quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 6 (Serie Feios)


PERFEITAMENTE ENTEDIANTE

– Acho que você está pronta.
Tally deslizou até parar. Pé direito abaixado, pé esquerdo levantado, joelhos dobrados.
– Pronta para quê?
Shay passou devagar, deixando o vento empurrá–la. Elas estavam no ponto mais alto e distante que as pranchas podiam levá–las, acima das copas das árvores, nos limites da cidade. Era incrível como Tally havia aprendido rápido a se manter no alto sem nada além de uma prancha e braceletes para evitar uma queda monumental.
A vista lá de cima era espetacular. Ao fundo, as torres de Nova Perfeição erguiam–se do meio da cidade. Em torno, havia um cinturão verde, um pedaço de floresta que separava os perfeitos de meia–idade e idosos dos jovens. As gerações mais velhas viviam nos subúrbios, escondidas pelas montanhas, em casas separadas por jardins particulares em que as crianças podiam brincar.
Shay sorriu:
– Está preparada para um passeio noturno?
– Ahn, olha, não sei se quero atravessar o rio outra vez
– respondeu Tally, lembrando–se da promessa feita a Peris. Ela e Shay se divertiram muito naquelas três semanas, mas não haviam retomado a Nova Perfeição desde a noite em que se conheceram. – Antes de nos transformarmos, é claro. Depois da última vez, os guardas devem estar.
– Não estou falando de Nova Perfeição – interrompeu Shay. – Aquele lugar é um saco mesmo. Teríamos de ficar escondidas a noite inteira.
– Ah, então vamos só passear por Vila Feia?
Ainda se deixando levar pelo vento, Shay balançou a cabeça.
– Aonde mais podemos ir? – perguntou Tally, se ajeitando sobre a prancha, meio incomodada.
Shay enfiou as mãos nos bolsos e abriu os braços, transformando sua jaqueta numa vela. O vento a empurrou para mais longe. Num ato reflexo, Tally inclinou os pés, para poder acompanhá–la.
– Bem, podemos ir para lá – disse Shay, apontando para uma área vasta a sua frente.
– Os subúrbios? Aquilo ali é a chatolândia.
– Os subúrbios, não. Depois deles.
Então Shay deixou os pés escorregarem em direções opostas, até as extremidades da prancha. Sua saia aparou o vento frio da noite, o que a fez se afastar numa velocidade ainda maior. Estava seguindo para além do cinturão verde. Fora dos limites.
Tally ajeitou os pés e acelerou a prancha até emparelhar com a amiga.
– Do que está falando? Sair completamente da cidade?
– É isso aí.
– Isso é maluquice. Não há nada para lá.
– Há muita coisa. Árvores de verdade, de centenas de anos. Montanhas. E as ruínas. Já foi lá?
– Claro – respondeu Tally, hesitante.
– Não estou falando de passeios da escola, Tally. Você já foi lá à noite?
A prancha de Tally parou subitamente. As Ruínas de Ferrugem eram os restos de uma cidade antiga, uma vasta lembrança da época em que havia gente demais e todo mundo era incrivelmente idiota. E feio.
– Não, de jeito nenhum. Não me diga que você já foi. 
Shay confirmou. Tally ficou surpresa.
– Não acredito.
– Acha que é a única pessoa que conhece truques legais?
– Tudo bem, talvez eu acredite – cedeu Tally. Shay tinha aquele olhar, aquele que Tally aprendera a respeitar. – Mas e se formos pegas?
– Tally, não há nada por lá. Você mesma disse. Nada e ninguém para nos pegar.
– As pranchas funcionam nesse lugar? Alguma coisa funciona?
– As especiais funcionam. Basta saber como alterá–Ias e por onde voar. E é fácil passar pelos subúrbios. É só seguir o rio pelo caminho todo. Mais para cima tem a água branca, forte demais para os barcos.
Tally não conseguia fechar a boca.
– Você realmente já fez isso.
Uma rajada de vento soprou na jaqueta de Shay e a levou para longe. Ela sorria. Tally teve de botar a prancha em movimento para continuar a conversa. Sentiu a copa de uma árvore tocar seus pés. A superfície estava ficando mais alta.
– Vai ser divertido – gritou Shay.
– Parece muito arriscado.
– Ah, dá um tempo. Quero mostrar isso a você desde que nos conhecemos. Desde que me contou que tinha entrado numa festa de perfeitos... e disparado um alarme de incêndio!

