AMIGOS PARA SEMPRE
A
Mansão Garbo era grande, luminosa e barulhenta.
Ocupava uma área entre duas torres de festas – um bule gordo
separando duas elegantes taças de champanhe. Cada torre era sustentada por uma
única coluna que não chegava ao tamanho de um elevador. Acima, transformava–se
em cinco andares de varandas circulares, tomadas por novos perfeitos. Tally
subiu o morro, na direção dos três prédios, tentando curtir a vista pelos olhos
de sua máscara.
Alguém se jogou, ou foi jogado, de uma das torres, gritando e
agitando os braços. Tally engoliu em seco, mas conseguiu acompanhar toda a
queda, até o momento em que o cara foi detido pelas fitas de náilon, segundos
antes de se espatifar no chão. Ele se balançou suspenso por um tempo, rindo,
preso aos equipamentos de segurança, e então pousou suavemente. Tally estava
perto o suficiente para ouvir os soluços que entrecortavam suas risadas. Ele
estivera tão apavorado quanto ela.
Embora pular lá de cima não fosse mais perigoso do que ficar
parada ali, embaixo das torres enormes, ela sentiu um frio na espinha. A
jaqueta de bungee jump usava o mesmo mecanismo de suspensão da estrutura que
mantinha as construções de pé. Se aqueles brinquedinhos por alguma razão
parassem de funcionar, quase tudo em Nova Perfeição desabaria.
* * *
A mansão estava cheia de novos perfeitos em folha. O pior tipo, como Peris costumava dizer. Viviam como feios, cerca de cem dividiam um grande dormitório. Mas não havia regras no dormitório. A não ser que Comporte–se como um Idiota, Divirta–se e Faça Barulho fossem regras.
No terraço, um grupo de garotas em trajes de noite gritava
loucamente, caminhava na beirada e lançava rojões de emergência nas pessoas lá
embaixo. Uma bola de fogo laranja passou ao lado de Tally, como um vento de
outono, desfazendo a escuridão ao seu redor.
– Ei, tem um porco ali! – gritou alguém, de cima.
Enquanto todos riam, Tally apressou o passo para chegar à porta
escancarada da mansão. Ela ignorou as caras de surpresa de duas perfeitas que
saíam e entrou.
Era tudo uma grande festa, como sempre haviam prometido. As
pessoas estavam arrumadas, usando vestidos de gala e fraques de abas longas. E
todos pareciam achar graça de sua máscara de porco. Apontavam e riam. Tally
seguia em frente para que não tivessem tempo de fazer mais nada. Ali, obviamente,
o riso era permanente. Não era como nas festas dos feios: não havia brigas ou
mesmo discussões.
Ela foi entrando de quarto em quarto, tentando distinguir os
rostos sem se deixar distrair pelos grandes olhos negros ou se abater pela
sensação de que não pertencia ao lugar. Sentia–se mais feia a cada segundo que
passava ali. Ser motivo de piada para todo mundo que encontrava não ajudava
muito. Mas ainda era melhor do que o que fariam se vissem seu verdadeiro rosto.
Tally se perguntou até se seria capaz de reconhecer Peris. Só o
havia visto uma vez desde a cirurgia, e foi na saída do hospital, antes do
inchaço passar. Por outro lado, conhecia seu rosto muito bem. Apesar de que
Peris costumava dizer que, os perfeitos não tinham exatamente a mesma cara. Nas
expedições, Peris e ela às vezes viam perfeitos que pareciam familiares, que
lembravam feios conhecidos. Como irmãos ou irmãs – muito mais velhos,
confiantes e infinitamente mais bonitos. Irmãos que provocariam inveja pelo
resto da vida, se você tivesse nascido um século atrás.
Peris poderia ter mudado daquele jeito.
– Você viu a porquinha?
– O quê?
– Tem uma porquinha solta por aí!
As risadinhas vinham do andar de baixo. Tally parou para escutar.
Estava sozinha na escada. Aparentemente, os perfeitos preferiam o elevador.
– Como ela tem coragem de vir à nossa festa vestida de porquinha?
A regra é traje de gala!
– Entrou na festa errada.
– Que falta de educação se vestir desse jeito!
Tally respirou fundo. A máscara não era muito melhor do que seu
próprio rosto. A piada estava perdendo a graça.
Ela disparou pela escada, deixando as vozes para trás. Talvez se
esquecessem dela, se não ficasse parada. Faltavam dois andares da Mansão Garbo.
E, depois, o terraço. Peris tinha de estar em algum lugar.
A não ser que estivesse no gramado dos fundos, ou voando num
balão, ou numa das torres. Ou no Passeio Público, em qualquer parte, com outra
pessoa. Tally tirou a última imagem da cabeça e atravessou o corredor,
ignorando as piadas repetidas sobre a máscara, espiando os quartos, um a um.
Não encontrou nada além de olhares surpresos e dedos apontados em
sua direção. E rostos perfeitos. Mas nenhum chamou sua atenção. Peris não
estava ali.
– Aqui, porquinha, aqui, porquinha! Ei, ali está ela!
Tally correu para o último andar, subindo de dois em dois degraus.
A respiração acelerada esquentava seu rosto por trás da máscara. A testa suava,
e o adesivo escorria de sua pele, lutando para permanecer grudado. Estava sendo
seguida por um grupo deles, rindo e tropeçando uns sobre os outros.
Não havia tempo para vasculhar o andar. Tally apenas percorreu o
corredor com os olhos. Não havia ninguém ali mesmo. Todas as portas estavam
fechadas. Talvez alguns perfeitos estivessem descansando sua beleza.
Se fosse ao terraço à procura de Peris, ficaria encurralada.
– Ei, porquinha, porquinha!
Hora de fugir. Tally correu até o elevador e só parou dentro da
cabine.
– Térreo! – gritou.
Ela aguardou, observando o corredor nervosamente, ofegando sob o
plástico quente da máscara.
– Térreo! – repetiu. – Fechar portas!
Nada aconteceu.
Um suspiro antes de fechar os olhos. Sem um anel de interface, ela
não era ninguém. O elevador não a ouviria.
Tally sabia enganar elevadores, mas precisaria de tempo e de um
canivete. E, naquele momento, não tinha nem um nem outro. O primeiro
perseguidor apareceu na escada e logo estava no corredor.
Tally sabia enganar elevadores, mas precisaria de tempo e de um
canivete. E, naquele momento, não tinha nem um nem outro. O primeiro
perseguidor apareceu na escada e logo estava no corredor.
Ela deu um passo para trás e encostou na lateral do elevador. Nas
pontas dos pés e tentando se espremer o máximo possível, torceu para que não a
vissem. Outras pessoas chegaram, resfolegando como típicos perfeitos fora de
forma.
Tally observava–os pelo espelho no fundo do elevador.
O que significava que também veriam ela se
olhassem naquela direção.
– Para onde a porquinha foi?
– Venha aqui, porquinha!
– Talvez no terraço.
Um garoto entrou devagar no elevador, olhando para o grupo lá
atrás, sem entender a situação. Quando ele a viu, tomou um susto.
– Caramba! Quase me matou de susto!
Ele piscou os olhos, reparou no rosto mascarado e depois virou–se
para o fraque que vestia.
– Ah, não. Esta festa não exigia traje de gala?
Tally ficou sem ar. Sua boca estava seca.
– Peris? – perguntou, baixinho.
Ele a olhou com curiosidade.
– Eu conheço...
Ela começou a esticar a mão em sua direção, mas se lembrou de que
tinha de ficar escondida perto da lateral. Seus músculos já não aguentavam mais
mantê–la nas pontas dos pés.
– Peris, sou eu.
– Aqui, porquinha, porquinha!
Peris virou–se para a voz no meio do corredor, fez uma cara de
dúvida e voltou–se para ela de novo.
– Feche a porta. Espere – disse ele, rapidamente.
Assim que a porta se fechou, ela caiu para a frente. Tirou a
máscara para vê–lo melhor. Era Peris: a voz, os olhos castanhos, a testa
franzida indicando que estava confuso.
Mas agora parecia tão perfeito.
Na escola, tinham ensinado como aquilo afetava as pessoas. Não
importava se você sabia alguma coisa sobre evolução – ainda assim funcionava.
Em todo o mundo.
Havia um tipo de beleza, um encanto que todos viam. Olhos grandes
e lábios grossos, como crianças; pele sedosa e brilhante; traços simétricos; e
milhares de outras pistas. Em algum lugar no fundo de suas mentes, as pessoas
buscavam esses sinais permanentemente. Ninguém podia evitar notá–los, qualquer
que fosse sua criação. Um milhão de anos de evolução haviam tornado aquilo
parte do cérebro humano.
Os grandes olhos e lábios diziam: sou jovem e vulnerável, não
posso machucá–lo e você quer me proteger. O resto dizia: sou saudável, não vou
deixá–lo doente. E, não importava como se sentia em relação a um perfeito, uma
parte de você sempre pensava: Se tivermos filhos juntos, eles também
serão saudáveis. Eu quero essa pessoa perfeita...
Pura biologia, como explicavam na escola. A exemplo das batidas do
coração, aquelas coisas não podiam ser desmentidas, não quando se estava diante
de um rosto daqueles. Um rosto perfeito.
Um rosto como o de Peris.
– Sou eu – disse Tally.
Peris deu um passo para trás. Com uma expressão intrigada,
observou as roupas de Tally.
Ela se deu conta de que usava o uniforme preto de expedição. E
todo sujo das subidas por cordas, passagens por jardins e quedas por entre
trepadeiras. Já o traje de Peris era de veludo preto, complementado por camisa,
colete e gravata de um branco brilhante.
Tally se afastou.
– Ai, desculpa, não quero que fique sujo.
– O que está fazendo aqui, Tally?
– Eu só... – gaguejou ela. Agora que estava cara a cara com ele,
não sabia o que dizer. As conversas imaginadas desapareceram dentro daqueles
olhos enormes e doces. – Eu precisava saber se ainda éramos...
Tally estendeu a mão direita, a palma marcada pela cicatriz virada
para cima. A sujeira e o suor destacavam suas linhas.
Peris suspirou. Não olhava para sua mão. Nem para seus olhos. Não
para aqueles olhos castanhos sem–graça, apertados e vesgos. Olhos de ninguém.
– Claro – disse ele. – Mas... quero dizer... você não podia ter
esperado, Vesguinha?
O apelido feio soou estranho saindo da boca de um perfeito. Seria
ainda mais esquisito chamá–lo de Nariz, como costumava fazer dezenas de vezes
por dia. Ela engoliu em seco.
– Por que não escreveu para mim?
– Eu tentei. Mas pareceu falso. Sou tão diferente agora...
– Mas nós somos... – murmurou ela, apontando para a cicatriz.
– Olha só, Tally – disse Peris, também estendendo a mão.
A pele era sedosa e imaculada. Aquela mão dizia: Não
preciso pegar no pesado e sou esperto demais para me envolver em acidentes.
A cicatriz que haviam feito juntos tinha sumido.
– Eles a retiraram.
– É claro, Vesguinha. Toda minha pele é nova.
Tally piscou. Não tinha pensado naquilo.
Peris balançou a cabeça:
– Você ainda é tão criança.
– Elevador solicitado – disse o elevador. – Subir ou descer?
A voz da máquina deu um susto em Tally.
– Espere um pouco, por favor – pediu Peris, tranquilo.
Depois de respirar fundo, Tally fechou a mão.
– Só que eles não trocaram seu sangue. Nós compartilhamos aquilo,
não importa o que tenha acontecido.
Finalmente, Peris olhou–a nos olhos, sem hesitar, como Tally
temia. Na verdade, exibiu um sorriso lindo.
– Não, não trocaram. Grande coisa a pele nova. Em três meses vamos
poder rir disso tudo. A não ser...
– A não ser o quê? – perguntou ela, mergulhando em seus grandes
olhos castanhos, cheios de preocupação.
– Apenas me prometa que não vai fazer mais nada idiota – disse
Peris. – Vir aqui, por exemplo. Coisas que vão criar problemas para você. Quero
vê–la perfeita.
– Claro.
– Então prometa.
Embora Peris fosse só três meses mais velho do que Tally, ela
baixou os olhos, sentindo–se uma criança de novo.
– Certo, eu prometo. Nada idiota. E eles também não vão me pegar
hoje.
– Ótimo, pegue sua máscara e...
A voz de Peris sumiu. Tally acompanhou seu olhar e percebeu o que
tinha acontecido. Descartada, a máscara de plástico estava se reciclando,
transformando–se em pó rosa, e o carpete do elevador já começava o processo de
limpeza.
Os dois se entreolharam em silêncio.
– Elevador solicitado – insistiu a máquina. – Subir ou descer?
– Peris, juro que eles não vão me pegar. Nenhum perfeito corre tão
rápido quanto eu. É só você me levar lá para baixo...
Peris discordou.
– Subir. Terraço.
O elevador entrou em movimento.
– Terraço? Peris, como eu vou...
– Logo depois da porta, numa grande prateleira... jaquetas de
bungee jump. Há um monte para o caso de incêndio.
– Está dizendo que eu vou ter de pular? – Tally engoliu em seco.
Ela sentiu um aperto no estômago enquanto o elevador parava. Peris não deu
importância.
– Faço isso o tempo todo, Vesguinha – disse, dando uma piscada. –
Você vai adorar.
Com aquela expressão, seu rosto perfeito reluzia ainda mais. Tally
deu um passo à frente e o abraçou. A sensação era a mesma – talvez parecesse um
pouco mais alto e mais magro. Mas ainda era quente e de carne e osso. Ainda era
Peris.
– Tally!
Ela quase caiu para trás quando as portas se abriram. Tinha
enchido o colete de Peris de terra.
– Ai, não! Desculpa...
– Vai logo!
O nervosismo de Peris só aumentava a vontade de abraçá–lo
novamente. Tally queria ficar e limpá–lo, deixá–lo impecável para a festa. Ela
esticou o braço.
– Eu...
– Vai!
– Mas somos os melhores amigos, certo?
Ele suspirou e limpou uma mancha marrom.
– Claro. Para sempre. Em três meses.
Tally se virou e saiu correndo. As portas se fechando atrás dela.
No início, ninguém percebeu sua presença no terraço. Estavam todos
olhando para baixo. Somente o brilho de um ou outro sinalizador de emergência
perturbava a escuridão.
Tally encontrou a prateleira de jaquetas e puxou uma. Estava presa.
Correu os dedos nervosamente atrás de uma presilha. Desejou ter o anel de
interface para pedir instruções.
Acabou achando um botão: APERTE EM CASO DE INCÊNDIO.
– Que merda.
Sua sombra deu um pulo e se agitou. Dois perfeitos iam na sua
direção com sinalizadores nas mãos.
– Quem está ali? Que roupa é aquela?
– Ei, você aí! A festa pede traje de gala!
– Olha a cara dela...
– Ah, merda – repetiu Tally, antes de apertar o botão.
Uma sirene ensurdecedora se espalhou pelo ar, enquanto a jaqueta
parecia pular da prateleira para sua mão. Ela vestiu o equipamento e se virou
para os dois perfeitos. Eles deram um salto para trás, como se estivessem
diante de um lobisomem. Um sinalizador caiu da mão de um deles e se apagou
imediatamente.
– Treinamento de incêndio – disse Tally, correndo para a beirada
do terraço.
Assim que ajeitou a jaqueta nos ombros, as tiras e fechos
pareceram se enrolar em torno de seu corpo como cobras, até que o plástico
estivesse justo em sua cintura e coxas. Uma luz verde piscou na gola, bem no
seu campo de visão.
– Muito bem, jaqueta.
Aparentemente, o equipamento só não sabia responder.
Os perfeitos que se divertiam no terraço haviam se calado e agora
perambulavam pela área, tentando descobrir se realmente havia um incêndio. Logo
apontaram para Tally. Ela leu a palavra “feia” nos lábios de cada um deles.
O que seria considerado pior em Nova Perfeição? Sua mansão pegar
fogo ou um feio entrar de penetra na sua festa?
Tally chegou na beirada, subiu no parapeito e balançou por um
instante. Lá embaixo, perfeitos começavam a deixar a Mansão Garbo, invadindo os
gramados e descendo o morro. Olhavam para trás em busca de fumaça ou fogo. A
única coisa que viam era ela.
Era uma altura de respeito, e o estômago de Tally parecia já estar
em queda. Porém, ela também estava excitada. A sirene berrando, as pessoas
olhando para ela, as luzes de Nova Perfeição espalhadas ao redor como milhões
de velas.
Ela respirou fundo e dobrou os joelhos, preparando–se para pular.
Por um milissegundo, perguntou–se se a jaqueta funcionaria, já que
não estava usando um anel de interface. Aquilo seguraria uma ninguém? Ou ela
simplesmente se espatifaria no chão?
Mas Tally tinha prometido a Peris que não seria pega. E a jaqueta
era justamente para emergências. E havia uma luz verde...
– Lá vamos nós! – gritou.
E pulou.
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