quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 25 (Serie Feios)


TRABALHO

  Todos os Enfumaçados almoçavam juntos, exatamente como os feios do alojamento.
Estava na cara que as mesas compridas eram feitas de troncos de árvores. Os móveis apresentavam nós e verticilos, e veios ondulados percorriam sua superfície. Eram mesas rústicas e bonitas, mas Tally não conseguia ignorar o fato de que as árvores haviam sido derrubadas ainda vivas.
Ela ficou feliz ao ser levada por Shay e David para perto da grande lareira, lá fora, onde um grupo de feios mais jovens se reunia. Era um alívio se afastar das árvores caídas, bem como dos feios mais velhos – e mais perturbadores. Ali, pelo menos, todos os Enfumaçados podiam passar por estudantes. Embora não tivesse experiência em estimar a idade de um feio, Tally estava mais ou menos certa. Dois haviam acabado de chegar de outra cidade – sequer tinham 16 anos. Os outros três – Croy, Ryde e Astrix – eram amigos de Shay, do grupo que tinha fugido junto antes de Tally e Shay se conhecerem.
Vivendo na Fumaça havia menos de cinco meses, os amigos de Shay já demonstravam a mesma autoconfiança de David. De alguma maneira, tinham a autoridade dos perfeitos de meia–idade, ainda que sem o maxilar imponente, os olhos levemente destacados e as roupas elegantes. Durante o almoço, conversavam sobre os projetos em que estavam envolvidos. Um canal para desviar um afluente do rio até mais perto da Fumaça; novos padrões para a lã usada nos suéteres que vestiam; uma nova latrina. (Tally não fazia ideia do que fosse uma "latrina".) Eles pareciam muito sérios, como se suas vidas se resumissem a uma jogada, que tinha de ser planejada e replanejada todos os dias.
A comida formava montes de tamanho respeitável sobre os pratos. Era pesada, de um jeito a que Tally não estava acostumada, e tinha um gosto acentuado, como quando sua turma de história da alimentação tentava cozinhar sozinha. Por outro lado, os morangos eram doces, sem precisar de açúcar, e, embora parecesse estranho comê–lo puro, o pão dos Enfumaçados apresentava um sabor próprio, sem acrescentar nada. Obviamente, Tally devoraria com prazer qualquer coisa que não fosse EspagBol.
Ela não perguntou, contudo, o que tinha no ensopado. A imagem das árvores mortas era tormento suficiente para aquele dia.
Enquanto esvaziavam os pratos, os amigos de Shay enchiam Tally de perguntas sobre a cidade. Resultados das competições dos alojamentos, resumos das novelas, novidades da política. Tinha ouvido a respeito de mais alguém fugindo da cidade? Tally respondia a tudo da melhor maneira possível. E ninguém tentava esconder a saudade. Seus rostos pareciam muitos anos mais jovens ao se lembrarem de antigos amigos e brincadeiras.
Então Astrix perguntou sobre sua jornada até a Fumaça.
– Para ser sincera, foi bem fácil, depois que peguei o espírito das dicas deixadas por Shay.
– Não foi tão fácil – comentou David. – Você levou o quê? Uns dez dias?
– Saiu de lá na noite anterior ao nosso aniversário, não foi? – perguntou Shay.
– À meia–noite – disse Tally. – Nove dias... e meio.
– Levou um tempo para os guardiões encontrarem você, hein? – estranhou Croy.
– Acho que sim. E quase fizeram churrasco de mim. Estavam causando um incêndio gigantesco e meio que perderam o controle.
– Sério? Caramba.
Os amigos de Shay mostraram–se surpresos.
– Minha prancha quase foi queimada. Tive de salvá–la e pular no rio.
– É por isso que seu rosto está assim? – perguntou Ryde.
Tally tocou a pele descascando em seu nariz.
– Ah, isso aqui é...
"Queimadura de sol", pensou em dizer. Mas os rostos dos outros revelavam um encantamento pela história. Depois de tanto tempo sozinha, Tally estava gostando de ser o centro das atenções.
– Havia fogo por toda parte. Meus tênis derreteram quando atravessei um campo imenso de flores em chamas.
– Que radical – disse Shay, assobiando.
