OLHOS DE INSETO
Eles
a tiraram da água e a levaram para a margem, içada pela máquina voadora.
Os pulmões de Tally estavam cheios de água e fumaça. Ela mal
conseguia respirar sem que uma tosse terrível fizesse seu corpo inteiro tremer.
– Ponham a garota no chão!
– De onde ela apareceu?
– Deem um pouco de oxigênio a ela.
Eles puseram Tally de costas no chão, que estava tomada por uma
grossa camada de espuma branca. Então, o homem que a havia carregado tirou a
máscara com olhos de inseto, revelando algo surpreendente.
Tratava–se de um perfeito. Um perfeito jovem, tão bonito quanto
Peris.
O homem botou a máscara no rosto de Tally.Sem forças, ela resistiu
por um instante, mas logo um ar puro chegou aos seus pulmões. Embora se
sentisse meio tonta, Tally sugava o oxigênio com gratidão.
A máscara foi retirada.
– Não exagere. Vai acabar hiperventilando.
Ela tentou falar, mas só conseguia tossir.
– Está ficando complicado – disse outra pessoa. – Jenks quer
levá–la para cima.
– Jenks pode esperar.
Tally esforçou–se para falar:
– Minha prancha.
O homem reagiu com um belo sorriso e depois olhou para cima.
– Está a caminho. Ei! Alguém ponha essa coisa no helicóptero! Qual
é seu nome, garota?
– Tally – respondeu, antes de outra tossida.
– Bem, Tally, está pronta para sair daqui? O fogo não vai ficar
esperando.
Ela pigarreou e tossiu de novo.
– Acho que sim.
– Certo. Vamos lá.
O homem ajudou Tally a se levantar e a conduziu até a máquina. Lá
dentro, onde passaram a dividir o espaço com mais três pessoas usando máscaras
de inseto, o barulho era muito menor. Em seguida, a porta se fechou.
A máquina se agitou, e Tally sentiu que estavam deixando o solo.
– Minha prancha! – gritou.
– Relaxe, menina. Já cuidamos disso – disse uma mulher tirando a
máscara.
Também era uma jovem perfeita. Tally se perguntou se aquelas
seriam as pessoas mencionadas no bilhete. Os “olhos de inseto”. Eram eles que
ela devia procurar?
– Ela vai ficar bem? – perguntou uma voz que surgiu no meio da
cabine.
– Vai sobreviver, Jenks. Pegue o desvio de sempre e cuide do fogo
no caminho de volta para casa.
Enquanto a máquina subia, Tally olhava para baixo. Estavam
seguindo o curso do rio. O fogo se espalhava pela margem, empurrado pelo
deslocamento de ar. De vez em quando, a máquina disparava uma labareda lá
embaixo.
Tally observou os rostos dos membros da tripulação. Pareciam muito
determinados e concentrados em suas tarefas para serem meros jovens perfeitos.
Aquilo tudo era uma loucura.
– O que estão fazendo? – perguntou ela.
– Um pequeno incêndio.
– Isso eu percebi. Mas por quê?
– Para salvar o mundo, garota. Sentimos muito que você tenha
surgido no nosso caminho.
Eles
se autodenominavam guardiões.
O que a havia tirado do rio chamava–se Tonk. Todos falavam com um
sotaque carregado e vinham de uma cidade que Tally não conhecia.
– Não é muito longe daqui – disse Tonk. – Mas nós, guardiões,
passamos a maior parte do tempo na natureza. A base dos helicópteros de fogo
fica nas montanhas.
– Heli–quê de fogo?
– Helicópteros. É num deles que está agora.
Depois de examinar o interior do veículo ruidoso, ela gritou:
– Isto é tão... Enferrujado!
– E é mesmo. Uma relíquia. Algumas partes têm quase duzentos anos.
Produzimos cópias das peças quando começam a ficar desgastadas.
– Mas por que fazem isso?
– Eles chegam a qualquer lugar, havendo ou não uma estrutura
magnética no solo. E são um instrumento perfeito para se espalhar fogo. Com
certeza, os Enferrujados sabiam como criar confusão.
– E vocês espalham fogo para...
Tonk sorriu e, em seguida, pegou um dos pés de Tally. Da sola do
tênis, ele tirou uma flor, que estava amassada, mas sem sinais de ter sido
queimada.
– Para acabar com a phragmipedium panthera.
– Como é que é?
