quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 19 (Serie Feios)


ERRO FEIO

Ela estava voando, examinando a terra firme, sem qualquer sinal de trilhos ou de prancha sob seus pés, mantendo–se no ar graças apenas à sua vontade e ao vento que batia em seu casaco aberto. Contornou a extremidade de um penhasco imenso que dava num oceano negro interminável. Um grupo de pássaros a seguia, soltando guinchos que machucavam seus ouvidos exatamente como a voz aguda da dra. Cable.
De repente, as pedras lá embaixo começaram a rachar. Uma grande fenda se abriu, e o oceano invadiu a lacuna com um rugido que abafou o barulho dos pássaros. Ela se viu caindo em direção à água negra.
O oceano a engoliu. Encheu seus pulmões de água e congelou seu coração. Ela sequer conseguia gritar...
– Não! – berrou Tally, levantando–se num susto.
Uma brisa gelada passou pelo seu rosto e a ajudou a acordar. Tally olhou ao redor, percebendo que estava em cima do penhasco, enfiada no saco de dormir. Cansada, com fome e louca de vontade de ir ao banheiro, mas não caindo rumo ao nada.
Ela respirou fundo. Havia mesmo pássaros grasnando, só que a certa distância.
Aquele era apenas o mais recente de muitos pesadelos em que despencava.
A noite chegava, anunciada pelo sol se pondo sobre o oceano, tingindo a água de vermelho–sangue. Tally vestiu a camisa e o casaco de novo antes de sair de dentro do saco de dormir. A temperatura parecia cair a cada minuto. A luminosidade diminuía diante de seus olhos. Ela se apresou para partir.
Cuidar da prancha foi a parte mais difícil. Sua superfície aberta tinha se molhado e agora estava coberta por uma fina camada de sereno e água do mar. Tally tentou secá–la com a manga do casaco, mas havia muita água e pouco casaco. Embora tivesse se fechado com facilidade, a prancha molhada parecia pesada, como se a água permanecesse entre cada camada. A luz de operação ficou amarela, chamando a atenção de Tally. As laterais da prancha estavam escoando a água aos poucos.
– Excelente. Tempo para comer.
Tally pegou um pacote de EspagBol, mas logo se deu conta de que o purificador estava vazio. A única fonte de água era o mar lá embaixo, e não havia como descer. Sem opção, ela torceu a manga do casaco, conseguindo alguns esguichos. Depois, recolheu com as mãos a água que saía da prancha, até conseguir encher metade do purificador. O resultado da operação foi um EspagBol grosso e muito temperado, que exigiu um belo esforço de mastigação.
Quando Tally terminou a péssima refeição, a luz da prancha já estava verde.
– Muito bem. Tudo pronto para partir – disse a si mesma.
A pergunta era: para onde? Ela ficou parada, pensando, com um pé na prancha e outro no chão. O bilhete de Shay dizia: “Na segunda, cometa um erro feio.”
Cometer um erro não seria muito difícil. Mas o que poderia ser considerado um erro feio? Afinal, ela já tinha quase se matado naquele dia.
Tally lembrou–se do sonho. Cair na garganta se encaixaria na definição de erro feio. Ela subiu na prancha e avançou até a extremidade destruída da ponte. De lá, observou o ponto em que o rio encontrava o mar.
Se descesse, a única alternativa viável seria seguir a corrente do rio. Talvez aquele fosse o significado da pista. No entanto, não havia um caminho claro pelo despenhadeiro. Sequer apoio para as mãos.
Evidentemente, um simples veio de ferro bastaria para garantir uma descida segura. Seus olhos analisaram as paredes da garganta, em busca do tom avermelhado do ferro. Alguns pontos pareciam promissores, mas, na escuridão crescente, não havia como ter certeza.
Tally concluiu que tinha dormido demais. Esperar o amanhecer representaria perder mais 12 horas. E a água havia acabado.
A outra alternativa era caminhar pela montanha mesmo. Nesse caso, porém, poderia levar dias até alcançar um ponto em que conseguisse descer. E como o enxergaria à noite?
Precisava ganhar tempo em vez de ficar vagando na escuridão.
Nervosa, ela tomou uma decisão. Teria de encontrar uma forma de descer a bordo da prancha. Talvez fosse um erro, mas era exatamente isso que o bilhete pedia. Ela lançou a prancha sobre o abismo, até começar a perder suporte. Assim, foi descendo, cada vez mais rápido à medida que o metal dos trilhos ficava para trás.
Tally procurou desesperadamente um sinal de ferro nas paredes do precipício. Levou a prancha à frente, na direção da parede de pedra, mas não notou nada. Algumas das luzes do detector de metal se apagaram. Se descesse mais, despencaria.
Aquilo não daria certo. Tally estalou os dedos, e a prancha parou por um segundo, tentando subir de volta, mas, depois de uma balançada, continuou a descer.
Tarde demais.
Tally abriu o casaco, mas o ar estava parado dentro do abismo. Ela viu uma listra meio enferrujada na pedra e se aproximou, mas não passava de uma mancha de líquen. Nesse ponto, a prancha começou a cair mais rápido, com as luzes se apagando uma a uma. E, finalmente, se desligou.
Aquele erro poderia ser o último de Tally.
Ela caiu como uma pedra na direção das ondas agitadas. Como no sonho, sentiu–se sufocada por uma mão gelada, como se seus pulmões já estivessem cheios de água. A prancha despencava abaixo dela, girando como uma folha solta no ar.
Tally fechou os olhos e aguardou o impacto brutal com a água gelada.
De repente, alguma coisa a pegou pelos pulsos e a puxou com violência, fazendo–a girar no ar. Sentiu uma dor lancinante nos ombros ao dar uma volta completa, como uma ginasta nas argolas.
Abrindo os olhos, ela demorou a se situar. Estava pousando na prancha, que a aguardava firmemente um pouco acima da água.
– Que porcaria é...? – perguntou, em voz alta.
Somente quando seus pés se ajeitaram, Tally percebeu o que havia acontecido. O rio tinha evitado sua queda. Vinha acumulando depósitos de metal por séculos, ou desde que existia, e os ímãs da prancha haviam encontrado uma sustentação bem a tempo.
– Mais ou menos salva – murmurou.
Depois de esfregar os pulsos, que doíam devido ao tranco causado pelos braceletes antiqueda, perguntou–se por quanto tempo alguém precisaria cair para que aquelas coisas arrancassem seus braços do tronco.
De qualquer maneira, ela tinha conseguido descer. O rio passava à sua frente, dançando até se enfiar por entre as montanhas cobertas de gelo. Tremendo por causa do vendo do oceano, Tally tentou se proteger com o casaco encharcado.
– Após quatro dias, pegue o lado desprezado – repetiu, lembrando do bilhete de Shay. – Quatro dias. Já passou da hora.


