Alguma coisa estava sempre
me atraindo ao conflito entre o Chris Perez e
o Chris Cho. Eu não devia ter me metido naquilo. A
situação não se encaixava
nas minhas atividades de vampiro, e além disso eu nunca
havia trocado uma
palavra com nenhum dos dois. Mesmo assim, eu ficava
arrumando desculpas
para sair mais cedo da aula de física. Tinha até me
oferecido para ser o alvo no
treino de paintball para poder escapar e ir até o meu
armário trocar de roupa.
Quando eu chegava lá, assistia, a uma distância de dez
metros, o Chris Perez
roubar o Chris Cho.
Nas
primeiras vezes que assisti, o Perez ficava perturbando o Cho.
Puxava o baixinho pela gola do casaco e em seguida o
empurrava contra um
armário ou a porta do banheiro. Dava um soco de leve no
queixo do Cho.
Depois começava a apalpar os bolsos da jaqueta do
menino, vasculhando até
tirar alguma coisa de dentro. Ele agia como se tudo
aquilo — o bolso, a
jaqueta e a carteira do Cho — pertencesse a ele.
Perez
começou pegando dinheiro, qualquer que fosse a quantia que o
Cho tivesse. Até que o garoto começou a ficar mais
esperto e a carregar
menos dinheiro — indo de notas de vinte para algumas de
um dólar e, por
|
fim, para dinheiro nenhum. Então o Perez roubou a
carteira de couro do Cho.
Após dar adeus à carteira, o baixinho começou a trazer,
de propósito, alguns
objetos — oferendas para o antigo deus Chris Perez. Um
CD ou DVD,
depois um chaveiro dourado que parecia pertencer a um
mafioso, e não a um
adolescente de origem asiática. Uma vez vi Cho tentar dar
um livro para o
Perez — que rejeitou a oferta, virou a mochila do outro
de cabeça para baixo,
revirou os bolsos do menino pelo avesso e levou o iPod
Touch dele.
Depois de
algumas semanas do início das aulas, Jenny tinha me contado
que o Perez era um mentiroso e que ninguém na família
dele era imigrante. Na
verdade ele era super-rico. O pai dele era dono do
maior resort de Puerto
Vallarta, e a mãe era uma loira com peitos falsos. Ela
quase tinha sido
escolhida para ser uma das donas de casa do programa
The Real Housewives
of New York City. A única parte verdadeira da história
triste dele era que a
mãe podia ter sido stripper, mas, de qualquer forma,
eles nunca tinham
passado fome.
Então eu
estava obcecado pela briga porque Perez era um mentiroso
mimado e idiota que roubava coisas dos outros mesmo
sendo rico? Na
verdade, não era por isso. Não era nem mesmo o
comportamento do Perez
que mais me incomodava. Não era o modo como ele se
mostrava possessivo,
como botava as mãos no Cho de um jeito estranho, quase
sexual. Não era a
voz que usava quando remexia nos bolsos do garoto — uma
voz sedutora e
arrepiante, como a que o Harry Potter usava para falar
com as serpentes. Não
era o elogio que ele fazia quando o Cho entregava tudo
que ele queria.
Era o comportamento
do Cho que me incomodava. Não dava mais para
chamar aquilo de roubo. Cho estava simplesmente
entregando todas as suas
coisas! Isso me deixava louco — o modo como ele se
arrastava pelo corredor
de forma submissa, igualzinho ao Dilbert voltando para
o cubículo. A maneira
como seus ombros ficavam caídos debaixo da jaqueta
enorme. O fato de ele
nem sequer andar pelo outro lado do corredor. Ele não
fugia. Não levantava
as mãos para proteger o rosto. Não tentava impedir o
Perez de mexer em seus
bolsos. Não se protegia. Nem tentava dar um golpe
fajuto de caratê ou
comprar um spray de pimenta pela Internet. Ele não se
defendia.
O que me
deixava louco era como ele se parecia comigo.
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Durante
todo o mês de setembro, assisti àquele assalto pelo menos uma
vez por semana. Mas, no começo, ficava a uma distância
segura. Tudo bem, o
Cho estava agindo como eu agia no St. Luke — mas ele
não era eu, e o St.
