quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 16 (Serie Feios)


INFILTRADA

Os perfeitos cruéis pareciam ainda mais sinistros diante de seus olhos cansados. Tally sentia–se como um rato numa jaula cheia de falcões, apenas esperando que um desse um rasante e a abocanhasse. Para piorar, a viagem até lá tinha sido ainda mais enjoativa que antes.
Ela decidiu se concentrar na náusea que embrulhava seu estômago, tentando esquecer por que estava ali. Enquanto percorria o corredor, com um acompanhante, procurou se recompor, arrumando a blusa e o cabelo.
A dra. Cable, por outro lado, certamente não parecia que acabara de se levantar. Tally tentou, sem sucesso, imaginar como aquela mulher ficaria desgrenhada. Mal conseguia acreditar que seus penetrantes olhos metálicos fossem capazes de se fechar por tempo suficiente para que dormisse.
– Muito bem, Tally. Parece que mudou de ideia.
– Sim. 
– E vai responder todas nossas perguntas? Honestamente e de livre e espontânea vontade?
Tally fez um barulhinho irônico.
– Não tenho escolha.
– Tally, nós sempre temos escolha. E você fez a sua – disse a dra. Cable, sorrindo.
– Certo. Obrigada. Escuta, por que não faz logo as perguntas?
– Perfeitamente. Para começar, o que aconteceu com seu rosto?
Tocando os arranhões com a mão, Tally respondeu: 
– Árvores.
– Árvores? – repetiu a dra. Cable, franzindo a testa. – Muito bem. Mudando para um assunto mais importante, sobre o que você e shay conversaram na última vez em que estiveram juntas?
Tally fechou os olhos. Naquele momento quebraria a promessa feita a Shay. Contudo, uma voz baixinha em seu cérebro exausto lembrou–a de que também estaria cumprindo uma promessa. Finalmente poderia se juntar a Peris.
– Ela falou sobre ir embora. Fugir com alguém chamado David.
– Ah, sim, o misterioso David. – A dra. Cable se recostou na cadeira. – E ela disse para onde iria com David?
– Para um lugar chamado Fumaça. Parecido com uma cidade, só que menos. Onde ninguém manda. E ninguém é perfeito.
– E ela contou onde ficava esse lugar?
– Não, não contou. – Tally respirou fundo e tirou o bilhete amassado de Shay do bolso. – Mas ela deixou essas orientações. 
A dra. Cable sequer olhou. Em vez disso, passou um pequeno pedaço de papel a Tally. Mesmo com a vista embaçada, ela viu que era uma cópia em 3–D do bilhete, perfeito até nas leves marcas deixadas pela escrita caprichada de Shay.
– Tomamos a liberdade de fazer uma cópia disso na primeira vez em que esteve aqui.
Percebendo que tinha sido enganada, Tally fuzilou a dra.. Cable com os olhos.
– Então para que precisa de mim? Não sei nada além do que acabei de contar. Não pedi que ela me contasse outras coisas. E não fui com ela porque eu só... queria... ficar perfeita! – Um soluço subiu por sua garganta, mas Tally decidiu que, em circunstância alguma, especial ou não, choraria diante da dra. Cable.
– Tally lamento informar que achamos as instruções do bilhete um tanto enigmáticas.
– Somos duas. 
– Elas foram criadas para serem lidas por alguém que conhece Shay muito bem. Por você, talvez.
– É, claro. Eu consigo entender uma parte. Mas, depois das duas primeiras linhas, não entendo mais nada.
– Sei que é difícil. Principalmente depois de uma longa noite de... árvores. Apesar disso, ainda acredito que possa nos ajudar.
A dra. Cable abriu a maleta que estava sobre a mesa que as separava. O cérebro cansado de Tally demorou para identificar os objetos. Um acendendor de fogo, um saco de dormir amassado...
– Ei, isso aí parece o kit de sobrevivência da Shay.
– Exatamente, Tally. Esses kits às vezes somem. Geralmente quando um dos nossos feios desaparece.
– Então, mistério solucionado. Shay estava pronta para ir à Fumaça com esse equipamento.
– O que mais ela levava?
– Uma prancha. Um modelo especial, para energia solar.
– Uma prancha, é óbvio. Por que essas coisas sempre estão relacionadas aos rebeldes? E como Shay pretendia se alimentar, tem ideia?
– Ela tinha comida em pacotes. Desidratada.
– Como essa aqui? – perguntou a dra. Cable, mostrando uma embalagem prateada. 
– Isso. Tinha o bastante para quatro semanas. Duas semanas, se eu fosse junto. Ela disse que era mais que o suficiente.
– Duas semanas? Não dá para ir muito longe. – A dra. Cable puxou uma mochila preta do lado de sua mesa e começou a guardar os objetos. – Talvez você consiga.
