BRAVURA
À noite, no jantar, ela comeu sozinha.
À noite, no jantar, ela comeu sozinha.
Depois de passar o dia inteiro cortando árvores, não se sentia
mais horrorizada com a mesa do refeitório. A textura da madeira lhe transmitia
uma firmeza tranquilizadora, e percorrer seus desenhos com os olhos era mais
fácil do que pensar.
Pela primeira vez, Tally reparou na mesmice da comida. Mais pão,
mais cozido. Alguns dias antes, Shay havia explicado que a carne abundante do
cozido era de coelho. Nada de derivado de soja, como a carne desidratada do
EspagBol, mas carne de animais de verdade, provenientes da populosa fazendinha
mantida num dos cantos da Fumaça. A imagem de coelhos sendo mortos, limpos e
cozidos era compatível com seu estado de espírito. Como o resto daquele dia, o
jantar tinha um gosto agressivo e preocupante.
Shay não tinha voltado a conversar com ela depois do almoço. Como
Tally também não fazia ideia do que dizer a Croy, trabalhou o resto do tempo em
silêncio. O pingente da dra. Cable parecia cada vez mais pesado, enroscado em
seu pescoço tão firmemente quanto as trepadeiras, os arbustos e as raízes que envolviam
os trilhos da ferrovia. A sensação era de que todos na Fumaça enxergavam a
verdadeira essência do cordão: um símbolo de sua traição.
Tally se perguntou se seria capaz de viver ali depois de tudo
aquilo. Croy suspeitava de sua presença, e parecia ser uma questão de tempo
para todos os outros saberem. Um pensamento terrível tinha ocupado sua mente o
dia inteiro: talvez a Fumaça fosse o lugar certo, mas ela havia desperdiçado
sua oportunidade ao ir lá como uma espiã.
E, para piorar, tinha se colocado entre David e Shay.
Completamente sem querer, traíra sua melhor amiga. Como um veneno ambulante,
ela matava tudo ao seu redor.
Pensou nas orquídeas que se espalhavam pelos campos lá embaixo,
arrancando a vida das outras plantas e do próprio solo, num processo egoísta e
incontrolável. Tally Youngblood era uma praga. E, ao contrário das orquídeas,
sequer era bonita.
Assim que ela acabou de comer, David sentou–se do outro lado da
mesa.
– Oi – disse ele.
– Ei.
Ela ainda conseguiu dar um sorriso. Apesar de tudo, vê–lo era um
alívio. Comer sozinha a lembrava dos dias seguintes ao seu aniversário, quando
estava presa num corpo de feia, com todos sabendo que já devia ter se tornado
perfeita. Agora, pela primeira vez desde sua chegada à Fumaça, voltava a se
sentir feia.
David esticou o braço e segurou sua mão.
– Tally, sinto muito.
– Por quê?
Ele virou a mão de Tally, revelando várias bolhas novas em seus
dedos.
– Percebi que não usou mais as luvas. Depois de almoçar com Shay.
Não foi muito difícil imaginar o motivo.
– Ah, claro. Não é que eu não goste delas. Só não havia clima para
usá–las.
– Eu entendo. A culpa é toda minha. – Ele observou o ambiente
lotado. – Podemos ir para outro lugar? Preciso contar algo a você.
Sentindo o frio do pingente em seu pescoço e lembrando da promessa
feita a Shay, Tally concordou.
– Tudo bem. Também tenho algo a contar.
Eles atravessaram a Fumaça, passando por
fogueiras sendo apagadas com pás cheias de areia; janelas iluminadas por velas
e lâmpadas elétricas; e um grupo de feios jovens correndo atrás de uma galinha
solta. Subiram pelo espinhaço do qual Tally havia observado o vilarejo pela
primeira vez. David a levou até uma formação rochosa, plana e arejada, de onde
se tinha uma ótima vista por entre as árvores. Como sempre, Tally notou a
naturalidade de David, que parecia conhecer intimamente cada centímetro do
caminho. Nem os perfeitos, cujos corpos eram primorosamente equilibrados,
projetados para alcançar uma elegância absoluta em qualquer tipo de roupa, se
moviam daquela forma completamente natural.
Tally se obrigou a tirar os olhos dele. Lá embaixo, no vale, as
orquídeas brilhavam com uma maldade discreta sob o luar – um mar congelado
diante da floresta mergulhada na escuridão.
David falou primeiro:
– Sabia que é a primeira fugitiva a chegar aqui sozinha?
– Verdade?
Observando a vastidão branca das flores, ele confirmou.
– Na maioria das vezes, sou eu quem os trago.
