quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 23 (Serie Feios)


MENTIRAS

Pouco depois do amanhecer, eles apareceram para pegá–la.
Tally os viu subindo por entre as orquídeas: quatro pesssoas carregando pranchas, vestidas inteiramente de branco. Grandes chapéus, também brancos, de padrão camuflado, escondiam suas cabeças. Ela percebeu que, se eles se agachassem entre as flores, praticamente desapareceriam.
Aquelas pessoas faziam todo o possível para se manter escondidas.
Enquanto o grupo se aproximava, Tally reconheceu as tranças de Shay, balançando sob um dos chapéus, e começou a acenar agitadamente. Seu plano inicial era seguir as orientações ao pé da letra e aguardar no alto da montanha. Entretanto, assim que viu a amiga, decidiu pegar a prancha e descer a toda.
Infiltrada ou não, Tally não aguentava mais esperar para reencontrar Shay.
A figura alta e magricela se separou das outras e correu em sua direção. As duas se abraçaram, aos risos.
– É você mesmo! Eu sabia!
– Claro que sou eu, Shay. Não aguentava mais ficar longe de você.
Aquilo não deixava de ser verdade.
– Quando vimos o helicóptero, ontem à noite, a maioria achou que devia ser outro grupo – contou Shay, sem perder o sorriso. – Eles diziam que já tinha passado muito tempo e que era hora de eu esquecer.
Tally tentou retribuir o sorriso, sem saber se havia recuperado tempo o bastante para parecer convincente. Mal podia acreditar que tinha iniciado a jornada quatro dias depois do seu aniversário de 16 anos.
– Quase fiquei perdida. Não podia ter deixado um bilhete mais obscuro?
– Ah. – Shay ficou meio sem graça. – Achei que fosse entender.
Sem suportar a imagem de Shay se culpando, Tally balançou a cabeça.
– Na verdade, o bilhete estava claro. Eu é que sou uma idiota. A pior parte foi quando encontrei as flores. Os guardiões não me viram logo de cara e por pouco não acabei tostada.
Os olhos de Shay se encheram de preocupação ao verem o rosto arranhado e queimado, as bolhas nas mãos e o cabelo arrasado de Tally.
– Ai, Tally! Parece que você saiu de uma zona de guerra.
– Quase isso.
Os outros três feios se aproximaram, mas não se juntaram às duas. Um garoto ergueu um aparelho no ar.
– Ela está suja.
– O quê? – reagiu Tally, quase paralisada.
Gentilmente, Shay tirou a prancha de suas mãos e a entregou ao garoto. Depois de fazer uma varredura com o aparelho, ele assentiu e arrancou uma das alertas de estabilização.
– Vejam só.
– Às vezes, eles botam localizadores nas pranchas de longa distância – explicou Shay. – Para ver se acham a Fumaça.
– Sinto muito... Eu não sabia. Juro!
– Relaxe, Tally – disse o garoto. – Não é sua culpa. Também havia um na prancha de Shay. É por isso que encontramos os novatos aqui. – Ele mostrou o localizador novamente. – Vamos levar isso para um lugar qualquer e colá–lo numa ave migratória. Quem sabe os Especiais não gostam da América do Sul?
Todos os Enfumaçados caíram na risada antes de o garoto chegar mais perto para examinar o corpo de Tally. Ela tentou recuar quando o aparelho passou perto do pingente. Mas apenas sorriu.
– Tudo bem. Você está limpa.
Tally deu um suspiro de alívio. Agora entendia tudo: como ela ainda não havia ativado o pingente, o aparelho não tinha indicado nada. O outro dispositivo era apenas um recurso usado pela Dra. Cable para despistar os Enfumaçados – fazê–los baixar a guarda. A verdadeira ameaça, afinal, era Tally.
Shay ficou ao lado do companheiro e segurou sua mão.
– Tally, este aqui é David.
Ele sorriu. Embora fosse um feio, tinha um belo sorriso. E seu rosto demonstrava um tipo de confiança que Tally nunca vira num feio. Talvez fosse alguns anos mais velho que ela. Tally não conhecia pessoas que tinham amadurecido naturalmente depois dos 16 anos. Não sabia o quanto de ser feio era apenas uma consequência daquela idade complicada.
Por outro lado, David estava longe de ser um perfeito. Seu sorriso era torto, e sua testa, grande demais. De qualquer jeito, feios ou não, era bom ver Shay, David... todos eles. Fora os momentos surpreendentes com os guardiões, tinha passado muito tempo sem ver rostos humanos.


– Então, o que você tem aí?
–Ahn?