Tally desejou ter contado a história toda a Shay. Que aquilo havia simplesmente acontecido. Agora Shay parecia achar que ela era a garota mais destemida do mundo.
– Sabe, o negócio do alarme foi meio que um acidente.
– Ah, claro que foi.
– Talvez devêssemos esperar. Só faltam dois meses agora.
– Ah, isso mesmo. Mais dois meses e estaremos presas do outro lado do rio. Uma vida perfeita e entediante.
– Não acho que seja entediante, Shay.
– Fazer o que as pessoas esperam que você faça é sempre entediante. Não consigo pensar em nada pior do que ser obrigada a me divertir.
– Eu consigo – disse Tally. – Não me divertir nunca.
– Escuta, Tally, estes dois meses são nossa última chance de fazer algo realmente legal. De sermos nós mesmas. Depois que nos transformarmos, seremos novas perfeitas, perfeitas de meia–idade, perfeitas idosas. – Shay baixou os braços, e sua prancha parou. – E, finalmente, perfeitas mortas.
– Melhor do que feias mortas – rebateu Tally.
Shay deu de ombros e abriu a jaqueta de novo para navegar. Não faltava muito para chegarem ao fim do cinturão verde. Logo ela receberia um alerta, e a prancha começaria a falar.
– Além disso – insistiu Tally –, só porque vamos passar pela cirurgia não quer dizer que não vamos mais poder fazer coisas deste tipo.
– Acontece que os perfeitos nunca fazem, Tally. Nunca.
Tally suspirou e curvou os pés novamente para ir atrás da amiga.
– Talvez isso aconteça porque eles têm coisas melhores para fazer do que brincadeiras de criança. Talvez curtir festas na cidade seja melhor que perder tempo num monte de ruínas antigas.
– Ou talvez, depois que eles quebram e esticam seus ossos até alcançar o formato ideal, depois que arrancam seu rosto e raspam a pele, depois que enfiam maçãs do rosto plásticas na sua cara para que você fique igual a todo mundo... talvez, depois disso tudo, você simplesmente não seja mais tão interessante.
As palavras de Shay fizeram Tally vacilar. Ela nunca tinha ouvido uma descrição da cirurgia como aquela. Nem na aula de biologia, quando os detalhes da operação eram relatados, a coisa parecia tão ruim.
– Não é assim. Não vamos nem perceber. Passamos o tempo todo tendo sonhos perfeitos.
– É, claro.
De repente, uma voz invadiu a cabeça de Tally: “Atenção, área restrita.” Com o sol mais baixo, o vento estava ficando gelado.
– Vamos, Shay, vamos voltar. Está quase na hora do jantar.
Shay sorriu, discordando, e pegou seu anel de interface. Agora não ouviria mais os alertas.
– Não, esta é a noite. Você está voando quase tão bem quanto eu.
– Shay.
– Venha comigo. Vou lhe mostrar uma montanha–russa.
– O que é uma... 
“Segundo alerta. Área restrita.”
Tally parou a prancha.
– Se você continuar, Shay, vai acabar sendo pega e não vamos fazer nada hoje à noite.
Sem dar ouvidos à amiga, Shay deixou o vento levá–la para longe.
– Tally, só quero mostrar o que eu considero divertido. Antes de nos tornarmos perfeitas e termos a mesma ideia de diversão que todos os outros.
Tally não se conformava. Queria dizer que Shay já tinha lhe ensinado a voar de prancha, a coisa mais legal que aprendera na vida. Em menos de um mês, acreditava que ela e Shay eram melhores amigas. Lembrava de quando tinha conhecido Peris, quando os dois eram crianças, e tinha percebido quase imediatamente que ficariam juntos para sempre.
– Shay... – tentou uma última vez.
– Por favor.
– Tudo bem.
Shay baixou os braços e os pés para que a prancha parasse.
– Sério? Esta noite?
– Sim. Ruínas de Ferrugem.
Tally dizia a si mesma para relaxar. Não era nada de mais. Estava sempre violando as regras, e todo mundo visitava as ruínas uma vez por ano, nas excursões da escola. Não havia perigo ou qualquer outra ameaça.
Shay voltou bem rápido, passou ao lado de Tally e botou um braço em torno da amiga.
– Espere até ver o rio.
– Você disse Que tem água branca?
– Isso.
– E o que seria exatamente?
– Água – respondeu Shay, sorrindo. – Só que muito, muito mais legal.


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