quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 8 (Serie Feios)


AS RUÍNAS DE FERRUGEM

Algumas janelas vazias observavam as duas, em silêncio, das paredes dos prédios gigantes. Os vidros estavam estilhaçados há muito tempo; a madeira, podre. Não havia nada além de armações metálicas, argamassa e cimento que se despedaçava sob a força da vegetação que tomava conta do local. Olhando para a escuridão das entradas sem portas, Tally sentia arrepios ao pensar em descer e dar uma espiada.
As duas amigas deslizaram por entre os prédios em ruínas, mantendo a altura e o silêncio, para não perturbar os fantasmas da cidade morta. Lá embaixo, as ruas estavam repletas de latarias de carros amontoadas entre muros ameaçadores. Qualquer que tivesse sido a causa da destruição, as pessoas haviam tentado fugir. Tally lembrava da última excursão da escola às ruínas, que seus carros não eram capazes de voar. Andavam sobre rodas de borracha. Os Enferrujados foram encurralados naquelas ruas como um monte de ratos num labirinto em chamas.
– Ei, Shay, tem certeza de que nossas pranchas não vão entrar em pane de repente, certo? – perguntou, em voz baixa.
– Não se preocupe. Quem quer que tenha construído esta cidade adorava desperdiçar metal. Isto aqui não se chama Ruínas de Ferrugem porque foi descoberto por um cara chamado Ferrugem.
Tally não tinha como discordar. Todos os prédios eram marcados por pedaços de metal que saíam de suas paredes destruídas, como ossos saltando de um animal morto há muito tempo. Ela recordou que os Enferrujados não usavam estruturas flutuantes. Cada construção pesada, bruta e enorme precisava de um esqueleto de metal que a impedisse de desabar.
E algumas eram mesmo enormes. Os Enferrujados não mantinham suas fábricas no subsolo, nem trabalhavam em casa, mas sim todos juntos, como abelhas numa colmeia. As menores ruínas ainda eram maiores que os maiores dormitórios de Vila Feia. Maiores até que a Mansão Garbo.
Vistas à noite, as ruínas pareciam muito mais reais para Tally. Nas excursões da escola, os professores sempre retratavam os Enferrujados como estúpidos. Era quase impossível acreditar que as pessoas vivessem daquele jeito, queimando árvores para desocupar a terra, consumindo petróleo para gerar calor e energia, rasgando a atmosfera com suas armas. Contudo, sob a luz do luar, ela conseguia imaginar as pessoas, desviando dos carros em chamas para escapar da cidade que desmoronava, entrando em pânico durante a fuga daquele monte insustentável de metal e pedra.
A voz de Shay interrompeu o devaneio de Tally.
– Venha, quero mostrar uma coisa a você.
Shay voou para perto dos prédios e logo estava sobre as árvores.
– Tem certeza de que podemos... – começou a perguntar Tally.
– Olhe para baixo – disse Shay. Lá embaixo, metal re–luzia por entre as árvores. –As ruínas são muito maiores do que nos contam. Eles mantêm uma parte da cidade de pé para as excursões escolares e atividades de museus. Mas, na verdade, ela não tem fim.
– E está cheia de metal?
– Sim. Toneladas. Não se preocupe, já sobrevoei o lugar inteiro.
Tally engoliu em seco. Ela mantinha os olhos abertos para detectar qualquer sinal de ruínas lá embaixo e agradecia por Shay estar voando uma velocidade razoável.


