MENTIRAS
Pouco
depois do amanhecer, eles apareceram para pegá–la.
Tally os viu subindo por entre as orquídeas: quatro pesssoas
carregando pranchas, vestidas inteiramente de branco. Grandes chapéus, também
brancos, de padrão camuflado, escondiam suas cabeças. Ela percebeu que, se eles
se agachassem entre as flores, praticamente desapareceriam.
Aquelas pessoas faziam todo o possível para se manter escondidas.
Enquanto o grupo se aproximava, Tally reconheceu as tranças de
Shay, balançando sob um dos chapéus, e começou a acenar agitadamente. Seu plano
inicial era seguir as orientações ao pé da letra e aguardar no alto da
montanha. Entretanto, assim que viu a amiga, decidiu pegar a prancha e descer a
toda.
Infiltrada ou não, Tally não aguentava mais esperar para
reencontrar Shay.
A figura alta e magricela se separou das outras e correu em sua
direção. As duas se abraçaram, aos risos.
– É você mesmo! Eu sabia!
– Claro que sou eu, Shay. Não aguentava mais ficar longe de você.
Aquilo não deixava de ser verdade.
– Quando vimos o helicóptero, ontem à noite, a maioria achou que
devia ser outro grupo – contou Shay, sem perder o sorriso. – Eles diziam que já
tinha passado muito tempo e que era hora de eu esquecer.
Tally tentou retribuir o sorriso, sem saber se havia recuperado
tempo o bastante para parecer convincente. Mal podia acreditar que tinha
iniciado a jornada quatro dias depois do seu aniversário de 16
anos.
– Quase fiquei perdida. Não podia ter deixado um bilhete mais
obscuro?
– Ah. – Shay ficou meio sem graça. – Achei que fosse entender.
Sem suportar a imagem de Shay se culpando, Tally balançou a
cabeça.
– Na verdade, o bilhete estava claro. Eu é que sou uma idiota. A
pior parte foi quando encontrei as flores. Os guardiões não me viram logo de
cara e por pouco não acabei tostada.
Os olhos de Shay se encheram de preocupação ao verem o rosto
arranhado e queimado, as bolhas nas mãos e o cabelo arrasado de Tally.
– Ai, Tally! Parece que você saiu de uma zona de guerra.
– Quase isso.
Os outros três feios se aproximaram, mas não se juntaram às duas.
Um garoto ergueu um aparelho no ar.
– Ela está suja.
– O quê? – reagiu Tally, quase paralisada.
Gentilmente, Shay tirou a prancha de suas mãos e a entregou ao
garoto. Depois de fazer uma varredura com o aparelho, ele assentiu e arrancou
uma das alertas de estabilização.
– Vejam só.
– Às vezes, eles botam localizadores nas pranchas de longa
distância – explicou Shay. – Para ver se acham a Fumaça.
– Sinto muito... Eu não sabia. Juro!
– Relaxe, Tally – disse o garoto. – Não é sua culpa. Também havia
um na prancha de Shay. É por isso que encontramos os novatos aqui. – Ele
mostrou o localizador novamente. – Vamos levar isso para um lugar qualquer e
colá–lo numa ave migratória. Quem sabe os Especiais não gostam da América do
Sul?
Todos os Enfumaçados caíram na risada antes de o garoto chegar
mais perto para examinar o corpo de Tally. Ela tentou recuar quando o aparelho
passou perto do pingente. Mas apenas sorriu.
– Tudo bem. Você está limpa.
Tally deu um suspiro de alívio. Agora entendia tudo: como ela
ainda não havia ativado o pingente, o aparelho não tinha indicado nada. O outro
dispositivo era apenas um recurso usado pela Dra. Cable para despistar os
Enfumaçados – fazê–los baixar a guarda. A verdadeira ameaça, afinal, era Tally.
Shay ficou ao lado do companheiro e segurou sua mão.
– Tally, este aqui é David.
Ele sorriu. Embora fosse um feio, tinha um belo sorriso. E seu
rosto demonstrava um tipo de confiança que Tally nunca vira num feio. Talvez
fosse alguns anos mais velho que ela. Tally não conhecia pessoas que tinham
amadurecido naturalmente depois dos 16 anos. Não sabia o quanto de ser feio era
apenas uma consequência daquela idade complicada.
Por outro lado, David estava longe de ser um perfeito. Seu sorriso
era torto, e sua testa, grande demais. De qualquer jeito, feios ou não, era bom
ver Shay, David... todos eles. Fora os momentos surpreendentes com os
guardiões, tinha passado muito tempo sem ver rostos humanos.
– Então, o que você tem aí?
–Ahn?
Croy era outro feio do grupo de resgate. Embora também parecesse ter mais de 16 anos, a idade não lhe caía tão bem quanto em David. Em algumas pessoas, a operação era uma necessidade maior. Ele se ofereceu para levar a mochila.
Croy era outro feio do grupo de resgate. Embora também parecesse ter mais de 16 anos, a idade não lhe caía tão bem quanto em David. Em algumas pessoas, a operação era uma necessidade maior. Ele se ofereceu para levar a mochila.
– Ah, obrigada – disse Tally, com os ombros doloridos de carregar
o peso durante uma semana.
Enquanto caminhavam, Croy abriu a mochila para conferir seu
conteúdo.
– Purificador. Localizador. – Ele abriu o saco impermeável. –
Espagbol! Que delícia!
Tally fez um som de nojo.
– Pode ficar com isso.
– Posso? – perguntou ele, surpreso.
Nessa hora, Shay se intrometeu e tirou a mochila de suas mãos.
– Não, não pode.
– Ei, comi esse negócio três vezes por dias nos últimos por uma
eternidade – disse Tally.