Depois das primeiras queimaduras, Tally resolveu aplicar um adesivo de filtro solar na pele diariamente, ao amanhecer. Entretanto, mesmo com poucas horas de sol por dia, seus braços morenos começaram a ficar ainda mais escuros.
O EspagBol nunca mais pareceu tão gostoso como na primeira vez, no despenhadeiro. As refeições variavam de razoáveis a repugnantes. A pior parte era o EspagBol no café da manhã, perto do pôr do sol, quando o simples ato de pensar em comer o macarrão a deixava sem apetite para o resto da vida. Ela quase torcia para que aquilo acabasse, o que a forçaria a pegar um peixe e cozinhá–lo ou a simplesmente passar fome – um jeito sofrido de perder sua gordura de feia.
O que Tally realmente temia era ficar sem papel higiênico. Seu único rolo já estava pela metade. Ela tinha iniciado um esquema rígido de racionamento, contando as folhas. E, a cada dia, seu cheiro piorava.
No terceiro dia subindo o rio, Tally decidiu tomar um banho.
Como sempre, acordou uma hora antes do pôr do sol. Sentia–se pegajosa dentro do saco de dormir. Tinha lavado suas roupas de manhã e as deixado secando sobre uma pedra. A ideia de vestir roupas limpas com o corpo sujo daquele jeito lhe deu arrepios.
A água do rio corria depressa e quase não deixava resíduos no filtro do purificador – o que significava que era limpa. No entanto, também era extremamente gelada, provavelmente por vir da neve que cobria as montanhas próximas. Tally esperava que estivesse menos congelante depois de um dia inteiro sob o sol.
Para sua surpresa, o kit de sobrevivência realmente incluía sabonetes, escondidos num canto da mochila. Tally segurou um com firmeza e ficou de pé na beira do rio. Vestia apenas o sensor de cintura e tremia, exposta ao vento gelado.
– Lá vou eu – disse, esforçando–se para evitar que seus dentes batessem.
Assim que botou um pé na água, deu um pulo para trás, tentando aplacar a pontada que tinha sentido na perna. Aparentemente, não haveria como entrar no rio passo a passo. Seria necessário pular.
Tally caminhou pela margem do rio, procurando um bom ponto para pular e tentando juntar coragem. Lembrou–se de que nunca tinha ficado pelada ao ar livre. Na cidade, todo lugar aberto era público. Mas ali não via um rosto humano há dias. O mundo parecia ser só seu. Apesar do frio, o sol deixava uma sensação maravilhosa em sua pele.
Ela cerrou os dentes e olhou para o rio. Ficar parada pensando na natureza, não a deixaria limpa. Bastava dar alguns passos e pular – a gravidade cuidaria do resto.
Decidiu fazer uma contagem regressiva começando pelo cinco. Depois, pelo dez. Não funcionou. Então percebeu que estava congelando só de permanecer parada naquele lugar.
Finalmente, pulou.
A água gelada pareceu agarrar Tally. Todos seus músculos estavam paralisados, suas mãos tinham se transformado em garras trêmulas. Por um instante, ela se perguntou se conseguiria voltar à margem. Talvez fosse simplesmente morrer ali, mergulhando para sempre nas águas glaciais.
Tally respirou fundo, ainda tremendo, e tentou se lembrar de que os antepassados dos Enferrujados deviam tomar banho em rios gelados como aquele. Esforçando–se para segurar o queixo no lugar, ela enfiou a cabeça embaixo d'água e subiu e subiu de volta, jogando os cabelos para trás.
Um momento depois, um surpreendente calor se acendeu na sua barriga, como se a água gélida tivesse ativado um depósito secreto de energia dentro de seu corpo. Ela abriu os olhos e gritou de alegria. As montanhas que a cercavam havia três dias de caminhada pareciam reluzir, com seus picos cobertos de neve recebendo os últimos raios do sol que os recolhia. O coração de Tally se acelerou, seu sangue espalhando um calor inesperado pelo corpo.
Mas a carga de energia estava acabando rapidamente. Ela se apressou em abrir o sabonete e, apesar de senti–lo escorregar por entre os dedos, conseguiu passá–lo em toda a pele e nos cabelos. Mais um mergulho e estaria pronta para sair da água.
Ao olhar para a margem, Tally notou que tinha se afastado de seu ponto de parada, por causa da correnteza. Deu algumas braçadas para voltar e começou caminhar em direção às rochas na beira do rio.
Com a água na altura do peito, já tremendo devido ao vento que batia em seu corpo molhado, Tally ouviu um barulho que a deixou paralisada.
Alguma coisa estava se aproximando. Alguma coisa grande.

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