– Consiga? Consiga o quê?
– Fazer a viagem. Até a Fumaça.
– Eu?
– Tally, só você pode entender as orientações.
– Eu já disse: não sei o que significam!
– Mas vai saber quando estiver no meio do caminho. E se estiver... devidamente motivada.
– Já contei tudo que vocês queriam saber. Entreguei o bilhete. Você prometeu!
– Minha promessa, Tally, foi de que você não se tornaria perfeita enquanto não nos ajudasse até onde pudesse. E eu acredito sinceramente que isso está dentro das suas possibilidades.
– Mas por que eu?
– Ouça bem, Tally. acha mesmo que esta é a primeira vez que ouvimos falar de David e da Fumaça? Ou que nunca encontramos instruções rabiscadas de como chegar lá?
Tally se assustou com a voz afiada e desviou o olhar do rosto assustador da mulher.
– Não sei.
– Já passamos por tudo isso. Acontece que quando vamos por conta própria não achamos nada. Realmente, só fumaça. 
O aperto tinha voltado à garganta de Tally.
– E como esperam que eu encontre alguma coisa? – perguntou.
– Esta última linha – disse a dra. Cable, puxando o bilhete de shay para perto de si. – Está escrito "na cabeça careca espera". É, claramente, um ponto de encontro. Você vai até lá e espera. Mais cedo ou mais tarde, eles vão pegá–la. Se eu mandar um carro cheio de Especiais, seus amigos provavelmente vão desconfiar.
– Está dizendo que quer que eu vá sozinha?
Uma expressão de desprezo tomou conta do rosto da dra. Cable.
– Não é muito complicado, Tally. Você mudou de ideia. Resolveu fugir e seguir sua amiga Shay. Apenar mais uma feia tentando escapar da tirania da beleza.
Tally encarou o rosto assustador de trás de um prisma de lágrimas que se acumulavam.
– E depois?
A dra. Cable tirou outro objeto da maleta: um cordão com um pequeno pingente em forma de coração. Ela pressionou os lados, fazendo–o se abrir. 
– Dê uma olhada.
Tally pôs o coração minúsculo diante de um olho.
– Nâo consigo ver... ei!
O pingente havia piscado, deixando–a cega por um instante. O coração soltou um pequeno bipe.
– O localizador só responderá à sua impressão ocular, Tally. Depois que for ativado, chegaremos em poucas horas, Podemos nos deslocar em alta velocidade. – A dra. Cable deixou o cordão sobre a mesa. – Mas não o ative até estar na Fumaça. Levamos um tempo para preparar isso. Quero descobrir tudo, Tally.
Piscando os olhos, para apagar a mancha deixada pela luz, Tally tentou forçar seu cérebro cansado a pensar. Finalmente compreendia que nunca havia se tratado de uma mera questão de responder perguntas. Desde o início, tinham pensado nela como uma espiã, uma infiltrada. Tentou imaginar a Circunstâncias Especiais não teria tentado convencer um feio a trabalhar para eles?
– Não posso fazer isso.
– Você pode, Tally. Precisa. Pense nisso como uma aventura.
– É sério. Nunca passei uma noite inteira fora da cidade. Não sozinha.
A dra. Cable ignorou os soluços que entrecortavam as palavras de Tally.
– Se não concordar imediatamente, vou procurar outra pessoa. E você continuará feia para sempre.
Tally levantou a cabeça e tentou enxergar por entre os rios de lágrimas que agora corriam pelo seu rosto. Queria encontrar a verdade atrás da máscara cruel da dra. Cable. Em seus olhos metálicos sombrios, havia uma segurança insensível e terrível, diferente de qualquer coisa que um perfeito normal pudesse transmitir. Tally percebeu que a mulher estava sendo sincera.
Ou Tally se infiltrava na Fumaça e traía Shay ou seria uma feia para o resto da vida.
– Preciso pensar.
– A história será a seguinte: você fugiu na noite anterior ao seu aniversário. Isso significa que já perdemos quatro dias. Se houver mais atrasos, eles não vão acreditar. Vão deduzir que algo aconteceu. Então tem de decidir agora.
– Não posso. Estou muito cansada.
A dra. Cable apontou para o telão e logo apareceu uma imagem. Era como um espelho refletindo, em close, o aspecto atual de Tally: olhos inchados, cansaço e marcas avermelhadas de arranhão no rosto. O cabelo apontava para todos os lados. Sua expressão, ao se deparar com a própria aparência, era de terror. 
– Essa é você, Tally. Para sempre.
– Desligue isso...
– Decida–se.
– Tudo bem, eu faço o que quiser. Desligue isso.
O telão se apagou.


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