Tally lembrou–se de Shay, na última noite que tinham passado
juntas na cidade, dizendo que o misterioso David a levaria à Fumaça. Até então,
ela mal acreditava na existência de tal pessoa. Agora, sentada ao lado de
David, tudo parecia muito real. Ele encarava o mundo com mais seriedade que
qualquer outro feio. Na verdade, era mais sério que alguns perfeitos de meia–idade,
como seus pais. De um jeito engraçado, David tinha um olhar tão intenso quanto
o dos perfeitos cruéis, embora não fosse tão frio.
– Antigamente, minha mãe cuidava disso – contou ele. – Agora está
muito velha.
Tally hesitou. Na escola, os professores costumavam dizer que os
feios que não se submetiam à operação acabavam ficando frágeis.
– Ai, sinto muito. Quantos anos ela tem?
Ele reagiu com uma risada.
– Minha mãe ainda está bem em forma. A questão é que, para os
feios, é mais fácil confiar em alguém como eu, da mesma idade que eles.
– Ah, entendi.
Tally recordou–se de como tinha reagido ao Chefe no primeiro dia.
Passadas poucas semanas, estava muito mais acostumada aos diferentes tipos de
rostos criados pela idade.
– Às vezes, alguns feios conseguem vir sozinhos, seguindo
instruções codificadas, como você. Mas são sempre grupos de três ou quatro.
Ninguém tinha chegado aqui realmente sozinho antes.
– Deve achar que sou uma idiota.
Claro que não – disse
David, segurando a mão de Tally. – Achei uma grande demonstração de coragem.
– A viagem não foi tão complicada assim.
– Tally não é a viagem que requer coragem. Já fiz viagens muito
mais longas por conta própria. É sair de casa. – Com um dedo, ele traçou uma
linha em sua mão castigada. – Não consigo imaginar deixar a Fumaça para trás,
largar tudo que eu conheço, sabendo que nunca vou voltar. – Aquilo deixou Tally
nervosa. Para ela, realmente não fora fácil, embora não houvesse escolha. – Mas
você abandonou sua cidade, o único lugar em que já viveu. E sozinha. Sequer
conhecia alguém que morasse aqui, alguém que pudesse convencê–la, por
experiência própria, que este lugar era real. Fez tudo na base da confiança,
porque sua amiga havia pedido. Talvez seja por isso que acho que posso confiar
em você.
Com os olhos fixos nas flores, Tally se sentia cada vez pior,
ouvindo as palavras de David. Se ele pelo menos soubesse a verdadeira razão de
estar ali...
– Quando Shay me contou que você vinha, fiquei furioso.
– Porque eu poderia revelar a localização da Fumaça?
– Em parte por causa disso. Mas em parte também porque é muito
perigoso para uma garota de 16 anos, criada na cidade, percorrer centenas de
quilômetros sozinha. Para ser sincero, achei que era um risco desnecessário, já
que você provavelmente não passaria da janela do seu quarto. – Olhando para
ela, David apertou sua mão suavemente. – Fiquei impressionado ao vê–la descendo
aquele morro.
– Eu estava num estado lamentável naquele dia – disse Tally,
sorrindo.
– Você estava toda arranhada, com os cabelo e as roupas chamuscados
pelo fogo, e mesmo assim tinha um sorriso enorme no rosto.
Sob
a luz do luar, o semblante de David parecia reluzir. Tally fechou os olhos, sem
querer acreditar. Que maravilha. Ela ia receber uma medalha por bravura,
quando, na realidade, devia ser expulsa da Fumaça por traição.
– Agora você não parece mais tão feliz – disse David.
– Nem todo mundo está satisfeito com minha presença aqui.
– Eu sei. Croy me contou sobre sua grande descoberta – revelou
David, rindo.
Tally abriu os olhos.
– Contou, é?
– Não lhe dê importância. Desde que você apareceu, ele desconfia
do fato de ter vindo sozinha. Acha que houve algum tipo de ajuda. Ajuda da
cidade. Mas eu já disse a ele que está imaginando coisas.
– Obrigada.
– Você pareceu tão feliz ao encontrar Shay. Pude ver que realmente
sentia falta dela – disse David.
– E sentia mesmo. Estava preocupada com ela.
– Claro que estava. E teve coragem para vir até aqui, ainda que
isso significasse se afastar de tudo que conhecia, sem a companhia de ninguém.
Não veio para cá porque queria viver na Fumaça, não é mesmo?
– Ahn... não entendi muito bem o que disse.
– Você veio para saber da Shay.
Tally encarou David. Embora ele estivesse completamente errado a
seu respeito, era agradável ouvir aquelas palavras. Até então, o dia tinha sido
marcado por suspeitas e questionamentos. Agora, o rosto de David demonstrava
admiração por seus atos. Uma sensação tomou conta de Tally – um calor que
afastou o vento frio que percorria a montanha.