– Eu sei. Mas comida desidratada é difícil de se encontrar na
Fumaça – explicou Shay. – É melhor guardar para trocar.
– Trocar? O que você quer dizer?
Na cidade, os feios às vezes negociavam pequenas tarefas ou
objetos roubados. Mas comida? Shay deu uma risada.
– Vai se acostumar. Na Fumaça, as coisas não brotam das paredes.
Você precisa cuidar do que trouxe. Não saia dando a qualquer um que pedir –
reforçou ela, olhando para Croy, que agora se mostrava envergonhado.
– Eu ia dar alguma coisa em troca – disse ele.
– Claro que ia – opinou David.
Durante a caminhada, Tally reparou que a mão de David tocava de
leve no ombro de Shay. Lembrou–se de como ela costumava falar nele – como se
fosse um sonho. Talvez a perspectiva de liberdade não fosse a única razão de
sua amiga ter fugido para lá.
Eles alcançaram o limite do campo de flores, uma área cheia de
árvores e arbustos que começava aos pés de uma montanha muito alta.
– Como evitam que as orquídeas se espalhem? – perguntou Tally.
Os olhos de David brilharam, como se aquele fosse seu assunto
preferido.
– A antiga floresta consegue detê–las. Está aí há séculos.
Provavelmente desde antes dos Enferrujados.
– Milhares e milhares de espécies vivem nela – acrescentou Shay. –
Por isso, ela é forte o suficiente para manter a praga afastada – completou,
buscando um olhar de aprovação de David.
– O resto da terra era parte de fazendas ou pasto – prosseguiu
ele, apontando para a vasta área branca. – Os Enferrujados já tinham devastado
tudo antes da chegada da praga.
Bastaram alguns minutos na floresta para Tally compreender por que
as orquídeas não tinham chance. Por todos os lados, o mato cerrado e as árvores
de troncos grossos se uniam em barreiras intransponíveis. Mesmo na trilha
estreita, a toda hora ela esbarrava em galhos e ramos ou tropeçava em raízes e
pedras. Nunca tinha visto um mato tão selvagem e pouco acolhedor. Trepadeiras
cheias de espinhos se prolongavam na semiescuridão como uma proteção de arame
farpado.
– Vocês vivem aqui? – perguntou ela.
– Calma – respondeu Shay, rindo. – Ainda falta um pouco. Só
estamos nos assegurando de que não há ninguém nos seguindo. A Fumaça fica num
ponto muito mais alto, onde não existem tantas árvores. Estamos chegando ao
riacho. Logo subiremos nas pranchas.
– Legal.
Seus pés já estavam esfolados dentro das botas novas. Pelo menos,
eram mais quentes que seus tênis antiderrapantes e muito melhores para
caminhadas. Imaginava como seria se não as tivesse ganhado dos guardiões. Como
conseguiria novos sapatos na Fumaça? Seria preciso trocar por toda sua comida?
Ou teria de fabricar um par por conta própria? Ela observou os pés de David,
que estava à sua frente, e achou que realmente pareciam feitos à mão, como um
monte de pedaços de couro costurados de um modo grosseiro. Estranhamente,
porém, ele se movia graciosamente pelo mato, silencioso e confiante, enquanto
os demais avançavam como uma manada de elefantes.
A simples ideia de produzir um par de calçados com as próprias
mãos deixou Tally desnorteada.
Respirando fundo, ela tentou se lembrar de que nada daquilo
importava. Assim que alcançasse a Fumaça, poderia ativar o pingente. Estaria em
casa em questão de um dia. Talvez de horas. E, então, teria toda a comida e a
roupa que quisesse, bastando pedir. E, finalmente, um rosto perfeito. E Peris e
todos seus antigos amigos por perto.
Depois de muita espera, aquele pesadelo chegaria ao fim.
Em pouco tempo, o som de água corrente se espalhou pela floresta, e eles encontraram uma pequena clareira. David pegou o aparelho novamente e o apontou para a trilha da qual haviam saído.
– Nada – anunciou ele, sorrindo para Tally. – Parabéns. Agora você
é uma de nós.
Shay deu um riso emocionado e abraçou Tally, enquanto os outros
preparavam suas pranchas.
– Ainda não acredito que você veio. Achei que eu tivesse estragado
tudo. Demorei tanto para falar da ideia de fugir. E fui tão idiota por provocar
uma briga em vez de simplesmente contar o que queria fazer.
– Você já tinha contado tudo, só que eu não queria ouvir. Depois
que entendi que estava falando sério, eu só precisava parar para pensar. Levei
um tempo... cada minuto até a última noite antes do meu aniversário. – Tally
respirou fundo, perguntando–se por que estava mentindo daquele jeito, sem
necessidade. Devia simplesmente calar a boca, chegar à Fumaça e resolver o
assunto. Mas ela prosseguiu. – Aí me dei conta de que nunca mais veria você se
não viesse. E ficaria sempre me perguntando como teria sido.
Pelo menos, aquela última parte era verdade.
À medida que eles subiam a montanha, o riacho foi se alargando,
abrindo caminho floresta adentro. As árvores baixas e retorcidas deram lugar a
pinheiros altos, e a vegetação rasteira tornou–se mais densa. Em certos
trechos, a corrente era mais forte. Shay gritou ao passar pela espuma produzida
pela água agitada.
– Estava louca para mostrar isso! E olha que as corredeiras realmente bacanas
ficam do outro lado.
Passado um tempo, eles deixaram o riacho e seguiram um veio de
ferro que atravessava um espinhaço. Lá de cima, podiam ver um pequeno vale,
praticamente sem vegetação, Shay segurou a mão de Tally.
– Ali está. Nosso lar.
A Fumaça ficava logo abaixo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário