O LADO DESPREZADO
O
estrondo vinha do céu, como se fosse uma bateria gigante, raivosa e acelerada,
invadindo sua cabeça e seu coração. Parecia sacudir todo o horizonte, fazendo o
leito do rio tremer a cada pancada.
Tally agachou–se, dentro da água, até ficar apenas com a cabeça
para fora, segundos antes de a máquina aparecer.
Ela veio da direção das montanhas, voando baixa e levantando
poeira, no rastro das fortes correntes de ar que provocava. Era muito maior que
um carro voador – e cem vezes mais barulhento. Aparentemente sem auxílio de
ímãs, a máquina se sustentava no ar graças a um disco semi–invisível que
reluzia sob o sol.
Ao alcançar o rio, parou numa manobra radical. Sua passagem agitou
a água, criando ondas circulares, como se uma imensa pedra deslizasse na
superfície. Tally viu, no interior do veículo, pessoas olhando para a margem do
rio. Sua prancha aberta era sacudida pela ventania, e os ímãs lutavam para mantê–la
próxima ao chão. A mochila tinha desaparecido no meio da poeira. As roupas, o
saco de dormir e os pacotes de EspagBol espalhavam–se ao vento.
Tally se afundou um pouco mais na água revolta, pensando na
possibilidade de ficar ali, pelada e sozinha, sem qualquer tipo de auxílio. Já
estava quase congelada.
Nesse instante, a máquina moveu–se para a frente, exatamente como
uma prancha, e começou a se afastar. Seguiu em direção ao mar e desapareceu tão
rapidamente quanto havia chegado, deixando ecos nos ouvidos de Tally e espuma
na superfície da água.
Tally saiu do rio se arrastando. Seu corpo parecia uma pedra de
gelo, e ela mal conseguia fechar a mão. Caminhou até suas coisas e agarrou as
roupas, vestindo–as antes mesmo que o sol fraco pudesse deixá–la mais seca.
Sentou–se e ficou de braços cruzados, até os tremores pararem, olhando temerosa
para o horizonte avermelhado.
Os estragos não tinham sido tão grandes. A luz de operação da
prancha permanecia verde, e a mochila, embora suja, não representava danos. Depois
de uma busca e contagem dos pacotes de EspagBol, concluiu que só havia perdido
dois. Por outro lado, o saco de dormir estava arrebentado, cortado em
pedacinhos por alguma coisa.
Tally engoliu em seco. Nenhum fragmento do saco de dormir era
maior que um lenço. E se estivesse dentro dele quando a máquina veio?
Rapidamente, dobrou a prancha e guardou todo o resto. Num
instante, estava pronta para partir. Pelo menos, a ventania provocada pela
estranha máquina tinha deixado tudo seco.
– Muito obrigada – disse Tally, ao subir na prancha, curvando–se
para a frente, enquanto assistia ao sol começando a sumir.
Estava ansiosa para sair daquele lugar o mais rapidamente
possível, para estar longe no caso de eles voltarem. Mas quem eram eles? A
máquina voadora batia perfeitamente com a descrição feita por seus professores
das geringonças dos Enferrujados: uma espécie de tornado portátil que destruía
tudo em seu caminho. Tally já tinha ouvido falar de aeronaves capazes de
estilhaçar vidros ao passar e veículos blindados que podiam atravessar as casas
das pessoas.
No entanto, os Enferrujados tinham desaparecido muito tempo antes.
Quem seria tolo o bastante para reconstruir suas máquinas idiotas?
Tally voou na escuridão cada vez mais intensa, de olhos atentos a
qualquer sinal da pista seguinte: “Após quatro dias, pegue o lado desprezado.”
E a qualquer outra surpresa que a noite escondesse.
Mas uma coisa ficara bem clara: ela não estava sozinha.
Mais
adiante, o rio dividiu–se em dois.
Tally parou para examinar a ramificação. Um dos lados era
nitidamente maior; o outro era pouco mais largo que um córrego. Um “afluente”,
como se chamava um rio menor que desaguava num maior.
Parecia lógico que ela devia seguir o rio principal. No entanto,
estava viajando havia três dias, numa prancha mais rápida que o normal. Talvez
fosse hora de considerar a pista seguinte.
– Após quatro dias, pegue o lado desprezado – murmurou Tally.
Sob a luz da lua quase cheia, observou os dois rios, Qual deles
ela desprezava? Ou qual deles ela desprezaria na cabeça de
Shay? Os dois pareciam bem comuns. Tally tentou enxergar mais à frente: talvez
um deles levasse a algo desprezível que só podia ser visto de dia.
Esperar a resposta, porém, significaria perder uma noite. E também
ficar no frio e no escuro sem um saco de dormir.
Tally pensou que talvez a pista não se referisse àquele lugar.
Talvez devesse permanecer no rio principal até que algo mais óbvio surgisse.
Por que, afinal, Shay chamaria os dois rios de “lados”? Se estivesse falando da
ramificação, não faria mais sentido dizer “pegue o caminho desprezado”?
– O lado desprezado – repetiu Tally, lembrando–se de algo.
