinha conseguido desviar os
olhos a tempo. Agora estava cara a cara com a verdade enrugada, venosa,
esmaecida, grosseira, terrível. Seus olhos caídos avaliavam os visitantes
enquanto ele discutia com quem quer que estivesse do outro lado da linha. Ao
mesmo tempo em que disparava a voz ruidosa, agitava um braço para que fossem
embora.
Dando uma risadinha, Shay levou Tally para perto das estantes.
– Ele vai acabar nos chamando. Antes quero mostrar uma coisa a
você...
– Coitado...
– Quem, o Chefe? Sinistro, não é? Ele tem uns quarenta!
Espere só até conversar com ele.
Tally tentou apagar da cabeça a imagem de sua fisionomia
decadente. Aquelas pessoas eram loucas de suportarem aquilo, de desejarem aquilo.
– O rosto dele...
– Ainda não viu nada. Dá uma olhada nisso aqui.
Shay fez Tally se sentar a uma mesa, foi a uma prateleira e puxou
alguns volumes mantidos em capas protetoras. Ela os jogou na frente da amiga.
– Livros de papel? O que têm de mais?
– Não são livros. Se chamam "revistas" – explicou Shay.
Ela abriu um exemplar e apontou para as páginas. Eram todas
estranhamente brilhantes e cheias de fotos. De pessoas.
Feios.
Os olhos de Tally demonstravam espanto enquanto Shay virava as
páginas, sempre apontando e rindo. Ela nunca tinha visto tantos rostos tão
diferentes. Bocas, olhos e narizes de todos os formatos possíveis, combinados
de um jeito absurdo, em pessoas de todas as idades. E os corpos?
Alguns eram monstruosamente gordos ou estranhamente musculosos ou
perturbadoramente magros. E quase todos apresentavam proporções desequilibradas
e feias. No entanto, em vez de demonstrarem vergonha por causa de suas
deformidades, as pessoas davam risadas, trocavam beijos e posavam, como se as
fotos tivessem sido tiradas numa grande festa.
– Quem são esses esquisitos?
– Eles não são esquisitos – disse Shay. – O engraçado é que são
pessoas famosas.
– Famosas por quê? Por serem horríveis?
– Não. São esportistas, atores, artistas. Acho que os caras de
cabelo comprido são músicos. Os mais feios são políticos. Alguém me disse que
os gordinhos, na maioria, são comediantes.
– É curioso mesmo. Curioso no sentido de estranho – disse Tally. –
Então era assim a aparência das pessoas antes do primeiro perfeito? Como é que
as pessoas conseguiam encarar essas coisas?
– Sei que, no início, é meio assustador. Mas, se você continuar
olhando por um tempo, acaba se acostumando.
Shay avançou até uma foto de página inteira de uma mulher vestindo
roupas íntimas bem justas, como uma espécie de biquíni de renda.
– Mas o que... – surpreendeu–se Tally.
– É isso aí.
A mulher parecia estar passando fome. No tronco, as costelas se
destacavam, e as pernas eram tão finas que Tally não entendia como aguentavam o
peso do corpo. Os cotovelos e os ossos pélvicos eram pontudos. Apesar de tudo,
a mulher sorria e aparentava se orgulhar do corpo, como alguém que tivesse
acabado de passar pela operação sem perceber que haviam retirado gordura
demais. O curioso era que seu rosto estava mais perto de ser perfeito do que o
resto. Ela possuía olhos grandes, pele sedosa e nariz pequeno, mas as maçãs do
rosto eram protuberantes, praticamente visíveis sob a pele.
– Que tipo de pessoa é ela?
– Uma modelo.
– E o que seria isso?
– Seria uma perfeita profissional. Quando todo mundo é feio, acho
que ser belo vira uma espécie de trabalho.
– E por que ela está de calcinha? – perguntou Tally, antes de se
lembrar de algo. – Ela tem aquela doença! Aquela que os professores sempre
mencionavam.
– Provavelmente. Sempre achei que não passasse de uma invenção
para nos assustar...
