Parte
II
A
FUMAÇA
Não há beleza
perfeita que não contenha algo
de estranho em suas proporções.
– Francis Bacon, Ensaios sobre moral e política, “Da beleza”
– Francis Bacon, Ensaios sobre moral e política, “Da beleza”
PARTIDA
Tally partiu à meia–noite.
Tally partiu à meia–noite.
A Dra. Cable tinha exigido que ninguém fosse avisado da missão.
Nem os inspetores do alojamento. Não seria problema se Peris espalhasse boatos
– ninguém acreditava mesmo nas fofocas dos novos perfeitos. Seus pais, contudo,
não seriam oficialmente informados de que tinha sido obrigada a fugir. Fora o
pequeno pingente em forma de coração, Tally não receberia ajuda.
Ela saiu do jeito de sempre: pela janela caindo atrás do
reciclador. Seu anel de interface permanecia na mesa de cabeceira. Tally não
levava nada além da mochila com os itens de sobrevivência e o bilhete e Shay. E
o sensor de cintura, que tinha lembrado de prender pouco antes de partir. Era
noite de lua crescente. Pelo menos, poderia contar com alguma iluminação
durante a viagem.
Uma prancha especial, de longa distância, esperava Tally ao pé da
represa. Mal se mexeu sob o peso dela. A maioria das pranchas cedia um pouco
para se ajustar ao passageiro, balançando como um trampolim, mas aquela era
totalmente firme. Assim que estalou os dedos, a prancha subiu, sólida como
concreto.
Com a partida de Shay, dez dias antes, Tally passava a falar
sozinha. Aquele não era um bom sinal. Não teria companhia por alguns dias, e
conversas imaginárias eram tudo de que não precisava.
A prancha avançou suavemente, subindo em direção ao topo da
barragem. Quando chegou ao rio, Tally curvou o corpo para a frente, acelerando
até a água se transfo num mero borrão lá embaixo. A prancha não parecia ter um
controle de velocidade – não havia aviso de segurança. Talvez só precisasse de
espaço aberto, de metal na superfície e dos pés de Tally no lugar certo.
A velocidade seria a peça–chave se quisesse compensar os quatro
dias passados no limbo. Se Tally aparecesse muito depois do seu aniversário,
Shay poderia perceber que, na verdade, sua operação fora adiada. E, então,
concluir que Tally não era uma simples fugitiva.
Lá embaixo, o rio passava cada vez mais rápido, e ela até cançou
as corredeiras em tempo recorde. No percurso sobre as pequenas quedas, a água
passou a machucá–la, quase como granizo. Tally mudou de posição para ir um
pouco mais devagar. Mesmo assim, estava cruzando as corredeiras mais rápido do
que nunca.
Ela se deu conta de que a prancha não era um brinquedo para feios.
Era coisa de primeira. Na parte da frente, uma semicircunferência formada por
pequenas luzes brilhava transmitindo os registros do detector de metal, que
vasculhava a área adiante para informar se havia ferro suficiente para
prosseguir com o voo. As luzes permaneceram acesas durante o percurso nas
corredeiras. Tally torcia para que Shay estivesse certa em relação à existência
de metal à existência de depósitos de metal em todos os rios. Do contrário,
aquela seria uma longa jornada.
Evidentemente, naquela velocidade, não teria tempo de parar se as
luzes se apagassem de repente. E aí a viagem seria bem curta.
Entretanto, as luzes mantiveram–se firmes, e os nervos de Tally se
acalmaram com o rugido da água, os borrifos refrescantes em seu rosto, a emoção
de contorcer seu corpo, curva após curva, naquela escuridão salpicada pela luz
da lua. A prancha, mais inteligente que sua antiga, aprendia os novos
movimentos em questão de minutos. Era como se estivesse trocando um triciclo
por uma moto de verdade: assustador, mas empolgante.
Tally se perguntou se o caminho até Fumaça teria muitas
corredeiras. Aquela poderia ser mesmo uma aventura, embora soubesse que, no
fim, só haveria traição. Ou, pior ainda, acabaria descobrindo que Shay tinha
cometido um erro ao confiar em David, o que poderia significar... qualquer
coisa. Provavelmente algo terrível.
Ela sentiu um arrepio e decidiu não pensar mais naquela
possibilidade.
Ao alcançar o desvio, desacelerou e se virou, para dar uma última
olhada na cidade, que reluzia no vale escuro. Estava tão longe que Tally
conseguia escondê–la com a mão. O céu limpo permitia enxergar os fogos de
artifício se abrindo como flores – tudo numa miniatura perfeita. A natureza ao
seu redor parecia muito maior; o rio, cheio de poder; a floresta, enorme,
escondendo segredos em sua vastidão negra.
Tally ficou observando as luzes da cidade por um bom tempo antes
de descer da prancha, imaginando quando veria sua casa novamente.
Na
trilha, Tally se perguntava se teria de caminhar muitas vezes. Nunca voara tão
rápido quanto na subida das corredeiras, nem na viagem alucinada pela cidade no
carro da Circunstâncias Especiais. Depois de experimentar tanta velocidade,
andar carregando a mochila e a prancha lhe dava a sensação de ser uma lesma.
No entanto, não demorou muito até que as Ruínas de Ferrugem
surgissem abaixo e o detector de metal da prancha guiasse Tally até o veio
natural de ferro. Ela foi voando até as torres destruídas. Com os prédios
começando a esconder a lua, ficou apreensiva. Estava cercada por construções e
carros queimados. Ao olhar pelas janelas que não revelavam nada, ela se sentiu
sozinha, uma viajante solitária numa cidade abandonada.
– Pegue a montanha para além da abertura – disse em voz alta, como
um encantamento para manter afastados os fantasmas das ruínas.
Pelo menos, aquela parte do bilhete era bem clara: a
"montanha" só poderia se referir à montanha–russa. Quando os
escombros dos prédios deram lugar a terrenos mais abertos, Tally acelerou a
prancha. Na montanha–russa, fez o circuito inteiro em velocidade máxima. Talvez
“para além da abertura” fosse a única parte importante da charada, mas Tally
decidiu lidar com o bilhete como se fosse um feitiço. Esquecer qualquer pedaço
poderia pôr tudo a perder.
E era ótimo voar a toda novamente, deixando os fantasmas das
Ruínas de Ferrugem para trás. Enquanto vencia curvas fechadas e descidas
acentuadas, vendo o mundo girar ao seu redor, Tally sentiu–se como um objeto
carregado pelo vento: sem saber em que direção aquela jornada a levaria.
Poucos segundos antes de pular o buraco, as luzes do detector de
metal se apagaram. A prancha se afastou de seus pés, e seu estômago pareceu ir
junto, deixando um vazio no lugar. Seu palpite estava certo: em velocidade
máxima, não havia muito tempo para advertências.
Tally atravessou o ar, no silêncio da escuridão, rompido apenas
pelo som de seu próprio deslocamento. Lembrou–se da primeira vez em que tinha
passado pelo buraco, de como tinha ficado com raiva. Poucos dias depois, porém,
tudo não passava de uma brincadeira entre as duas, coisa comum entre os feios.
Mas agora Shay tinha desaparecido de novo, exatamente como o trilho sob seus
pés, deixando Tally em queda livre.
Passados cinco segundos, as luzes voltaram a se acender os
braceletes antiqueda a seguravam, a prancha se reativava para subir suavemente
e sustentá–la com uma firmeza reconfortante. Lá embaixo, havia uma curva e uma
subida acentuada em espiral. Tally desacelerou e seguiu em frente, murmurando:
– Para além da abertura.
As ruínas continuavam passando sob seus pés. Naquele ponto,
estavam quase totalmente encobertas. Apenas algumas massas disformes apareciam
entre a vegetação. Mas lá Enferrujados tinham erguido construções firmes graças
à sua adoração por inúteis esqueletos de metal. As luzes na frente de sua
prancha permaneciam acesas.
– Até achar a longa e plana que procura – disse a si mesma.
Ela tinha decorado o bilhete, mas repetir as palavras tornava seu
significado mais claro.
A pergunta era "a" o quê? A montanha–russa?
A abertura? A primeira seria estupidez. Qual seria o sentido da montanha–russa
longa e plana? Uma abertura longa e plana? Talvez pudesse descrever uma
garganta, entre as montanhas, incluindo um conveniente rio lá embaixo. Mas como
uma garganta poderia ser plana?
Talvez "a" significasse a letra a. Deveria procurar
alguma coisa com forma semelhante à da letra a? Como o a era arredondado, não
podia ser longo e plano. O mesmo valia para o A, maiúsculo, a não ser que
considerassem os traços separadamente.
– Obrigada pela grande dica, Shay – disse Tally, em voz alta.
Falar sozinha não parecia má ideia nas ruínas distantes onde os
vestígios dos Enferrujados lutavam contra a ação das plantas rastejantes.
Qualquer coisa era melhor que um silêncio fantasmagórico. Ela passou por vastas
áreas de concreto partido pela grama que forçava a passagem. Janelas de paredes
desabadas a encaravam, com ervas brotando no meio, como olhos nascidos da
terra.
Tally examinou o horizonte em busca de mais pistas. Não havia nada
longo e plano para ser visto. Olhando para o chão abaixo, mal conseguia
enxergar qualquer coisa em meio à escuridão pontuada por plantas. Se passasse
pelo que a pista indicava, sem saber, teria que refazer o caminho de manhã. Mas
quando saberia haver ido longe demais?
– Obrigada, Shay – repetiu.
Nesse momento, ela viu algo no chão e parou.
No meio da cobertura de plantas e detritos, havia formas
geométricas – uma fila de retângulos. Ela baixou um pouco e notou um caminho
marcado por trilhos de metal e dormentes de madeira. Como o trilho da
montanha–russa, porém muito maior. E que seguia em linha reta até desaparecer.
– Pegue a montanha para além da abertura, até encontrar a longa e
plana que procura. – Aquilo era uma montanha–russa, só que longa e plana. – Mas
para que serve isso? – perguntou Tally.
Qual era a graça de uma montanha–russa sem curvas e subidas? Ela
não sabia a resposta. Não importava como os Enferrujados se divertiam; aquilo
era perfeito para voar numa prancha. Os trilhos seguiam em dois sentidos, mas
era fácil decidir. Um voltava para o lugar de onde tinha saído, a área central
das ruínas. O outro ia para longe, para o norte, na direção do mar.
– O mar é gelado – disse, repetindo parte da linha seguinte do
bilhete de Shay.
Tally se perguntou até onde iria. Acelerou a prancha, satisfeita
por ter descoberto a resposta. Se todas as charadas de Shay fossem tão fáceis
de adivinhar, a viagem seria uma moleza.
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