Ela levou os dedos ao rosto. Ao mostrar seu morfo perfeito a Shay,
Tally tinha explicado que sempre começava espelhando seu lado esquerdo e que
odiava o lado direito de seu rosto. E aquilo era exatamente o tipo de coisa que
ficaria na memória de Shay.
Então aquela seria uma maneira de dizer que ela devia pegar a
direita?
Pela direita, seguia o rio menor, o afluente. As montanhas ficavam
mais próximas naquela direção. Poderia estar se aproximando da Fumaça.
Tally observou os dois rios no escuro. Um grande e um pequeno.
Recordou–se de Shay dizendo que a simetria dos perfeitos era besteira, que ela
preferia ter um rosto com dois lados diferentes.
Até aquele momento, Tally não havia se dado conta da importância
da conversa, a primeira vez que Shay Shay tinha expressado seu desejo de
permanecer feia. Se tivesse percebido na hora, talvez pudesse ter convencido
Shay a desistir da fuga. E, agora, as duas estariam numa torre de festa, juntas
e perfeitas.
– Então é direita mesmo – disse Tally, suspirando e apontando a
prancha para o rio menor.
Quando
o sol nasceu, Tally soube que fizera a escolha certa.
À medida que o afluente avançava por entre as montanhas, os campos
ao seu redor se enchiam de flores. Logo as flores brancas reluzentes se
espalhavam como grama, expulsando todas as outras cores da paisagem. Na luz do
amanhecer, era como se a terra brilhasse de dentro para fora.
“E busque nas flores os olhos de um inseto alado”, pensou Tally,
tentando decidir se descia da prancha. Talvez houvesse algum inseto com olhos
especiais que devesse procurar.
Ela deslizou até a margem e desceu.
As flores só acabavam na beira do rio. Tally agachou–se para
examinar uma mais de perto. Cinco longas pétalas brancas curvavam–se
delicadamente para cima, a partir do caule, em torno da parte do meio, que
exibia apenas um leve tom amarelado. Uma das pétalas inferiores era mais
comprida e se esticava quase até a terra. De repente, um movimento chamou a
atenção de Tally, que logo avistou um pequeno pássaro voando entre as flores,
pulando de uma para a outra, pousando nas pétalas mais longas e dando bicadas
sem parar.
“São tão belas”, pensou Tally. E havia muitas, por toda parte. Ela
teve vontade de se deitar no meio das flores e dormir.
No entanto, não conseguia ver nada que lembrasse “olhos de um
inseto”. Tally ficou de pé novamente e observou toda a área ao seu redor. Não
havia nada além das montanhas, do branco ofuscante das flores e do rio
cintilante que subia o morro. Tudo parecia tranquilo, um mundo diferente
daquele que a máquina voadora havia feito em pedaços na noite anterior.
Ela voltou para a prancha e seguiu em frente, mais devagar para
poder procurar cuidadosamente qualquer coisa que se encaixasse à pista de Shay.
E sem esquecer de aplicar mais um adesivo para se proteger do sol cada vez mais
alto.
Tally
subiu a montanha acompanhando o rio. Lá de cima, podia ver áreas sem flores,
pedaços de solo arenoso e seco. A paisagem irregular era uma imagem estranha,
como um belo quadro depois de sofrer a ação de uma lixa.
Ela desceu da prancha várias vezes para examinar as flores, à
procura de insetos ou de qualquer outra coisa que correspondesse às palavras do
bilhete de Shay. Mas o dia passava e nada fazia sentido.
Por volta do meio–dia, o rio afluente já estava bem mais estreito.
Mais cedo ou mais tarde, Tally alcançaria sua origem, uma fonte na montanha ou
um monte de neve em derretimento. Então teria de caminhar. Exausta depois da
noite agitada, resolveu montar acampamento.
Seus olhos varreram o céu, tentando descobrir se haveria outras
máquinas voadoras dos Enferrujados por perto. A possibilidade de uma daquelas
coisas se aproximando durante seu sono a deixava aterrorizada. Quem saberia o
que as pessoas no interior do veículo queriam? Se não estivesse escondida, na
noite anterior, o que teriam lhe feito?
Só havia uma certeza: as células solares da prancha eram bem
visíveis de cima. Tally decidiu verificar a carga. Graças à velocidade reduzida
e ao sol forte no céu, restava mais da metade. Ela desdobrou a prancha, mas
apenas em quatro partes, e a escondeu no meio das flores mais altas que
conseguiu encontrar. Em seguida, subiu um morro próximo, de onde podia vigiar a
prancha e escutar qualquer coisa que se aproximasse pelo ar. Também decidiu
arrumar a mochila antes de dormir, o que permitiria uma fuga rápida, se fosse
necessário.
Era tudo que podia fazer.
Depois de comer um pacote levemente repugnante de EspagBol, ela se
encolheu num ponto bem escondido pelas flores. O vento fazia suas longas hastes
balançarem, e as sombras dançavam nas pálpebras fechadas de Tally.
Ela se sentia meio exposta sem o saco de dormir, repousando apenas
com as roupas do corpo, mas o sol quente e a longa noite de viagem logo a
puseram para dormir.
Quando acordou, o mundo pegava fogo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário