quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 38 (Serie Feios)


RUÍNA

Eles só saíram da caverna na manhã seguinte.
Tally piscava sem parar ofusca a pela claridade do amanhecer, na expectativa de ver uma esquadra de carros voadores saindo repentinamente de trás das árvores. Durante a noite, porém, eles não tinham ouvido qualquer sinal de equipes de busca. Talvez, agora que a Fumaça estava destruída, pegar uns poucos fugitivos não valesse o esforço.
Embora houvesse passado o tempo todo escondida na caverna, um dia inteiro sem contato com a luz, a prancha de David ainda tinha pegar carga para levá–los de volta. Assim, eles partiram em direção ao rio. O estômago de Tally roncava, sem ver comida há um dia, mas ela precisava mesmo era de água. Sua boca estava tão seca que mal conseguia falar.
David se ajoelhou na beirinha e mergulhou a cabeça na água congelante. Tally tremeu só de olhar. Sem coberta e sapatos, tinha penado a noite inteira na caverna, mesmo encolhida nos braço de David. Precisava de uma refeição quente antes de encarar qualquer coisa mais gelada que a brisa da manhã. 
– E se a Fumaça continuar ocupada?– perguntou. – Onde vamos arrumar comida?
– Você disse que eles puseram os prisioneiros no viveiro. E Para onde foram os coelhos?
– Para todos os lados.
– Excelente. Devem estar por toda parte agora. E não são difíceis de pegar.
Ela fez uma cara de nojo.
– Tudo bem. Desde que a gente cozinhe a carne.
– É claro – disse David, sorrindo.
– Nunca acendi uma fogueira – confessou Tally.
– Não se preocupe. Está no seu sangue.
David subiu na prancha e estendeu o braço. Tally nunca havia participado de voos duplos. Ficou feliz por estar ao lado de David e não de uma pessoa qualquer. Ela se ajeitou na frente dele. Os dois mantinham os corpos colados, com os braços de Tally abertos e os de David na cintura dela. As curvas eram vencidas sem conversas, apenas um deixando o corpo pender para um lado, e o outro seguindo o movimento. Depois de algum tempo se acostumando, passaram a se mexer juntos, guiando a prancha pelo caminho familiar, como se fossem um só.
Mantendo um ritmo contido, o esquema funcionava bem. Tally, porém, tinha de ficar atenta a qualquer possível ruído de perseguição. Se um carro voador aparecesse, seria difícil iniciar uma fuga em alta velocidade.
Sentiram o cheiro da Fumaça muito antes de vê–la de fato.

Do alto da montanha, os prédios pareciam fogueiras exauridas: estavam aos pedaços, soltando fumaça e completamente enegrecidos. Nada se mexia na vila, à exceção de alguns pedaços de papel carregados pelo vento.
A impressão é de que queimou a noite inteira – comentou Tally.
Sem conseguir falar, David apenas concordou. Ela segurou sua mão, tentando imaginar como seria ver seu único lar reduzido a um monte de ruínas enfumaçadas.
– Sinto muito, David.
– Temos de ir lá embaixo. Preciso ver se meus pais...
Ele não conseguiu terminar a frase. Tally buscava sinais de alguém que tivesse permanecido na Fumaça. Embora o lugar parecesse totalmente deserto, poderia haver Especiais escondidos, à espera de Enfumaçados desgarrados.
– É melhor esperarmos – sugeriu ela.
– Não posso. A casa dos meus pais é do outro lado do espinhaço. Talvez os Especiais não a tenham visto.
– Se isso houver acontecido, Maddy e Az ainda estão lá.
– E se eles tiverem fugido? – perguntou David.
– Aí sairemos à procura deles. Enquanto isso, vamos tomar cuidado para que também não acabemos presos.
– Você está certa – disse David, conformado.
Tally continuava segurando sua mão bem firme. Eles abriram a prancha e aguardaram o sol subir, ainda procurando sinais de seres humanos lá embaixo. Às vezes, as brasas voltavam a ganhar vida, atiçadas pelo vento, e então as últimas colunas de madeira que permaneciam de pé desabavam, uma atrás da outra, transformando–se em cinzas.
Alguns animais buscavam comida. Tally ficou horrorizada ao ver um coelho perdido ser capturado por um lobo. Depois de um rápido confronto, tudo que sobrara foi um rastro de pelos e sangue. Aquilo era o que restava da natureza, pura e selvagem, poucas horas após a queda da Fumaça.
– Está pronta para descer? – perguntou David, depois de uma hora.
– Não. Mas a verdade é que nunca estarei.