– Essa flor era uma das plantas mais raras do mundo. Uma
orquídea–tigre branca. Na época dos Enferrujados, um único bulbo valia mais que
uma casa.
– Uma casa? Mas existem milhões delas por aí.
– Você reparou? – Ele levantou a flor, mantendo os olhos fixos na
delicada boca. – Cerca de trezentos anos atrás, uma Enferrujada descobriu uma
maneira de modificar a espécie geneticamente, para que se adaptasse a uma
variedade maior de condições. Ela alterou seus genes para que se espalhassem
mais facilmente.
– Por quê?
– A mesma coisa de sempre. Para usar como moeda de troca. O
problema é que o plano deu certo demais. Olhe para baixo.
Tally espiou pela janela. A máquina tinha ganhado altura e deixado
o incêndio para trás. Lá embaixo, agora, só havia campos brancos, interrompidos
apenas por alguns poucos trechos sem vegetação.
– É, parece que ela fez um bom trabalho. Mas qual é o problema? As
flores são bonitas.
– Uma das plantas mais bonitas do mundo. Porém, como eu disse, deu
certo demais. Ela se transformou numa cultura definitiva. Algo que chamamos de
monocultura. Essas flores afastam todas as outras espécies, acabam com as
árvores e a grama. E nada se alimenta delas, à exceção de um tipo de
beija–flor, que suga seu néctar. A questão é que esse beija–flor faz ninho em
árvores.
– Não há nenhuma árvore lá embaixo – disse Tally. – Só as
orquídeas.
– Exatamente. Esse é o significado de monocultura: tudo igual.
Depois que um determinado número de orquídeas se estabelece numa área, não há
beija–flores suficientes para cuidar da polinização. Sabe, para espalhar as
sementes.
– A–hã, eu conheço essa história de pássaros e abelhas.
– Claro que conhece, garota. Então, vítimas de seu próprio
sucesso, as orquídeas acabam morrendo, deixando uma terra sem vida para trás.
Um zero biológico. Por isso, nós, os guardiões, tentamos impedir que se
espalhem. Já experimentamos veneno, doenças criadas em laboratório, predadores
que atacam os beija–flores... mas o fogo é a única arma que funciona de
verdade. – Tonk virou a orquídea, acendeu um isqueiro e deixou que a chama
tocasse a boca da flor. – E temos de agir com bastante cuidado.
Tally notou que os outros guardiões estavam limpando suas botas e
uniformes, atentos a qualquer sinal de flores no meio da lama e da espuma. Ela
voltou a mirar a brancura infinita.
– E vocês estão fazendo isso há quanto...
– Quase trezentos anos. Os Enferrujados começaram depois de
perceberem o que tinham provocado. Mas nunca sairemos vencedores. Apenas
tentamos conter a praga.
Contrariada, Tally se recostou e tossiu. Aquelas flores tão belas,
delicadas e inofensivas acabavam com tudo ao seu redor.
O guardião se aproximou e lhe ofereceu o cantil. Ela aceitou a
água.
– Você está indo para a fumaça, não está? – perguntou Tonk.
– Estou. Como você sabe?
– Bem, uma feia escondida no meio das flores, levando uma prancha
e um kit de sobrevivência...
– Ah, claro.
Ela se lembrou da pista: “e busque nas flores os olhos de inseto
alado”. Eles já deviam ter visto outros feios.
– Nós ajudamos o pessoal da Fumaça, e eles nos ajudam – explicou
Tonk. – Se quiser saber minha opinião, acho que eles são loucos, com essa
história de viverem na natureza e continuarem feios. Mas entendem mais da vida
selvagem do que a maioria dos perfeitos da cidade. É incrível.
– É, parece que sim – disse Tally.
– Parece que sim? – perguntou Tonk, com uma expressão de surpresa.
– Você está indo até eles. Não devia ter certeza?
A partir daquele momento, não haveria como evitar as mentiras.
Tally não podia contar que ela era uma espiã, uma espiã infiltrada.
– É claro que tenho certeza.
– Bem, vamos desembarcá–la em breve.
– Na Fumaça?
Tonk estranhou de novo.
– Você não sabe? A localização da Fumaça é um grande segredo. Eles
não confiam em perfeitos. Nem mesmo em nós, os guardiões. Vamos deixá–la no
lugar de sempre. Você sabe o resto, não é?
– É óbvio. Estava só testando você.
O
helicóptero pousou em meio a uma nuvem de poeira. As flores brancas se
dobravam, sob a força do vento, em torno do ponto de pouso.
