quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 37 (Serie Feios)


INCRÍVEL

Duas mãos seguraram os ombros de Tally no escuro.
– Você conseguiu! – Era a voz de David. Atônica, Tally não conseguia falar, mas o puxou para perto e afundou o rosto em seu peito. – Quem mais está com você?
Ela mexeu a cabeça para os lados.
David soltou um murmúrio, decepcionado. Em seguida, a caverna pareceu tremer, e ele abraçou Tally com força. Podiam ouvir um carro voador passando lentamente lá em cima. Tally imaginou as máquinas examinando cada fenda nas rochas em busca de sinais de suas presas.
Teria levado os Especiais até David? Seria perfeito – traição final.
O rumor dos perseguidores retomou, e David decidiu puxá–la mais para o fundo, por um longo e sinuoso caminho, mais frio e escuro. Agora, além do silêncio, só havia a sensação de umidade e frio. Tally imaginou montanhas de Enferrujados mortos enterrados entre as pedras.
Os dois esperaram abraçados, sem fazer barulho, pelo que pareceram ser horas. Não tiveram coragem de falar até muito depois de o ruído dos carros desaparecer.
– O que está acontecendo na Fumaça? – perguntou David, finalmente, num sussurro.
– Os Especiais apareceram hoje de manhã.
– Eu sei. Eu vi. – Ele a abraçou mais forte. – Não consegui dormir. Então, peguei minha prancha e subi a montanha para ver o sol nascer. Eles passaram por mim: vinte carros voadores de uma vez. Mas qual é a situação agora?
– Puseram todo mundo no viveiro dos coelhos e nos separaram em grupos. Croy disse que vão nos levar de volta para as nossas cidades.
– Croy? Quem mais você viu?
– Shay e alguns amigos dela. Talvez o Chefe tenha escapado. Eu e ele tentamos fugir juntos.
– E meus pais?
– Não sei.
Ela agradecia por estar no escuro. O medo na voz de David já era doloroso o suficiente. Seus pais eram os fundadores da Fumaça e conheciam o segredo da operação. Qualquer que fosse a punição para os outros Enfumaçados, para eles seria cem vezes pior.
– Não consigo acreditar que acabou acontecendo – disse David. Tally tentou pensar em alguma coisa reconfortante para dizer. Porém, tudo que via no escuro era o sorriso debochado da dra. Cable. – Como conseguiu fugir?
Tally soltou as mãos e esfregou os pulsos, ainda carregando as algemas, agora como espécies de pulseiras.
– Primeiro me livrei disso aqui, depois subi no telhado do centro de comércio e roubei a prancha de Croy.
– Mas não estava sendo vigiada? – perguntou David. Ela mordeu os lábios, sem dizer nada. – Incrível. Pelo que minha mãe diz, eles são super–humanos. A segunda operação aumenta seus músculos e recondiciona seu sistema nervoso. Além do mais, são tão assustadores que algumas pessoas entram em pânico só de olhar para eles. – Ele a abraçou. – Mas eu já devia saber que você conseguiria.
Embora não fizesse diferença naquela escuridão absoluta, Tally fechou os olhos. Desejava que pudessem ficar ali para sempre, sem precisar encarar o que havia do lado de fora.
– Foi apenas sorte – disse ela.
Era difícil acreditar que já estivesse mentindo de novo. Se tivesse contado a verdade desde o início, os Enfumaçados saberiam como lidar com o pingente. Poderiam tê–lo prendido a uma ave migratória e, àquela altura, a dra. Cable estaria a caminho da América do Sul, em vez de instalada na biblioteca, supervisionando a destruição da Fumaça.
Tally sabia, porém, que não podia contar a verdade. Não depois de tudo aquilo. David nunca mais confiaria nela, depois de ela ter destruído seu lar e sua família. Tally já havia perdido Peris, Shay e sua nova casa. Não suportaria perder David também.
E que vantagem uma confissão traria naquela situação?
David estaria sozinho, assim como ela, no momento em que mais precisavam um do outro. Sentiu as mãos dele em seu rosto.
– Tally, você ainda me impressiona – disse David.
Ela foi tomada por uma angústia, como se aquelas palavras fossem uma faca enfiada em seu corpo.
Naquele instante, Tally decidiu assumir um compromisso consigo mesma. Um dia, contaria a David o que havia feito sem querer. Não seria agora, mas um dia. Quando ela tivesse melhorado as coisas, consertado parte do que havia destruído, talvez ele entendesse.
– Vamos atrás deles – disse. – Vamos resgatá–los.
– Quem? Meus pais?
– Eles vieram da minha cidade, não vieram? Então é para lá que serão levados. Assim como Shay e Croy. Vamos resgatar todos eles.
David deu um sorriso triste.
– Nós dois? Contra um monte de Especiais?
– Eles não estarão nos esperando.
– Como os encontraremos? Nunca estive numa cidade, mas sei que são bem grandes. Mais de um milhão de pessoas.
Tally respirou fundo, mais uma vez se lembrando da primeira ia ao escritório da dra. Cable. Dos prédios baixos de cor de terra, nos limites da cidade, depois do cinturão verde, enfiados entre fábricas. Da imensa montanha próxima.
– Sei onde estarão.
– Como é que é? – perguntou David, afastando–se de Tally.
– Já estive lá. No quartel–general da Circunstâncias Especiais.
Houve silêncio por algum tempo.
– Achei que isso fosse segredo. A maioria dos garotos que vêm para cá sequer acredita na existência deles.
Ela prosseguiu, sofrendo silenciosamente ao se ver inventando outra mentira com tamanha facilidade:
– Há um tempo, eu aprontei uma muito séria, do tipo que requer atenção especial. – Ela encostou a cabeça no corpo de David de novo, feliz por não poder ver seu rosto ingênuo. – Eu tinha ido até Nova Perfeição. É onde as pessoas vivem depois da operação, com diversão o tempo todo.
– Já ouvi falar desse lugar. E os feios não têm permissão para ir lá, não é?
– Exatamente. É uma infração bem grave. Mas continuando... eu estava vestindo uma máscara e entrei de penetra numa festa. Eles quase me pegaram. Para fugir, tive que usar uma jaqueta de bungee jump.
– E o que seria isso?
– É uma espécie de prancha, mas que você veste. Foi inventada para escapar de incêndios em prédios altos. Só que os novos perfeitos usam a jaqueta para se divertir. Então, eu peguei uma, acionei o alarme de incêndio e pulei do terraço. Muita gente ficou assustada.
– Certo. Shay me contou essa história no caminho para a Fumaça, dizendo que você era a feia mais legal do mundo. Mas o que ficou mesmo na minha cabeça foi que a cidade deve ser muito chata.
– É, acho que você tem razão.
– Mas você foi pega? Shay não contou essa parte.
A mentira ia tomando forma à medida que ela falava, tentando manter o maior número possível de traços de verdade.
– É, achei que tivesse me safado. Acontece que depois contraram meu DNA ou algo parecido. Alguns dias depois, me levaram para a Circunstâncias Especiais e me apresentaram a uma mulher assustadora. Acho que era a chefona. Foi a primeira vez que vi os Especiais.
– Eles são tão maus como dizem, pessoalmente?
– São incrivelmente bonitos, mas de um jeito terrível, agressivo. A primeira vez é a pior. Mas eles só queriam me assustar. Disseram que eu estaria enrascada se fosse pega novamente. Ou se contasse a alguém a respeito daquilo. Foi por isso que nunca disse nada a Shay.
– Isso explica muita coisa – comentou David.
– Muita coisa sobre o quê?
– Sobre você. Você sempre pareceu saber que era perigoso ficar na Fumaça. De alguma forma, compreendia a verdade por trás das cidades, antes mesmo de meus pais contarem tudo sobre a operação. Era a única fugitiva que eu conhecia que realmente entendia a situação.
Tally concordou: aquilo, pelo menos, era verdade.
– Eu entendo.
– E mesmo assim quer voltar para buscar meus pais e Shay? Correndo o risco de ser pega? Correndo o risco de ter o cérebro manipulado?
Ela começou a soluçar.
– Eu preciso fazer isso.
Para compensar o que fiz até agora.
David a abraçou bem forte e tentou beijá–la. Ela virou o rosto e, finalmente, deixou as lágrimas escorrerem.
– Tally, você é incrível.

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