Bastou mais um segundo para ter um arrepio e entender que sensação
era aquela. Era o mesmo calor que experimentara quando conversou com Peris
depois que foi operado. Ou quando os professores lhe lançavam um olhar de
aprovação. Com um feio, porém, era uma sensação inédita. Sem os olhos grandes e
perfeitos, seus semblantes não eram capazes de provocar aquilo. Ainda assim, o
luar e o cenário, ou talvez as palavras, de alguma maneira haviam transformado
David num perfeito. Por um breve instante.
Mas o encanto se baseava em mentiras, Tally não merecia o olhar de
David e, por isso, voltou a se concentrar no oceano de orquídeas.
– Aposto que Shay deve estar arrependida de ter me contado sobre a
Fumaça.
– Talvez neste exato momento, sim. Talvez por mais algum tempo –
admitiu David. – Seguramente, não para sempre.
– Mas você e ela...
– Eu e ela. Shay muda de ideia muito rápido, sabia?
– Como assim?
– A primeira vez que ela quis vir para a Fumaça foi na primavera.
Na época em que Croy e os outros vieram.
– Ela me contou. Shay desistiu, né?
– Sempre soube que desistiria. Ela só queria fugir por causa dos
amigos. Se ficasse na cidade, seria abandonada.
Tally se lembrou de seus dias de solidão, após a operação de
Peris.
– Conheço essa sensação.
– O problema é que ela não apareceu naquela noite. Mas isso é
normal. O que me surpreendeu mesmo foi vê–la nas ruínas, algumas semanas
depois, subitamente convencida de que queria deixar a cidade para sempre. E já
estava até falando em trazer uma amiga, embora ainda não tivesse tocado no
assunto com você. – Ele demonstrava certo inconformismo. – Quase disse a ela
para esquecer. Para ficar na cidade e se tornar perfeita.
As palavras de David fizeram Tally pensar. Tudo haveria sido mais
simples se ele tivesse feito exatamente aquilo. Àquela altura, Tally seria
perfeita e estaria no alto de uma torre de festas, ao lado de Peris, Shay e um
monte de novos amigos. No entanto, curiosamente, a imagem não lhe despertava
mais a mesma empolgação. Parecia sem graça, como uma música repetida milhares
de vezes.
David tocou sua mão.
– Fico feliz por não ter feito aquilo.
Por alguma razão, Tally respondeu:
– Eu também.
Sua reação a espantou porque, em algum nível, parecia sincera. Ela
olhou bem para David: a sensação ainda existia, Tally via que a testa dele era
muito grande e que havia uma pequena cicatriz branca acima da sobrancelha. E
que o sorriso era torto. Porém, era como se algo tivesse mudado na cabeça de
Tally, algo que havia tornado o rosto de David bonito para ela. O calor do
corpo dele destoava do frio do outono. Ela chegou mais perto.
– Shay se esforçou muito para compensar seus erros: ter desistido
da primeira vez e ter passado as instruções a você mesmo me prometendo que não
faria isso – contou David. – Agora, ela está convicta de que a Fumaça é o
melhor lugar do mundo. E que eu sou o cara mais sensacional do mundo por tê–la
trazido para cá.
– David, ela gosta muito de você.
– E eu gosto muito dela. Mas ela não é...
– Não é o quê?
– Não é determinada. Não é você.
Atordoada, Tally virou o rosto. Sabia que aquele era o momento de
cumprir a promessa. Ou então nunca o faria. Seus dedos tocaram o pingente.
– David...
– Eu usei. Reparei no cordão. Depois do seu sorriso, foi a
primeira coisa em que reparei.
– Deve imaginar que alguém me deu isso.
– Foi o que pensei – confirmou David.
– Pois é. E eu... contei a esse alguém sobre a Fumaça.
– Também pensei nisso.
– Não está irritado comigo? – perguntou Tally.
– Você não me fez nenhuma promessa. Eu nem a conhecia.
– Mas você...
David a olhava bem nos olhos. Seu rosto estava reluzente. Tally
desviava o olhar, tentando afogar seus estranhos pensamentos de perfeita no
oceano de flores brancas.
– Você deixou muita coisa para trás ao vir para cá... seus pais,
sua cidade, sua vida inteira – disse David. – E já notei que está começando a
gostar da Fumaça. Entende o que estamos fazendo de uma maneira que a maioria
dos fugitivos não consegue.
– Gosto da sensação de estar aqui. Mas talvez eu não fique.
Ele sorriu.
– Eu sei. Escute, não quero apressar nada. Talvez a pessoa que lhe
deu esse coração acabe vindo. Talvez não. Talvez você volte para lá. Mas,
enquanto isso, poderia fazer algo por mim?
– Claro. O que seria?
David se levantou e lhe estendeu o braço.
– Quero que conheça meus pais.
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