Luke era passado. Eu disse a mim mesmo que não só era
muito diferente do
Chris Cho, mas também era bem diferente do cara passivo
e intimidado que já
tinha sido, aquele que não conseguia dar uma boa
resposta para o Johnny
Frackas. Agora eu era poderoso. Tinha amigos. Eu não só
me manifestava
como falei ―pinto‖ na aula de literatura. Eu disse para mim mesmo que
tinha
que parar com aquela obsessão. Mas continuei obcecado.
Assim, em outubro,
quando Perez pegou o celular do Cho, eu agi.
Cho estava
quase chegando à sala de matemática quando Perez abriu com
tudo a porta do banheiro e atravessou o corredor em
três passos largos. Eu
tinha saído da aula, supostamente para pegar o caderno
que havia deixado no
laboratório, e assistia à cena ao lado do meu armário,
a uma distância de três
salas.
— Chris Cho
— Perez chamou alto. — Amigão. O que você tem para
mim hoje?
Por um
momento, Cho levantou os ombros, mas em seguida os deixou
cair.
— Você não
sabe? — perguntou Perez, que se inclinou e ficou bem perto
do outro, bufando na cara do menino. — Quer que eu
descubra? Isso te
excita, Cho?
O baixinho
afastou a cabeça da respiração pesada do Perez e disse alguma
coisa que eu não ouvi.
— O que
foi?
Perez
também não tinha ouvido.
— Não tenho
nada hoje — Cho repetiu.
— Cho, não
se deprecie — Perez respondeu, bajulador. Ele adotou um
estranho tom de incentivo com sua vítima. Estava
fazendo um discurso de
estímulo para o Cho. — Você é cheio do ouro. Você é um
garoto de muita
sorte, sabia?
— Eu não
tenho nada hoje — Cho resmungou novamente.
Mas Perez
sabia que ele estava mentindo, pois tinha um tipo de radar
|
interno para coisas de valor. Ele era como um daqueles
detectores de metal
usados para encontrar moedas na praia. Percebendo que
não havia nada que
valesse a pena roubar na mochila do Cho, Perez a
arrancou das mãos do
menino e a arremessou pelo corredor. A mochila caiu a
meio metro do meu
armário, mas nenhum deles olhou para trás ou reparou em
mim. Então Perez
remexeu na jaqueta do Cho. Também não havia nada ali
que valesse a pena.
Perez passou as mãos em torno dos quadris do Cho e
basicamente agarrou a
bunda dele. Com uma mão, removeu lentamente o prêmio do
dia.
O celular do
Cho era fino e reluzente, prateado, com tela sensível ao
toque e teclado. Era um aparelho muito legal. Valia,
fácil, uns 350 dólares. O
que o Perez fazia com essas coisas? Vendia? Ou usava,
exibindo as coisas do
Cho na cara do menino? E o que o Cho fazia quando era
roubado? O que
faria sem o celular? O que diria a seus pais que tinha
acontecido com o
telefone?
— Ei —
chamei do corredor.
Cho pareceu
mais assustado que o Perez. Nenhum dos dois tinha
percebido que eu estava lá.
Perez olhou
para trás apenas por alguns instantes. O único efeito que eu
tinha sobre ele era fazer com que apressasse as coisas.
Ele balançou o celular
diante dos olhos do Cho e deixou o aparelho escorregar
entre o polegar e o
indicador para dentro do bolso da própria camisa.
—
Confiscado! — disse alegremente, depois se virou para seguir pelo
corredor.
Lenta e
deliberadamente, recolhi a mochila do chão, andei até o Cho e a
devolvi. O tempo todo eu respirava de maneira pesada,
me preparando.
Então, com uma mudança insana de velocidade, comecei a
correr atrás do
Perez.
Quando acelerei, ele acelerou. E, mesmo
com uma calça jeans enorme
cheia de correntes e os tênis desamarrados, Chris Perez
era rápido. A calça
dele deslizou até as coxas enquanto ele corria. Tive
uma visão tão boa da
bunda dele que poderia reconhecê-la numa identificação
da polícia. A sola do
sapato dele chiava no corredor vazio. Mas nada disso
diminuía sua velocidade.
O mais
incrível, porém, era o seguinte: eu era mais rápido. O corredor era
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comprido e sem obstáculos, e eu voava sobre o assoalho
de ladrilho encerado,
o sangue fluindo pelos meus braços e minhas pernas.
