quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 17 (Serie Feios)


Parte II
A FUMAÇA

Não há beleza perfeita que não contenha algo
de estranho em suas proporções.
– Francis Bacon, Ensaios sobre moral e política, “Da beleza”


PARTIDA

Tally partiu à meia–noite.
A Dra. Cable tinha exigido que ninguém fosse avisado da missão. Nem os inspetores do alojamento. Não seria problema se Peris espalhasse boatos – ninguém acreditava mesmo nas fofocas dos novos perfeitos. Seus pais, contudo, não seriam oficialmente informados de que tinha sido obrigada a fugir. Fora o pequeno pingente em forma de coração, Tally não receberia ajuda.
Ela saiu do jeito de sempre: pela janela caindo atrás do reciclador. Seu anel de interface permanecia na mesa de cabeceira. Tally não levava nada além da mochila com os itens de sobrevivência e o bilhete e Shay. E o sensor de cintura, que tinha lembrado de prender pouco antes de partir. Era noite de lua crescente. Pelo menos, poderia contar com alguma iluminação durante a viagem.
Uma prancha especial, de longa distância, esperava Tally ao pé da represa. Mal se mexeu sob o peso dela. A maioria das pranchas cedia um pouco para se ajustar ao passageiro, balançando como um trampolim, mas aquela era totalmente firme. Assim que estalou os dedos, a prancha subiu, sólida como concreto.
Com a partida de Shay, dez dias antes, Tally passava a falar sozinha. Aquele não era um bom sinal. Não teria companhia por alguns dias, e conversas imaginárias eram tudo de que não precisava.
A prancha avançou suavemente, subindo em direção ao topo da barragem. Quando chegou ao rio, Tally curvou o corpo para a frente, acelerando até a água se transfo num mero borrão lá embaixo. A prancha não parecia ter um controle de velocidade – não havia aviso de segurança. Talvez só precisasse de espaço aberto, de metal na superfície e dos pés de Tally no lugar certo.
A velocidade seria a peça–chave se quisesse compensar os quatro dias passados no limbo. Se Tally aparecesse muito depois do seu aniversário, Shay poderia perceber que, na verdade, sua operação fora adiada. E, então, concluir que Tally não era uma simples fugitiva.
Lá embaixo, o rio passava cada vez mais rápido, e ela até cançou as corredeiras em tempo recorde. No percurso sobre as pequenas quedas, a água passou a machucá–la, quase como granizo. Tally mudou de posição para ir um pouco mais devagar. Mesmo assim, estava cruzando as corredeiras mais rápido do que nunca.
Ela se deu conta de que a prancha não era um brinquedo para feios. Era coisa de primeira. Na parte da frente, uma semicircunferência formada por pequenas luzes brilhava transmitindo os registros do detector de metal, que vasculhava a área adiante para informar se havia ferro suficiente para prosseguir com o voo. As luzes permaneceram acesas durante o percurso nas corredeiras. Tally torcia para que Shay estivesse certa em relação à existência de metal à existência de depósitos de metal em todos os rios. Do contrário, aquela seria uma longa jornada.
Evidentemente, naquela velocidade, não teria tempo de parar se as luzes se apagassem de repente. E aí a viagem seria bem curta.
Entretanto, as luzes mantiveram–se firmes, e os nervos de Tally se acalmaram com o rugido da água, os borrifos refrescantes em seu rosto, a emoção de contorcer seu corpo, curva após curva, naquela escuridão salpicada pela luz da lua. A prancha, mais inteligente que sua antiga, aprendia os novos movimentos em questão de minutos. Era como se estivesse trocando um triciclo por uma moto de verdade: assustador, mas empolgante.
Tally se perguntou se o caminho até Fumaça teria muitas corredeiras. Aquela poderia ser mesmo uma aventura, embora soubesse que, no fim, só haveria traição. Ou, pior ainda, acabaria descobrindo que Shay tinha cometido um erro ao confiar em David, o que poderia significar... qualquer coisa. Provavelmente algo terrível.
Ela sentiu um arrepio e decidiu não pensar mais naquela possibilidade.
Ao alcançar o desvio, desacelerou e se virou, para dar uma última olhada na cidade, que reluzia no vale escuro. Estava tão longe que Tally conseguia escondê–la com a mão. O céu limpo permitia enxergar os fogos de artifício se abrindo como flores – tudo numa miniatura perfeita. A natureza ao seu redor parecia muito maior; o rio, cheio de poder; a floresta, enorme, escondendo segredos em sua vastidão negra.
Tally ficou observando as luzes da cidade por um bom tempo antes de descer da prancha, imaginando quando veria sua casa novamente.