Uma forma emergiu da floresta – uma espécie de espinha comprida que subia e descia como uma onda congelada. Seguia para longe de onde estavam, em direção à escuridão.
– Chegamos.
– Legal, mas o que é isso? – perguntou Tally.
– Chama–se montanha–russa. Eu não disse que ia lhe mostrar uma?
– É bonita. Para que serve?
– Diversão.
– Duvido.
– Pode acreditar. Aparentemente, os Enferrujados sabiam se divertir. É como uma pista. Eles prendiam carros de superfície a elas e tentavam alcançar a maior velocidade possível. Subindo, descendo, dando voltas. Como andar de prancha, mas sem flutuar. E usavam um tipo de aço que não enferrujava de jeito nenhum. Acho que por segurança.
Tally estava confusa. Desde sempre, só havia pensado nos Enferrujados trabalhando nas colmeias gigantes de pedra e tentando escapar naquele último e terrível dia. Nunca se divertindo.
– Vamos lá – disse Shay. – Vamos andar de montanha–russa.
– Como?
– De prancha. – Então Shay olhou para Tally com uma expressão séria. – Mas tem de andar bem rápido. É perigoso se não se mover bem depressa.
– Por quê?
– Você vai ver.
Shay se virou e desceu a montanha–russa, voando um pouco acima dos trilhos. Tally respirou fundo e curvou–se para a frente com vontade. Pelo menos, aquela coisa era feita de metal.
O passeio se revelou muito divertido. Era como um circuito para pranchas flutuantes que havia se materializado. Tinha curvas fechadas e inclinadas, subidas íngremes seguidas de longas descidas e até loops que deixavam Tally de cabeça para baixo, obrigando seus braceletes antiqueda a se ativarem. Era incrível que aquilo estivesse tão bem conservado. Os Enferrujados deviam realmente ter usado um material especial, como Shay dissera.
Os trilhos alcançavam alturas muito maiores do que uma prancha conseguia. Na montanha–russa, Tally podia realmente voar como um pássaro.
A pista terminava em uma curva bem aberta e lenta, formando um círculo até voltar ao início. O último pedaço começava com uma grande subida.
– Passe essa parte bem rápido! – disse Shay, enquanto ia na frente, em alta velocidade.
Tally seguiu a toda, disparando sobre os trilhos estreitos. Ao longe, podia ver as ruínas: torres negras destruídas, à frente das árvores. Atrás de tudo, um brilho prateado que talvez fosse o mar. Estava muito alto!
Ao alcançar o topo, ela ouviu um grito de satisfação. Shay havia desaparecido. Tally curvou–se para acelerar um pouco mais.
De repente, a prancha saiu de seus pés. Simplesmente caiu, deixando–a solta no ar. A pista havia desaparecido.
Tally cerrou os punhos, na expectativa de que os braceletes entrassem em ação e a puxassem para cima pelos pulsos. Mas eles também tinham se tornado inúteis; eram apenas tiras pesadas de metal que a puxavam na direção do chão.
– Shay! – gritou ela, enquanto caía na escuridão. 
Então Tally voltou a ver a estrutura da montanha–russa logo à frente. Só estava faltando um pequeno pedaço da pista.
Num instante, os braceletes a levantaram, e ela sentiu a superfície sólida da prancha tocando seus pés. O impulso a havia levado para o outro lado! A prancha devia ter voado junto, bem abaixo dos seus pés, durante aqueles segundos aterrorizantes de queda livre.
Rapidamente, Tally percorreu a descida, até o ponto em que Shay a esperava.
– Você é doida! – gritou.
– Bem emocionante, hein?
– Não! Por que não me disse que estava quebrada
Shay deu de ombros.
– Para ficar mais divertido?
– Mais divertido? – O coração de Tally batia acelerado, mas sua visão estava estranhamente nítida. Ela sentia muita raiva, alívio e... prazer. – É, talvez sim. Mas mesmo assim você me paga!
Tally desceu da prancha e, com as pernas bambas, caminhou pela grama. Encontrou um pedaço de pedra grande o bastante para servir de banco e se sentou, ainda trêmula. Shay também saltou da prancha.
– Ei, desculpe.
– Foi horrível, Shay. Eu estava caindo.
– Não foi quase nada. Só uns cinco segundos. Pelo que me lembro, você pulou de bungee jump de um prédio.
Tally fuzilou Shay com os olhos.
– É, pulei, mas eu sabia que não ia me espatifar.
– Tudo bem. Olhe só, na primeira vez que me mostraram a montanha–russa, não me contaram que faltava um pedaço. E eu achei bem legal descobrir desse jeito. A primeira vez é sempre a melhor. Queria que você sentisse a mesma coisa.
– Você achou legal cair dali?
– Hum, talvez eu tenha ficado com raiva no início. É, acho que fiquei sim – admitiu Shay, dando um sorriso. – Mas acabei superando.
– Vou precisar de um tempinho para isso, Magrela.
– Fique à vontade.
A respiração de Tally começou a se acalmar, e o coração, aos poucos, parou de tentar sair do seu peito. Mas sua mente continuava tão aberta quanto naqueles segundos de queda livre. Ela se perguntava quem tinha encontrado a montanha–russa e quantos outros feios tinham ido até lá desde então.
– Shay, quem mostrou tudo isso a você?
– Amigos mais velhos. Feios, como nós, que tentam descobrir como as coisas funcionam. E como enganá–las.
Tally olhou para as formas antigas e sinuosas da montanha–russa. E para as trepadeiras que subiam por sua estrutura.
– Imagino há quanto tempo os feios vêm aqui.
– Provavelmente há muito tempo. As coisas são passadas adiante. Sabe, uma pessoa descobre como enganar a prancha, a outra descobre as corredeiras, e a outra chega até as ruínas.
– E aí alguém toma coragem para atravessar o buraco da montanha–russa. – Tally engoliu em seco. – Ou passa por ele sem querer.
– Mas, no fim, todos se tornam perfeitos.
– Final feliz – completou Tally, e viu Shay contrair os ombros. – E como você sabe que essa coisa se chama “montanha–russa”? Procurou em algum lugar?
– Não. Uma pessoa me contou.
– Mas como essa pessoa sabia?
– É um cara. Ele sabe de muita coisa. Truques, histórias sobre as ruínas. Ele é bem legal.
Algo na voz de Shay levou Tally a se virar e a segurar sua mão.
– Mas imagino que agora ele seja perfeito – falou. 
Shay se afastou e roeu uma unha.
– Não, não é.
– Ué, pensei que todos seus amigos...
– Tally, me promete uma coisa? Uma promessa de verdade?
– Acho que sim. Que tipo de promessa?
– Não pode contar a ninguém, nunca, o que vou mostrar a você.
– Desde que não haja nenhuma queda livre envolvida...
– Não.
– Tudo bem, eu prometo. – Tally levantou a mão que levava a cicatriz feita por ela e Peris. – Nunca contarei a ninguém.
Shay examinou os olhos da amiga por um instante, com atenção, até se convencer.
– Certo. Quero que conheça uma pessoa. Hoje.
– Hoje? Mas não vamos estar de volta antes de...
– Ele não está na cidade – disse Shay, sorrindo. – Está aqui.


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