Dando o máximo de
mim, atravessava cinco lajotas a cada passo. Tudo
estava nítido, concentrado e
trabalhando em conjunto: as mãos e os cotovelos alinhados,
os calcanhares se
levantando ao máximo, meu corpo me impulsionando para
frente mais rápido
do que eu poderia pensar ou respirar. Sei que não sou
um super-herói. Sei que
não tenho poderes especiais. Mas naquele momento eu me
sentia como se
tivesse.
Chris Perez
estava correndo de um lado, ao longo dos armários, e eu
estava correndo do outro, junto das portas das salas de
aula. Mas então
desviei, fazendo uma curva fechada. Quando alcancei o
Chris, eu o agarrei
pelo ombro esquerdo. Cravei a palma da mão direita no
ombro dele e o virei,
de forma que ele ficasse de frente para mim. Então, com
as duas mãos, eu o
empurrei contra os armários.
Quando
criança, sempre que eu ia atrás do Luke quando ele se perdia, eu
o puxava de volta. Agarrava meu irmão e o puxava para
mim, para casa, para a
segurança.
Mas, no caso
do Chris Perez, eu o empurrei, para longe de mim e contra a
parede. Sua cabeça estalou contra a viga de madeira
sobre os armários. As
correntes do jeans ressoaram ao se chocar contra os
cadeados.
Perez ficou
surpreso por eu alcançá-lo tão rápido, mas continuava ágil e
agressivo. Ele me afastou com um empurrão, mas eu me
lancei contra ele
imediatamente, segurando seu pescoço com as mãos
cerradas. Para manter o
resto de seu corpo sob controle, levantei o joelho e
forcei seu quadril esquerdo
contra os armários. Com a mão que não estava segurando
o celular, ele tentou
me acertar, mas meus braços eram mais longos que os
dele e me mantiveram a
uma distância segura. Eu também era mais alto que o
Perez, pelo menos dez
centímetros, e enfatizei isso olhando para ele de cima
para baixo.
— Larga o
telefone do Cho — ordenei.
— Vá à
merda, Frame — ele respondeu, com a voz rouca por causa da
minha mão em sua garganta.
Fiquei um
pouco lisonjeado por ele saber quem eu era. Na verdade,
aquilo me deu confiança.
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— Tá ficando
zonzo? — perguntei. — Estou segurando sua jugular. E, já
que você é um idiota, vou dizer o que é a jugular. É
aquilo que leva o sangue
até o cérebro.
Obrigado,
sr. Muncher. Nosso professor de biologia do nono ano tinha
nos ensinado a localização da veia jugular e também
como usar as veias e
artérias do pescoço numa briga. Minha vida virou um
inferno durante as três
semanas seguintes, já que diariamente eu era jogado
contra armários enquanto
algum idiota como Johnny Frackas fincava as mãos na
minha garganta.
Lembrei da sensação de estar imobilizado, tentando me
livrar, mas ficando
primeiro meio zonzo e em seguida completamente
impotente, enquanto uma
dormência descia pelos braços...
Os dedos do
Perez amoleceram. Senti que eles tinham afrouxado perto
do meu joelho. O celular do Cho caiu ao lado de seu
jeans largo.
De repente,
Perez começou a lutar mais uma vez, forçando o corpo para
frente. Ele era muito forte e começou a me bater. Sem o
celular, ele tinha as
duas mãos livres para agarrar meus braços e minhas
mãos. Me assegurei de
que meu corpo estava longe o suficiente e de que ele
não conseguiria atingir
meu estômago. Mas continuei concentrado em manter as
mãos no pescoço
dele.
— Devolva o
resto das coisas dele — eu disse.
— Quem se
importa com aquela merda? — ele estava ofegante.
O instinto
dele era continuar bancando o bonzão. O reflexo dele era
recusar. Mas depois ele calou a boca e seu rosto mudou.
O maxilar afrouxou.
As pálpebras ficaram pesadas. Ele estava zonzo, dava
para perceber. E
assustado — ele estava com medo.
Eu tinha
Chris Perez exatamente onde queria. Eu sentia a adrenalina
pulsando, aquecendo minha pele. Estava concentrado e
destemido. Eu era
perigoso. Era poderoso. Eu tinha sede de sangue. Este
era o momento em que
meus caninos teriam se projetado para fora. Não
aconteceu, mas eu
continuava cheio de convicção.
Eu era um
vampiro.
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