Na trilha, Tally se perguntava se teria de caminhar muitas vezes. Nunca voara tão rápido quanto na subida das corredeiras, nem na viagem alucinada pela cidade no carro da Circunstâncias Especiais. Depois de experimentar tanta velocidade, andar carregando a mochila e a prancha lhe dava a sensação de ser uma lesma.
No entanto, não demorou muito até que as Ruínas de Ferrugem surgissem abaixo e o detector de metal da prancha guiasse Tally até o veio natural de ferro. Ela foi voando até as torres destruídas. Com os prédios começando a esconder a lua, ficou apreensiva. Estava cercada por construções e carros queimados. Ao olhar pelas janelas que não revelavam nada, ela se sentiu sozinha, uma viajante solitária numa cidade abandonada.
– Pegue a montanha para além da abertura – disse em voz alta, como um encantamento para manter afastados os fantasmas das ruínas.
Pelo menos, aquela parte do bilhete era bem clara: a "montanha" só poderia se referir à montanha–russa. Quando os escombros dos prédios deram lugar a terrenos mais abertos, Tally acelerou a prancha. Na montanha–russa, fez o circuito inteiro em velocidade máxima. Talvez “para além da abertura” fosse a única parte importante da charada, mas Tally decidiu lidar com o bilhete como se fosse um feitiço. Esquecer qualquer pedaço poderia pôr tudo a perder.
E era ótimo voar a toda novamente, deixando os fantasmas das Ruínas de Ferrugem para trás. Enquanto vencia curvas fechadas e descidas acentuadas, vendo o mundo girar ao seu redor, Tally sentiu–se como um objeto carregado pelo vento: sem saber em que direção aquela jornada a levaria.
Poucos segundos antes de pular o buraco, as luzes do detector de metal se apagaram. A prancha se afastou de seus pés, e seu estômago pareceu ir junto, deixando um vazio no lugar. Seu palpite estava certo: em velocidade máxima, não havia muito tempo para advertências.
Tally atravessou o ar, no silêncio da escuridão, rompido apenas pelo som de seu próprio deslocamento. Lembrou–se da primeira vez em que tinha passado pelo buraco, de como tinha ficado com raiva. Poucos dias depois, porém, tudo não passava de uma brincadeira entre as duas, coisa comum entre os feios. Mas agora Shay tinha desaparecido de novo, exatamente como o trilho sob seus pés, deixando Tally em queda livre.
Passados cinco segundos, as luzes voltaram a se acender os braceletes antiqueda a seguravam, a prancha se reativava para subir suavemente e sustentá–la com uma firmeza reconfortante. Lá embaixo, havia uma curva e uma subida acentuada em espiral. Tally desacelerou e seguiu em frente, murmurando:
– Para além da abertura.
As ruínas continuavam passando sob seus pés. Naquele ponto, estavam quase totalmente encobertas. Apenas algumas massas disformes apareciam entre a vegetação. Mas lá Enferrujados tinham erguido construções firmes graças à sua adoração por inúteis esqueletos de metal. As luzes na frente de sua prancha permaneciam acesas.
– Até achar a longa e plana que procura – disse a si mesma.
Ela tinha decorado o bilhete, mas repetir as palavras tornava seu significado mais claro.
A pergunta era "a" o quê? A montanha–russa? A abertura? A primeira seria estupidez. Qual seria o sentido da montanha–russa longa e plana? Uma abertura longa e plana? Talvez pudesse descrever uma garganta, entre as montanhas, incluindo um conveniente rio lá embaixo. Mas como uma garganta poderia ser plana?
Talvez "a" significasse a letra a. Deveria procurar alguma coisa com forma semelhante à da letra a? Como o a era arredondado, não podia ser longo e plano. O mesmo valia para o A, maiúsculo, a não ser que considerassem os traços separadamente.
– Obrigada pela grande dica, Shay – disse Tally, em voz alta.
Falar sozinha não parecia má ideia nas ruínas distantes onde os vestígios dos Enferrujados lutavam contra a ação das plantas rastejantes. Qualquer coisa era melhor que um silêncio fantasmagórico. Ela passou por vastas áreas de concreto partido pela grama que forçava a passagem. Janelas de paredes desabadas a encaravam, com ervas brotando no meio, como olhos nascidos da terra.
Tally examinou o horizonte em busca de mais pistas. Não havia nada longo e plano para ser visto. Olhando para o chão abaixo, mal conseguia enxergar qualquer coisa em meio à escuridão pontuada por plantas. Se passasse pelo que a pista indicava, sem saber, teria que refazer o caminho de manhã. Mas quando saberia haver ido longe demais?
– Obrigada, Shay – repetiu.
Nesse momento, ela viu algo no chão e parou.
No meio da cobertura de plantas e detritos, havia formas geométricas – uma fila de retângulos. Ela baixou um pouco e notou um caminho marcado por trilhos de metal e dormentes de madeira. Como o trilho da montanha–russa, porém muito maior. E que seguia em linha reta até desaparecer.
– Pegue a montanha para além da abertura, até encontrar a longa e plana que procura. – Aquilo era uma montanha–russa, só que longa e plana. – Mas para que serve isso? – perguntou Tally.
Qual era a graça de uma montanha–russa sem curvas e subidas? Ela não sabia a resposta. Não importava como os Enferrujados se divertiam; aquilo era perfeito para voar numa prancha. Os trilhos seguiam em dois sentidos, mas era fácil decidir. Um voltava para o lugar de onde tinha saído, a área central das ruínas. O outro ia para longe, para o norte, na direção do mar.
– O mar é gelado – disse, repetindo parte da linha seguinte do bilhete de Shay.
Tally se perguntou até onde iria. Acelerou a prancha, satisfeita por ter descoberto a resposta. Se todas as charadas de Shay fossem tão fáceis de adivinhar, a viagem seria uma moleza.

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