TORNANDO–SE
PERFEITA
Não é uma coisa boa encher a sociedade de pessoas bonitas?
– Yang Yuan, em declaração ao New York Times.
NOVA PERFEIÇÃO
O
céu de início de verão tinha cor de vômito de gato.
Obviamente, Tally pensava, quando a dieta do seu gato se resume
por um bom tempo a ração sabor salmão. Movendo–se rapidamente, as nuvens até
lembravam peixes, desfeitas em escamas pelos ventos das altitudes elevadas. À
medida que a claridade se ia, lacunas azuis cor do mar apareciam, como um
oceano de cabeça para baixo, frio e infinito.
Num verão qualquer, um pôr do sol como esse teria sido lindo. Mas
nada era lindo desde que Peris havia se tornado perfeito. Perder seu melhor
amigo é uma droga, mesmo que apenas por três meses e dois dias.
Tally Youngblood esperava pela noite.
Ela podia ver Nova Perfeição da janela. Os prédios onde as festas
aconteciam já estavam todos iluminados. Linhas sinuosas destacadas por tochas
indicavam os caminhos por entre os jardins. Balões de ar quente puxavam suas
cestas em direção ao céu rosado levando passageiros que atiravam rojões de
artifício contra outros balões e paraquedistas que passavam. O som de risos e
música vinha como uma pedrinha sobre a água, arremessada com a força certa, as
pontas ferindo os nervos de Tally.
Nos limites da cidade, isolada pela forma oval do rio, tudo estava
escuro. Àquela hora, todos os feios estavam dormindo.
Tally tirou seu anel de interface e disse:
– Boa noite.
– Bons sonhos, Tally – respondeu a sala.
Ela mastigou uma pílula de escovar os dentes, afofou os
travesseiros e enfiou um antigo aquecedor portátil – um que gerava tanto calor
quanto um ser humano do tamanho de Tally – embaixo dos lençóis.
E então saiu de fininho pela janela.
Do lado de fora, com a noite finalmente tomando o céu por
completo, Tally se sentiu bem. Talvez fosse um plano idiota, mas qualquer coisa
era melhor do que outra noite acordada na cama, afogada em lamentações. No
familiar caminho coberto de folhas que levava à beira d'água, era fácil
imaginar Peris andando nas pontas dos pés atrás dela, segurando o riso, pronto
para uma noite espionando os perfeitos. Juntos. Ela e Peris havia aprendido a
enganar o inspetor aos 12 anos, uma época em que parecia que o três meses de
diferença entre suas idades nunca teriam importância.
– Amigos para sempre – murmurou Tally, tocando a pequena cicatriz
na palma de sua mão direita.
A água reluziu por entre as árvores. Ela podia ouvir as pequenas
ondas produzidas por uma embarcação no rio se chocando contra a margem.
Agachou–se atrás dos juncos. O verão era a melhor época para as expedições de
espionagem. A grama estava alta, nunca fazia frio e não era preciso encarar um
dia inteiro e aula no dia seguinte.
Obviamente, agora Peris podia dormir o quanto quisesse. Era apenas
uma das vantagens de ser perfeito.
A antiga ponte se estendia grandiosa por sobre a água. Sua imensa
estrutura de metal estava escura como o próprio céu. Tinha sido construída há
tanto tempo que suportava seu próprio peso, sem ajuda de qualquer estrutura
suspensa. Em um milhão de anos, quando o resto da cidade estivesse em
escombros, a ponte provavelmente continuaria de pé, como um osso fossilizado.
Ao contrário das outras pontes que levavam à Nova Perfeição, a
antiga não falava – e, mais importante, não denunciava invasores. No entanto,
mesmo em seu silêncio absoluto, sempre parecera sábia aos olhos de Tally;
serenamente astuta, como uma árvore ancestral.
Agora seus olhos estavam totalmente acostumados ao escuro.
Precisou de poucos segundos para achar a linha de pescar amarrada à pedra de
sempre. Ela deu um puxão e ouviu o barulho da corda se virando onde ficava
escondida, entre as colunas da ponte. Continuou puxando até que a linha
invisível se transformou numa corda úmida cheia de nós. A outra ponta
permanecia atada à estrutura metálica da ponte. Tally esticou bem a corda e a
amarrou à árvore de costume.
Ela teve de se agachar por entre a grama novamente quando outra
embarcação passou no rio. As pessoas que dançavam no convés não notaram a corda
que ia da ponte à margem. Nunca notavam. Os novos perfeitos estavam sempre
ocupados demais em se divertir para perceberem pequenas coisas fora do lugar.
Depois que as luzes do barco sumiram na escuridão, Tally testou a
firmeza da corda, usando o peso de seu corpo. Uma vez, ela havia se soltado da
árvore, fazendo com que Tally e Peris pendessem para baixo e depois fossem
arremessados para o meio do rio, caindo na água gelada. Tally sorriu com a
lembrança. Preferiria estar na expedição – encharcada, no frio, ao lado de
Peris – a estar seca e aquecida naquela noite, mas sozinha.
Pendurava por baixo da corda, com as mãos e os pés agarrados aos
nós, Tally foi se arrastando até a estrutura sombria da ponte. Então subiu no
esqueleto metálico e completou a travessia até Nova Perfeição.
Ela
sabia onde Peris morava graças à única mensagem que ele tinha se dado ao
trabalho de enviar desde que se tornara perfeito. Não era exatamente um
endereço, mas Tally conhecia o truque para decodificar os números aparentemente
aleatórios no fim do texto. Os dados a levaram a um lugar chamado Mansão Garbo,
na parte alta da cidade.
Chegar lá seria complicado. Em suas aventuras, Tally e Peris
sempre se mantinham perto do rio, onde a vegetação e a escuridão de Vila Feia
deixavam mais fácil a tarefa de se esconder. Desta vez, Tally estava a caminho
da área central da ilha, onde carros enfeitados e festeiros enchiam as ruas
iluminadas a noite toda. Novos perfeitos, como Peris, gostavam de viver onde a
diversão era mais intensa.
Embora tivesse decorado o mapa, se entrasse numa rua errada, Tally
estaria perdida. Sem seu anel de interface, era invisível aos veículos. Seria
atropelada como se nem existisse.
De certa forma, Tally não existia por lá.
Pior do que isso: ela era feia. Mas tinha esperança de que Peris
não visse as coisas daquele jeito. Ou pelos menos, não a visse
daquele jeito.
Tally não tinha ideia do que aconteceria se fosse pega. Não era
como se flagradas sem o anel, matando aula ou convencendo a casa a tocar sua
música num volume mais alto do que o permitido. Todo mundo fazia aquele tipo de
coisa – e todo mundo acabava se dando mal. Mas ela e Peris tomavam muito
cuidado para não serem pegos nas expedições. Atravessar o rio era assunto
sério.
Àquela altura, porém, era muito tarde para se preocupar. O que
poderiam fazer com ela, afinal? Em três meses também se tornaria uma perfeita.
Tally avançou lentamente, acompanhando o rio, até alcançar um
jardim. Penetrou a escuridão se enfiando embaixo de uma fileira de
salgueiros–chorões. Sob sua proteção, foi percorrendo um caminho iluminado por
pequenas candeias.
Havia um casal de perfeitos passeando pelo mesmo caminho. Tally
ficou imóvel, mas os dois estavam distraídos, ocupados demais trocando olhares
para notá–la agachada no escuro. Num silêncio absoluto, ela os viu passar e
sentiu algo que costumava sentir ao observar um rosto perfeito. Mesmo quando
ela e Peris os espiavam nas sombras, rindo das idiotices que os perfeitos
diziam e faziam, não conseguiam deixar de reparar. Havia algo mágico naqueles
olhos grandes e perfeitos, algo que praticamente obrigada as pessoas a prestar
atenção ao que diziam, a protegê–los dos perigos, a fazê–los felizes. Eles eram
tão perfeitos.
Depois que os dois sumiram na curva seguinte, Tally sacudiu a
cabeça, tentando tirar aquelas imagens piegas da cabeça. Não estava ali para
espiar. Era uma infiltrada, uma penetra, uma feia. E tinha uma missão a
cumprir.