Croy era outro feio do grupo de resgate. Embora também parecesse ter mais de 16 anos, a idade não lhe caía tão bem quanto em David. Em algumas pessoas, a operação era uma necessidade maior. Ele se ofereceu para levar a mochila.
– Ah, obrigada – disse Tally, com os ombros doloridos de carregar o peso durante uma semana.
Enquanto caminhavam, Croy abriu a mochila para conferir seu conteúdo.
– Purificador. Localizador. – Ele abriu o saco impermeável. – Espagbol! Que delícia!
Tally fez um som de nojo.
– Pode ficar com isso.
– Posso? – perguntou ele, surpreso.
Nessa hora, Shay se intrometeu e tirou a mochila de suas mãos.
– Não, não pode.
– Ei, comi esse negócio três vezes por dias nos últimos por uma eternidade – disse Tally.
– Eu sei. Mas comida desidratada é difícil de se encontrar na Fumaça – explicou Shay. – É melhor guardar para trocar.
– Trocar? O que você quer dizer?
Na cidade, os feios às vezes negociavam pequenas tarefas ou objetos roubados. Mas comida? Shay deu uma risada.
– Vai se acostumar. Na Fumaça, as coisas não brotam das paredes. Você precisa cuidar do que trouxe. Não saia dando a qualquer um que pedir – reforçou ela, olhando para Croy, que agora se mostrava envergonhado.
– Eu ia dar alguma coisa em troca – disse ele.
– Claro que ia – opinou David.
Durante a caminhada, Tally reparou que a mão de David tocava de leve no ombro de Shay. Lembrou–se de como ela costumava falar nele – como se fosse um sonho. Talvez a perspectiva de liberdade não fosse a única razão de sua amiga ter fugido para lá.
Eles alcançaram o limite do campo de flores, uma área cheia de árvores e arbustos que começava aos pés de uma montanha muito alta.
– Como evitam que as orquídeas se espalhem? – perguntou Tally.
Os olhos de David brilharam, como se aquele fosse seu assunto preferido.
– A antiga floresta consegue detê–las. Está aí há séculos. Provavelmente desde antes dos Enferrujados.
– Milhares e milhares de espécies vivem nela – acrescentou Shay. – Por isso, ela é forte o suficiente para manter a praga afastada – completou, buscando um olhar de aprovação de David.
– O resto da terra era parte de fazendas ou pasto – prosseguiu ele, apontando para a vasta área branca. – Os Enferrujados já tinham devastado tudo antes da chegada da praga.
Bastaram alguns minutos na floresta para Tally compreender por que as orquídeas não tinham chance. Por todos os lados, o mato cerrado e as árvores de troncos grossos se uniam em barreiras intransponíveis. Mesmo na trilha estreita, a toda hora ela esbarrava em galhos e ramos ou tropeçava em raízes e pedras. Nunca tinha visto um mato tão selvagem e pouco acolhedor. Trepadeiras cheias de espinhos se prolongavam na semiescuridão como uma proteção de arame farpado.
– Vocês vivem aqui? – perguntou ela.
– Calma – respondeu Shay, rindo. – Ainda falta um pouco. Só estamos nos assegurando de que não há ninguém nos seguindo. A Fumaça fica num ponto muito mais alto, onde não existem tantas árvores. Estamos chegando ao riacho. Logo subiremos nas pranchas.
– Legal.
Seus pés já estavam esfolados dentro das botas novas. Pelo menos, eram mais quentes que seus tênis antiderrapantes e muito melhores para caminhadas. Imaginava como seria se não as tivesse ganhado dos guardiões. Como conseguiria novos sapatos na Fumaça? Seria preciso trocar por toda sua comida? Ou teria de fabricar um par por conta própria? Ela observou os pés de David, que estava à sua frente, e achou que realmente pareciam feitos à mão, como um monte de pedaços de couro costurados de um modo grosseiro. Estranhamente, porém, ele se movia graciosamente pelo mato, silencioso e confiante, enquanto os demais avançavam como uma manada de elefantes.
A simples ideia de produzir um par de calçados com as próprias mãos deixou Tally desnorteada.
Respirando fundo, ela tentou se lembrar de que nada daquilo importava. Assim que alcançasse a Fumaça, poderia ativar o pingente. Estaria em casa em questão de um dia. Talvez de horas. E, então, teria toda a comida e a roupa que quisesse, bastando pedir. E, finalmente, um rosto perfeito. E Peris e todos seus antigos amigos por perto.
Depois de muita espera, aquele pesadelo chegaria ao fim.


  Em pouco tempo, o som de água corrente se espalhou pela floresta, e eles encontraram uma pequena clareira. David pegou o aparelho novamente e o apontou para a trilha da qual haviam saído.
– Nada – anunciou ele, sorrindo para Tally. – Parabéns. Agora você é uma de nós.
Shay deu um riso emocionado e abraçou Tally, enquanto os outros preparavam suas pranchas.
– Ainda não acredito que você veio. Achei que eu tivesse estragado tudo. Demorei tanto para falar da ideia de fugir. E fui tão idiota por provocar uma briga em vez de simplesmente contar o que queria fazer.
– Você já tinha contado tudo, só que eu não queria ouvir. Depois que entendi que estava falando sério, eu só precisava parar para pensar. Levei um tempo... cada minuto até a última noite antes do meu aniversário. – Tally respirou fundo, perguntando–se por que estava mentindo daquele jeito, sem necessidade. Devia simplesmente calar a boca, chegar à Fumaça e resolver o assunto. Mas ela prosseguiu. – Aí me dei conta de que nunca mais veria você se não viesse. E ficaria sempre me perguntando como teria sido.
Pelo menos, aquela última parte era verdade.
À medida que eles subiam a montanha, o riacho foi se alargando, abrindo caminho floresta adentro. As árvores baixas e retorcidas deram lugar a pinheiros altos, e a vegetação rasteira tornou–se mais densa. Em certos trechos, a corrente era mais forte. Shay gritou ao passar pela espuma produzida pela água agitada.
– Estava louca para mostrar isso! E olha que as corredeiras realmente bacanas ficam do outro lado.
Passado um tempo, eles deixaram o riacho e seguiram um veio de ferro que atravessava um espinhaço. Lá de cima, podiam ver um pequeno vale, praticamente sem vegetação, Shay segurou a mão de Tally.
– Ali está. Nosso lar.
A Fumaça ficava logo abaixo.

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