– Obrigada pela carona – disse Tally.
– Boa sorte. Espero que goste da Fumaça.
– Eu também.
– Se mudar de ideia, Tally, estamos sempre em busca de
voluntários.
– O que são voluntários?
– São pessoas que escolhem seus próprios trabalhos – respondeu
Tonk, sorrindo.
– Ah, entendi. – Tally tinha ouvido falar que aquilo era possível
em algumas cidades. – Quem sabe? Enquanto isso, continue com o bom trabalho.
Por falar nisso, não estão planejando botar fogo em nada aqui por perto, estão?
Todos riram.
– Só cuidamos dos limites da infestação, para evitar que as flores
ampliem sua presença – explicou Tonk. – Este lugar em que estamos fica bem no
meio. Não há mais esperança aqui.
Tally olhou ao redor. Em nenhuma direção, havia sinal de cores
diferentes do branco. Como o sol tinha se posto uma hora antes, as orquídeas
brilhavam como fantasmas sob a luz da lua. Agora que Tally entendia a situação,
a paisagem a assustava. Como era a expressão mesmo? Zero biológico.
– Beleza.
Ela desceu do helicóptero, pegou a prancha no suporte magnético
localizado ao lado da porta e foi se afastando agachada, com cuidado, seguindo
as orientações dos guardiões.
Logo a máquina voltou à vida. Tally observou o disco reluzente,
admirada. Tonk havia explicado que era um par de lâminas finas, girando tão
rápido que era impossível vê–las. Era aquilo que sustentava a estrutura no ar.
Ela não sabia dizer se era brincadeira. Na verdade, parecia apenas um campo de
força comum.
Enquanto a máquina manobrava, o vento voltou a ficar forte,
levando Tally a segurar a prancha com firmeza. Ela acenou até o helicóptero
sumir no céu escuro.
Um suspiro: estava sozinha novamente.
Observando o lugar, Tally se perguntou como encontraria os
Enfumaçados no meio daquele deserto de orquídeas. “Depois na cabeça careca
espere a alvorada”, dizia a última pista do bilhete de Shay. Tally deu uma
geral na paisagem, e um sorriso de alívio tomou conta de seu rosto.
Havia uma montanha alta e arredondada, não muito longe dali. Devia
ter sido um dos primeiros pontos de proliferação das flores geneticamente
modificadas. Sua metade superior estava morrendo: não havia nada além de terra
devastada pelas orquídeas.
A área descampada parecia exatamente uma cabeça careca.
Em
poucas horas, ela chegou ao cume desmatado da montanha.
A prancha não tinha utilidade naquele lugar. No entanto, a
caminhada era fácil graças às botas novas dadas pelos guardiões. As suas haviam
se despedaçado no helicóptero, depois de mal saírem inteiras do fogo. Tonk
também tinha enchido o purificador com água.
As roupas de Tally haviam começado a secar no helicóptero, e a
caminhada completou o serviço. A mochila tinha sobrevivido ao afogamento, assim
como os pacotes de EspagBol, mantidos secos dentro do saco impermeável. A única
perda causada pelo rio, no fim, havia sido o bilhete de Shay, reduzido a uma
maçaroca de papel molhado em seu bolso.
De qualquer modo, Tally estava quase lá. Enquanto observava os
arredores, do alto da montanha, concluiu que, fora as bolhas nas mãos e nos
pés, alguns machucados nos joelhos e umas mechas de cabelo destruídas pela
fumaça, ela tinha se saído bem. Se os Enfumaçados conseguissem encontrá–la e
acreditassem na sua intenção de se juntar a eles, sem suspeitarem de que era
uma espiã, tudo daria certo.
Ela aguardou na montanha. Apesar de exausta, não conseguia dormir,
atormentada pela pergunta: seria capaz de fazer o que a dra. Cable queria? O
pingente em seu pescoço também parecia ter sobrevivido à aventura. Tally não
acreditava que um pouco de água pudesse avariá–lo, mas a resposta só viria ao
chegar à Fumaça e tentar ativá–lo.
Por um momento, desejou que o pingente não estivesse funcionando.
Talvez uma pancada, ao longo do caminho tivesse quebrado o mecanismo de leitura
ocular. Assim, não seria capaz de enviar a mensagem à dra. Cable. Mas aquilo
não era consolo. Sem o pingente, Tally estaria presa naquele ambiente selvagem.
Feia para sempre.
A única maneira de voltar para casa era trair sua amiga.
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