O jardim se estendia pela cidade, serpenteando como um rio negro
por entre casas e torres brilhantes que abrigavam festas. Após se esgueirar por
mais alguns minutos, ela surpreendeu um casal escondido no meio das árvores
(afinal, estavam no Passeio Público). No escuro, porém, eles não conseguiam ver
seu rosto. Puderam apenas reclamar enquanto ela murmurava um pedido de
desculpas e se afastava. Tally também não tinha conseguido ver muita coisa;
apenas um emaranhado de pernas e braços perfeitos.
Finalmente, a poucos quarteirões de onde Peris morava, o jardim
chegou ao fim.
Tally deu uma olhada de trás de uma cortina de trepadeiras. Estava
num ponto a que ela e Peris nunca tinham chegado juntos. Também era o ponto
final do seu planejamento. Naquelas ruas movimentadas e bem–iluminadas, não
havia como se esconder. Ela levou os dedos ao próprio rosto e sentiu o nariz
largo, os lábios finos, a testa grande demais e o volume dos cabelos crespos.
Bastaria botar um pé fora do
mato para ser notada imediatamente. Seu rosto parecia queimar sob a luz. O que estava fazendo ali? Devia ter ficado nas sombras de Vila Feia, à espera da sua vez.
mato para ser notada imediatamente. Seu rosto parecia queimar sob a luz. O que estava fazendo ali? Devia ter ficado nas sombras de Vila Feia, à espera da sua vez.
Mas ela precisava se encontrar com Peris, falar com ele. Não sabia
exatamente a razão, além de já estar cansada de imaginar milhares de conversas,
todas as noites, antes de dormir. Tinham passado todos os dias juntos, desde a
infância, e agora... nada. Talvez, se pudessem conversar por alguns minutos,
seu cérebro parasse de falar com o Peris imaginário. Três minutos poderiam
permitir que suportasse outros três meses.
Tally percorreu a rua com os olhos, à procura de jardins para
invadir e entradas escuras que lhe servissem de abrigo. Sentiu–se como uma
alpinista diante de um paredão imponente, buscando fendas e apoios para as
mãos.
O movimento de carros diminuiu um pouco, e ela decidiu esperar,
distraindo–se com a cicatriz em sua mão direita. Um pouco depois, soltou um
suspiro e sussurrou: “Amigos para sempre.” E deu um passo em direção à luz.
A explosão de sons que veio do seu lado direito a fez pular de
volta para a escuridão, tropeçando por entre as trepadeiras e desabando de
joelhos na terra macia, por alguns instantes certa de que havia sido
descoberta.
A barulheira, contudo, logo se organizou num ritmo pulsante. Era
uma bateria eletrônica que se arrastava pela rua. Do comprimento de uma casa,
reluzia com os movimentos de suas dezenas de braços mecânicos, que golpeavam
tambores de todos os tamanhos. Atrás, vinha uma multidão crescente de
festeiros, dançando no ritmo, bebendo e arremessando as garrafas vazias contra
a imensa e impenetrável máquina.
Tally sorriu. Os festeiros usavam máscaras.
A máquina lançava máscaras pela parte de trás na tentativa de
atrair mais pessoas para a parada improvisada: diabos, palhaços horripilantes,
monstros verdes, alienígenas cinzas com grandes olhos ovais. Gatos, cachorros,
vacas. Rostos com sorrisos tortos e narizes gigantes.
Com a procissão avançando devagar, Tally se enfiou no mato
novamente. Algumas pessoas passavam tão perto que a doçura inebriante das
garrafas dominava seu olfato. Um minuto depois, quando a máquina já estava meio
quarteirão adiante, Tally saiu do esconderijo e pegou uma máscara abandonada do
chão. O plástico, recém–modelado no interior da máquina, ainda tinha uma
textura macia.
Antes de pôr a máscara no rosto, Tally percebeu que era da mesma
cor rosada de vômito de gato que lembrava o pôr do sol. Havia um longo focinho
e duas orelhinhas rosas. Podia sentir a gosma aderindo à sua pele e se
ajustando ao seu rosto.
Tally abriu caminho por entre os festeiros bêbados para sair do
outro lado da procissão, e pegou uma rua transversal que levava à Mansão Garbo.
Usava uma máscara de porco.
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