– É estranho. Os guardiões costumam ficar atentos a nós – observou David.
– Bem, acho que não me viram. – Tally preferiu não mencionar o fato de que tinha escondido a prancha de propósito. – Enfim, eu estava no rio e nunca tinha visto um helicóptero, exceto no dia anterior. E essa coisa apareceu, fazendo um barulhão no meio da fumaça, empurrando o fogo na minha direção. E claro que eu não tinha ideia de que os guardiões eram os mocinhos da história. Achei que fossem uns Enferrujados piromaníacos saídos da tumba!
Todos riram. Tally se sentiu bem recebendo a atenção do grupo. Era como contar a companheiros de dormitórios sobre algum truque, mas na verdade muito melhor, porque ela tinha mesmo sobrevivido a uma situação de vida ou morte. David e Shay estavam engolindo tudo. E Tally ficou feliz por ainda não haver ativado o pingente. Não seria capaz de ficar ali, deleitando–se com a admiração dos Enfumaçados, se tivesse acabado de trair todos eles. Decidiu esperar até a noite, quando estivesse sozinha, para fazer o que devia fazer.
– Deve ter sido assustador – disse David, tirando Tally de seus pensamentos incômodos. – Ficar sozinha no meio das orquídeas, por todos estes dias, esperando.
– Até achei as flores bonitas. Não sabia da história toda de serem uma superpraga.
– Você não contou nada no bilhete? – perguntou David a Shay.
– Você me disse para não contar nada que pudesse indicar a localização da Fumaça. Então usei um código. Ou algo parecido – explicou Shay, constrangida.
– Parece que seu código quase provocou a morte dela – disse David, deixando Shay arrasada. – Quase ninguém faz essa viagem sem companhia. Não na primeira vez em que sai da cidade.
– Eu já tinha saído da cidade antes – disse Tally, abraçando Shay, na tentativa de confortá–Ia. – Deu tudo certo. Para mim, não passava de um monte de flores bonitinhas. E comecei a viagem com comida para duas semanas.
– Por que pegou tanto EspagBol? – perguntou Croy. – Você deve adorar esse negócio.
Todos caíram na gargalhada, e Tally esboçou um sorriso.
– Nem me dei conta na hora. Três pacotes de EspagBol por dia, durante nove dias. Mal conseguia engolir aquilo depois do segundo dia. Mas a fome não deixava escolha.
Todos concordaram. Eles pareciam entender bem de viagens difíceis – e, pelo visto, de trabalho duro também. Tally já tinha reparado na quantidade de comida consumida no almoço. Pensando bem, Shay não devia correr tanto risco assim de desenvolver a doença da fome. Ela havia acabado com a montanha que cobria seu prato.
– Fico feliz que tenha conseguido – disse David. Em seguida, esticou o braço e tocou de leve nos arranhões no rosto de Tally. – Parece que passou por mais aventuras do que está nos contando.
Tally deu de ombros, nervosa, torcendo que os outros interpretassem seu comportamento como humildade. Shay sorriu e abraçou David.
– Sabia que você ia achar Tally muito legal.
O toque de um sino fez todos se apressarem para terminar a refeição.
– O que foi isso? – perguntou Tally.
– Hora de voltar ao trabalho – respondeu David, rindo.
– Você vem com a gente – disse Shay. – Não se preocupe. Vai dar tudo certo.


A caminho do trabalho, Shay falou mais sobre as montanhas–russas longas e planas conhecidas como ferrovias. Algumas prolongavam–se pelo continente inteiro, uma pequena parte da herança dos Enferrujados que ainda marcava a terra. Diferentemente da maioria das ruínas, as ferrovias eram úteis, e não apenas para se voar em pranchas. Também eram a principal fonte de metal dos Enfumaçados.
David tinha descoberto uma nova linha cerca de um ano antes. Como não levava a qualquer região de interesse, ele havia elaborado um plano para retirar o metal dos trilhos a ampliar a estrutura para pranchas dentro e em torno do vale. Shay trabalhava nesse projeto desde sua chegada à Fumaça, dez dias antes.
Seis dos feios subiram em suas pranchas e foram até o outro lado do vale, descendo um córrego de águas brancas e depois seguindo por um espinhaço repleto de minério de ferro. Naquele ponto, Tally se deu conta do tamanho do tamanho da subida desde que havia deixado o litoral. O continente inteiro parecia se estender diante deles. Um pequeno conjunto de nuvens escondia a parte mais alta, logo à frente, mais florestas, campos e rios sinuosos podiam ser vistos em meio à névoa. Ela também enxergava o oceano de orquídeas, reluzindo sob o sol, como um deserto entranhado na terra.
– É tudo tão grandioso – murmurou Tally.
– É isso que ninguém percebe lá de dentro – disse Shay. – Como a cidade é pequena. Como eles têm de manter a pequenez de todos para que permaneçam presos.
Apesar de assentir, Tally não gostou de imaginar toda aquela gente solta nos campos ao seu redor, derrubando árvores e matando animais para se alimentar, andando naquela paisagem como uma máquina ressuscitada dos Enferrujados.
Mesmo assim, não trocaria aquele momento por nada. Gostava de ficar parada ali, observando os campos espalhados lá embaixo. Tally havia passado quatro anos olhando para a paisagem de Nova Perfeição, pensando se tratar da mais bela vista no mundo, mas agora tinha mudado de opinião.


Mais para baixo e quase do outro lado da montanha, outro rio cruzava os trilhos de David. A rota que ia da Fumaça até lá desviava em vários pontos, tirando proveito dos veios de ferro, rios e leitos secos, mas em nenhum momento eles precisaram descer das pranchas. Segundo Shay, caminhar não seria uma opção quando voltassem carregados de metal pesado.
Os trilhos estavam cobertos por trepadeiras e árvores atrofiadas, com todos os dormentes de madeira presos sob os tentáculos vegetais. A floresta tinha sido derrubada em algumas áreas, em torno de segmentos desaparecidos de ferrovia, mas mantinha o resto sob seu rígido domínio.
– Como vamos tirar isso daqui? – perguntou Tally, chutando uma raiz retorcida e se sentindo impotente diante da força da natureza.
– Veja isso – disse Shay. Ela tirou uma ferramenta da mochila: uma barra quase da altura de Tally. Shay girou uma ponta, fazendo com que quatro braços se abrissem, como a estrutura de um guarda–chuva. – Isso é conhecido como macaco e consegue mover praticamente qualquer coisa.
Shay mexeu novamente no cabo, e os braços se retraíram. Em seguida, enfiou uma ponta do macaco sob um dormente. Assim que ela girou o pulso, o equipamento começou a tremer, e um som gutural saiu da madeira. Os pés de Shay escorregaram, mas ela jogou seu peso contra o macaco, mantendo–o sob o dormente. Lentamente, a madeira antiga começou a subir, soltando–se das plantas e torcendo o trilho que a atravessava. Tally viu os braços do macaco se desdobrando, aos poucos, e forçando o dormente para cima. Os trilhos se soltaram da fixação. Shay virou–se para ela sorrindo.
– Eu não falei?
– Quero tentar – disse Tally, estendendo a mão, ainda impressionada.
Shay sorriu e tirou outro macaco da mochila.
– Arranque aquele dormente, enquanto mantenho esse aqui levantado.
O macaco era mais pesado do que parecia, mas seu funcionamento era simples. Tally o abriu e o enfiou sob a dormente indicado por Shay. Depois, girou o cabo lentamente, até que o macaco começou a vibrar em suas mãos.
Quando a madeira se mexeu, Tally sentiu toda a pressão do metal e do chão. Finalmente, as raízes se soltaram, causando uma trepidação, que mais parecia o reflexo de um terremoto distante. Um gemido metálico preencheu o ar quando os trilhos começaram a se dobrar, libertando–se da vegetação e dos cravos enferrujados que os mantinham presos havia séculos. Porém, mesmo com o macaco completamente aberto, os trilhos ainda não estavam totalmente livres de suas amarras ancestrais. Tally e Shay tiveram de se esforçar para arrancá–los.
– Está se divertindo? – perguntou Shay, limpando o suor da testa.
Sorrindo, Tally fez que sim.
– Não fique parada aí, Shay. Vamos acabar com isso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário