quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 30 (Serie Feios)


O SEGREDO

Eles desceram pelo outro lado, percorrendo um caminho íngreme e estreito. David ia na frente, andando rápido mesmo no escuro, pisando nos lugares certos da trilha quase invisível sem nenhum tipo de hesitação. Tudo que Tally podia fazer era seguir seus passos.
O dia inteiro fora marcado por uma surpresa atrás da outra, e agora, para completar, ela ia conhecer os pais de David. Era a última coisa que poderia esperar depois de lhe mostrar o pingente e contar que não havia guardado segredo sobre a Fumaça. As reações de David eram diferentes das de das de qualquer outra pessoa que conhecesse. Talvez fosse o fato de ter nascido naquele lugar, longe dos hábitos da cidade. Ou talvez ele fosse simplesmente... diferente.
O espinhaço já tinha ficado bem para trás. A montanha, nessa parte, subia acentuadamente para um lado.
– Seus pais não moram na Fumaça? – perguntou Tally.
– Não. É muito perigoso.
– Perigoso como?
– Tem a ver com o que lhe contei no seu primeiro dia, na caverna da ferrovia.
– Sobre seu segredo? Sobre ter sido criado na natureza?
David parou por um momento para ficar de frente para ela.
– Há mais coisas envolvidas.
– Que coisas?
– Vou deixar que eles contem. Venha.
Minutos depois, um pequeno quadrado luminoso, bem fraquinho, apareceu na encosta. Tally percebeu que se tratava de uma janela, com uma luz vermelha vinda de trás que mal atravessava a cortina. A casa parecia semienterrada, como se tivesse sido encravada na montanha.
A poucos passos da entrada, David parou de novo.
– Não quero pegá–los de surpresa. Eles ficam nervosos – explicou, para em seguida gritar: – Boa noite!
Passados alguns segundos, a porta se abriu, e um facho de luz se espalhou pelo lugar.
– David? – perguntou uma mulher. Ela empurrou a porta mais um pouco, até que a luz revelou os dois. – Az, é o David.
Ao se aproximar, Tally viu que a mulher era uma feia velha. Não sabia dizer se ela era mais velha ou mais nova que o Chefe, mas sem dúvida tinha sua aparência, só não era tão assustadora quanto ele. Seus olhos, porém, brilhavam como os de um perfeito, e um sorriso acolhedor tomou conta de seu rosto enquanto ela dava um abraço no filho.
– Oi, mãe.
– Você deve ser Tally – disse ela.
– É um prazer conhecê–la.
Tally não sabia se devia apertar a mão dela ou algo do gênero. Na cidade, não passava muito tempo com os pais dos outros feios, exceto quando ia para a casa de amigos durante as férias escolares.
Aquela casa era muito mais quente do que as moradias rústicas da vila, e o piso de madeira não parecia tão duro. Talvez os pais de David morassem ali havia tanto tempo que seus pés tivessem amaciado o chão. Mesmo assim, a casa aparentava ser mais firme do que qualquer construção da Fumaça. Estava realmente enterrada na montanha. Uma das paredes era de pedra, com uma camada de selante que a fazia reluzir.
– Também estou feliz em conhecê–la, Tally – disse a mãe de David.
Tally se perguntava qual seria seu nome. David sempre se referia aos dois como “mãe” e “pai”, palavras que ela não usava para falar de Sol e Ellie desde a infância.
Então um homem apareceu e, depois de apertar a mão de David, virou–se para ela.
– Prazer em conhecê–la, Tally.
Ela hesitou, sem conseguir falar, tomada por uma súbita falta de ar. De alguma forma, David e o pai pareciam... iguais.
Não fazia sentido. Se seu pai realmente fosse médico, na época do nascimento de David, a diferença de idade seria de pelo menos trinta anos. Mas os queixos, as testas, até mesmo os sorrisos levemente tortos, eram muito similares.
– Tally? – chamou David.
– Me desculpem. É que vocês... vocês são idênticos!
Os pais de David caíram na gargalhada, o que deixou Tally envergonhada.
– Sempre ouvimos esse comentário – contou o pai. Vocês, garotos da cidade, sempre acham isso impressionante. Mas você já ouviu falar da genética, não ouviu?
– Claro. Sei tudo a respeito de genes. Conheci duas irmãs, feias, que pareciam iguais. Agora, pais e filhos? É muito esquisito.
A mãe de David se esforçou para fazer uma cara séria, mas sua expressão ainda era suave.
– São os traços que herdamos de nossos pais que nos fazem diferentes. Um nariz avantajado, lábios finos, uma testa grande. Todas as coisas que a operação tira de nós.
– A preferência pela mediocridade – disse o pai.
Tally concordou lembrando–se das aulas na escola. A média geral das características faciais humanas servia de ponto de partida para a operação.
– Exatamente. Traços normais são uma das coisas que as pessoas buscam para seus rostos.
– Acontece que as famílias transmitem traços fora do normal. Como nosso nariz grande. – O pai apertou o nariz de David, que não pôde fazer nada, além de revirar os olhos. Tally percebeu que aquele nariz era maior que o de qualquer perfeito. Por que não tinha notado até então?
– Essa é uma das coisas de que as pessoas abrem mão ao se tornarem perfeitas. O nariz da família – disse a mãe. – Az, pode ligar a calefação?
De fato, Tally estava tremendo, mas não era de frio. Aquilo tudo era muito estranho. Ela não se acostumava à incrível semelhança entre David e o pai.
– Assim está ótimo – disse. – A casa é linda, ahn...
– Meu nome é Maddy. Vamos nos sentar?


Aparentemente, Az e Maddy já estavam esperando a visita.
Na sala principal da casa, havia quatro xícaras antigas arrumadas sobre pequenos pires. Logo uma chaleira começou a apitar. Az derramou a água fervente num bule, espalhando um aroma floral pelo ambiente.
Tally olhou ao redor. O lugar não se parecia com nada na Fumaça. Era uma casa típica de coroas, cheia de objetos complicados. Havia uma estatueta de mármore num canto e tapetes trabalhados pendurados na parede. Suas cores se misturavam e deixavam tudo mais suave. Maddy e Az deviam ter carregado muita coisa da cidade ao fugirem. Diferentemente de outros feios, que só possuíam os uniformes dos dormitórios e alguns objetos descartáveis, os dois tinham passado metade da vida juntando coisas, antes de partirem.
Ela se lembrou de ter crescido em meio a objetos de madeira feitos por Sol – formas abstratas produzidas a partir de galhos caídos que Tally recolhia em parques quando criança. Talvez a infância de David não tivesse sido tão diferente da sua.
– Isso tudo parece bastante familiar – comentou.
– David não contou? Eu e Az somos da mesma cidade que você – revelou Maddy. – Se tivéssemos ficado, talvez acabássemos responsáveis por transformá–la numa perfeita.
– É, quem sabe – murmurou Tally.
Se eles tivessem ficado, não haveria Fumaça, e Shay nunca teria fugido.
– David disse que você chegou aqui sozinha.
– Vim atrás de uma amiga. Ela me deixou instruções.
– E decidiu vir sozinha? Não quis esperar David aparecer de novo? – perguntou Maddy.
– Não havia tempo – respondeu o próprio David. – Ela partiu na noite anterior ao seu aniversário de 16 anos.
– Isso que é deixar as coisas para a última hora – observou Az.
– Mas também é bem emocionante – disse Maddy, aprovando a atitude.
– Na verdade, não tive muita escolha. Só fiquei sabendo da existência da Fumaça quando Shay, a minha amiga, estava indo embora. Isso foi mais ou menos uma semana antes do meu aniversário.
– Shay? Acho que não a conhecemos – disse Az.
Tally olhou para David, que não deu importância. Ele nunca havia levado Shay à casa dos pais? O que existiria, de verdade, entre David e Shay?
– Então você tomou a decisão bem rápido – comentou Maddy.
– Fui obrigada a tomar. Só tinha uma chance – explicou Tally, voltando à realidade.