Eles se aproximaram bem devagar, prontos para darem meia–volta e fugirem se algum Especial aparecesse. Ao chegarem ao início da vila, porém, Tally sentiu seu nervosismo se transforma numa coisa pior: a terrível certeza de que não havia mais ninguém ali.
Seu novo lar tinha desaparecido, e em seu lugar restavam apenas destroços chamuscados.
No viveiro, pegadas revelavam os caminhos percorridos pelos Enfumaçados, entrando e saindo do cercado – uma comunidade inteira tratada como gado. Uns poucos coelhos continuavam saltando nas proximidades.
– Bem, pelo menos não vamos morrer de fome – observou David.
– É, acho que não – disse Tally, embora a visão da Fumaça tivesse acalmado sua fome. Ela tentava entender como David sempre conseguia pensar em aspectos práticos, independentemente dos horrores com que se deparava. – Ei, o que é aquilo ali?
Num dos cantos do viveiro, do outro lado da cerca, haviam montes de pequenos objetos. Eles voaram para mais perto. David tentava enxergar através de uma cortina de fumaça.
– Parecem... sapatos.
Tally forçou a vista para conferir; ele estava certo. Ela baixou a prancha, desceu e correu até o lugar.
Era uma cena impressionante. Ao redor de Tally, havia cerca de vinte pares de sapatos espalhados, de todos os tamanhos. Ela se abaixou para examiná–los de perto. Estavam amarrados, como se tivessem sido tirados por pessoas com as mãos presas...
– Croy me reconheceu – murmurou Tally.
– O quê?
– Quando eu escapei, passei voando pelo viveiro. Croy deve ter visto quem era. E ele sabia que eu estava descalça. Até brincamos sobre isso.
Ela imaginou os Enfumaçados, impotentes, à espera do destino, decidindo fazer um último gesto de desafio. Croy devia ter tirado os sapatos e depois sussurrado a quem pudesse ouvir: “Tally está livre. E descalça.” O resultado era aquele monte de pares à sua disposição – a única ajuda que podiam dar à companheira Enfumaçada que eles haviam visto fugir.
– Eles sabiam que eu voltaria aqui – disse ela, num fiapo de voz.
O que eles não sabiam era quem os havia traído.
Tally pegou um par que pareceu ser do tamanho certo, com sola antiderrapante, e o calçou. Coube perfeitamente. Na verdade, serviu melhor do que os dados pelos guardiões.
De volta à prancha, ela tentou esconder a expressão de dor que tomava conta de seu rosto. Dali em diante seria daquele jeito. Cada gesto de bondade de suas vítimas faria com que se sentisse pior.
– Tudo bem. Vamos lá – disse a David.
O trilho para pranchas os levou pelo vilarejo, passando pelas vielas que restavam entre as ruínas carbonizadas. Ao lado de um prédio largo, que agora não passava de um monte de entulho enegrecido, David decidiu parar.
– Temi que isso pudesse acontecer.
Tally tentou identificar o que havia naquele lugar. Seu conhecimento da Fumaça tinha desaparecido; os caminhos familiares reduzidos a uma vastidão de cinzas e brasas.
Então, ela reconheceu algumas páginas queimadas sendo levadas pelo vento. A biblioteca.
– Eles não tiraram os livros antes de... – gritou Tally. – Mas por quê?
– Não querem que as pessoas saibam como as coisas eram antes da operação. Querem que vocês continuem se odiando. Do contrário, seria muito fácil se acostumar a rostos feios, a rostos normais.
Tally se virou para David e disse:
– A alguns, pelo menos.
Ele reagiu com um sorriso triste.
De repente, Tally se lembrou de algo.
O Chefe estava fugindo com umas revistas velhas. Talvez tenha conseguido.
– A pé? – disse David, sem levar muita fé na possibilidade.
– Espero que sim.
Ela se inclinou para frente, e a prancha seguiu adiante, até um dos limites da cidade. Ainda havia uma mancha de pimenta no local de sua briga com a Especial. Tally desceu para tentar se recordar em que ponto exato o Chefe tinha entrado na floresta.
– Se ele conseguiu mesmo fugir, já está longe daqui – ponderou David.
Tally se enfiou na mata, à procura de sinais de confronto. Com o sol da manhã passando por entre as folhas, ela identificou uma trilha de galhos quebrados no meio da floresta. o Chefe não fora muito cuidadoso: o rastro parecia deixado por um elefante descontrolado.
Ela encontrou a sacola meio escondida, enfiada sob uma árvore caída coberta de musgo. As revistas continuavam lá dentro, cada uma cuidadosamente protegida por uma capa de plástico. Tally pendurou a sacola no ombro, feliz por poder salvar alguma coisa da biblioteca, o que representava uma pequena vitória sobre a dra. Cable.
Momentos depois, ela encontrou o Chefe.
Estava deitado de costas, com a cabeça virada num ângulo que não deixava dúvidas de que havia algo de muito errado. Tinha os dedos apertados e as unhas sujas de sangue – um sinal de que arranhara alguém. Ele devia ter resistido para distraí-los, talvez para evitar que encontrassem a sacola. Ou talvez na esperança de facilitar a fuga de Tally.
Ela se lembrou do que os Especiais lhe disseram mais de uma vez: Não queremos lhe fazer mal, mas faremos se for necessário.
Estavam falando sério. Sempre falavam sério.
Tropeçando, saiu da floresta, perplexa, carregando a sacola.
– Encontrou alguma coisa? – perguntou David. Tally não respondeu. Ao ver seu semblante, ele desceu da prancha. – O que aconteceu?
– Eles o pegaram. Mataram o Chefe.
David arregalou os olhos, chocado, mas tentou manter a calma.
– Vamos, Tally. Temos de sair daqui.
Ela piscou. Havia algo de errado com a luz do sol, algo fora do lugar, como o pescoço do Chefe. Era como se o mundo tivesse sido deformado durante sua busca dentro da floresta.
– Para onde vamos? – perguntou baixinho.
– Temos de ir até a casa dos meus pais.



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