Antes de a operação existir, muitas pessoas, principalmente
mulheres jovens, sentiam tanta vergonha de serem gordas que simplesmente
paravam de comer. Perdiam peso rápido demais. Sem conseguir se controlar,
continuavam emagrecendo até acabarem no mesmo estado daquela
"modelo". Na escola, diziam que algumas chegavam a morrer. Essa foi
uma das justificativas da operação. Como todos sabiam que se tornariam
perfeitos aos 16 anos, ninguém desenvolvia a doença. Na verdade, a maioria se
empanturrava antes da operação, sabendo que a gordura seria mesmo retirada.
Tally olhou bem para a foto e sentiu um arrepio. Por que
retornar àquilo?
– Esquisito, né? – disse Shay, virando–se em seguida. – Vou ver se
o Chefe já pode nos ver.
Antes que a amiga saísse de vista, Tally reparou como Shay era
magra. Não como uma pessoa doente; era apenas uma feia magra, que não tinha o
hábito de comer muito. Tally se perguntou se, na Fumaça, aquilo se tornaria
cada vez mais grave, até Shay morrer de fome.
Ela levou um dedo ao pingente. Era sua chance. Poderia resolver
tudo naquele exato momento.
Aquelas pessoas haviam se esquecido de como era o mundo antigo.
Sim, podiam até estar se divertindo, acampando e brincando de esconder, numa
grande provocação à cidades. No entanto, por alguma razão, ignoravam que os
Enferrujados haviam agido como loucos, chegando perto de destruir o mundo, de
mil maneiras diferentes. A fome daquela quase perfeita era apenas uma delas.
Por que voltar àquele tipo de coisa?
Eles já andavam cortando árvores naquele lugar.
Tally abriu o pingente de coração e observou o pequeno orifício
por onde o laser leria sua impressão ocular. Com a mão trêmula, aproximou–o do
rosto. Era besteira esperar. Só ficaria mais difícil.
E que opção ela tinha?
– Tally, ele está quase...
Ela fechou o pingente e o jogou para dentro da camisa, Shay deu um
sorriso malicioso.
– Eu tinha reparado nisso aí. Qual é o lance? – perguntou.
– Do que está falando?
– Ah, não enrola. Você nunca usou esse tipo de coisa. Foi só
passar duas semanas sozinha para ficar toda romântica? – Tally olhou para o
coração, sem saber o que dizer.
– O cordão é bem bonito. Lindo. Mas de quem você ganhou, Tally?
– De uma pessoa. Apenas uma pessoa – respondeu Tally, sem
conseguir mentir.
– Um casinho de última hora, hein? Sempre achei que estivesse se
guardando para o Peris.
– Não é nada disso. É que...
Por que não contar tudo de uma vez? Shay acabaria entendendo
quando os Especiais aparecessem. Se soubesse antes, pelo menos poderia se
preparar, antes que aquele mundo de fantasia fosse abaixo.
– Preciso contar uma coisa – disse Tally.
– Pode contar.
– A minha vinda até aqui é uma espécie de... quando eu fui fazer
minha...
– O que vocês estão fazendo?
Tally quase morreu de susto ao ouvir aquela voz áspera. Era uma
versão ao mesmo tempo envelhecida e estridente da voz da dra. Cable. Uma gilete
enferrujada cortando seus nervos.
– Essas revistas têm mais de trezentos anos, e vocês estão sem
luvas!
Enquanto ia até a cadeira de Tally, o Chefe tirou do bolso um par
de luvas de lã e as calçou. Depois, deu a volta para fechar o volume que ela
estava lendo.
– Seus dedos estão cobertos por ácidos muito perigosos, minha
jovem. Se não tomar cuidado, vai fazer essas revistas apodrecerem. Antes de
bisbilhotar a coleção, venha falar comigo!
– Desculpa, Chefe – interveio Shay. – Foi culpa minha.
– Não duvido disso – disse ele, pondo as revistas no lugar, com
movimentos elegantes e cuidadosos, que contrastavam com suas palavras duras. –
Agora, minha jovem, imagino que esteja aqui para a vaga de trabalho.
– Trabalho? – perguntou Tally.
Diante da expressão de espanto da amiga, Shay caiu na gargalhada.
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