– Está falando como uma verdadeira Enfumaçada – disse Az, enchendo as xícaras com um líquido escuro saído do bule. – Chá?
– Ah, sim, por favor.
Assim que segurou o pires, pôde sentir a quentura que atravessava o material branco e fino da xícara. Percebendo que se tratava de mais uma das misturas dos Enfumaçados que queimavam a língua, ela bebericou com cautela. Ao sentir o gosto amargo, fez uma careta.
– Ahn... me desculpem. É que nunca tomei chá.
Az se mostrou surpreso.
– É mesmo? Era muito popular quando nós vivíamos lá.
– Eu já tinha ouvido falar. Mas é uma bebida de coroas. Ahn, quer dizer, são os feios mais velhos que costumam tomar isso – explicou Tally, envergonhada.
Maddy apenas riu.
– Nós somos bem coroas. Então acho que podemos tomar chá.
– Está falando só por você, querida.
– Experimente isso – disse David, jogando um cubo branco no chá de Tally.
No gole seguinte, ela sentiu uma doçura que cortava o amargor. Agora, sim, podia tomar aquilo sem precisar fazer careta.
– Imagino que David tenha falado um pouco sobre nós – disse Maddy.
– Bem, ele disse que vocês fugiram há muito tempo. Antes de ele nascer.
– Ah, ele contou isso, é? – perguntou Az.
A expressão séria do pai era idêntica à de David quando alguém do grupo que cuidava da ferrovia fazia algo impensado e perigoso com uma motosserra.
– Não contei tudo a ela, pai – esclareceu David. – Só que eu cresci em contato com a natureza.
– Deixou o resto por nossa conta? – disse Az, um pouco aborrecido. – Que gentileza.
David encarou o pai.
– Tally veio atrás de notícias da amiga. Percorreu todo o caminho sozinha. Mas talvez não queira ficar por aqui.
– Não obrigamos ninguém a ficar – observou Maddy.
– Não estou falando disso. Só acho que ela deve saber, antes de decidir se quer voltar para a cidade.
Surpresa, Tally olhou para David, depois para Maddy e Az. O tom dele era estranho; não parecia um feio falando com os pais coroas. Parecia mais uma discussão entre feios. No mesmo nível.
– O que eu devo saber? – perguntou, em voz baixa.
Os três olharam para ela. Maddy e Az pareciam examiná–la.
– O grande segredo – disse Az. – Aquilo que nos fez fugir, quase vinte anos atrás.
– Um que não costumamos compartilhar – acrescentou Maddy, sem tirar os olhos de David.
– Tally merece saber – disse David, enfrentando a mãe. – Ela vai entender a importância.
– Ela é uma menina. Uma menina da cidade.
– Ela chegou aqui por conta própria, usando apenas um monte de instruções confusas como orientação.
Maddy franziu a testa.
– David, você nunca esteve numa cidade. Não sabe como eles são mimados. Passam a vida inteira dentro de uma bolha.
– Ela sobreviveu por nove dias, sem ajuda, mãe. Escapou até de uma queimada.
– Ei, vocês dois, por favor – interveio Az. – Ela está bem aqui na nossa frente. Não é mesmo, Tally?
– É, estou sim. E gostaria de saber do que estão falando.
– Me desculpe, Tally – disse Maddy. – É que esse segredo é muito importante. E muito perigoso.
Tally balançou a cabeça, que agora mantinha abaixada.
– Tudo por aqui é perigoso.
Eles ficaram em silêncio por alguns instantes. Tally só ouvia o tilintar da colher de Az mexendo no chá.
– Estão vendo? – disse David, quebrando o silêncio. – Ela entende as coisas. Merece nossa confiança. Merece saber a verdade.
– Todo mundo merece – respondeu Maddy, baixinho. – Alguma hora.
– Muito bem – disse Az, parando para tomar outro gole de chá. – Creio que vamos ter de lhe contar, Tally.
– Me contar o quê?
David respirou fundo antes de falar.
– A verdade sobre se tornar perfeita.

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