quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 4 (Série Feios)


CAINDO EM SI

Tally caiu. De novo.
Dessa vez, porém, o tombo não doeu tanto. Na mesma hora em que seus pés escorregaram da prancha, ela relaxou, exatamente como Shay tinha ensinado. Rodopiar não era muito pior do que ser balançada pelos braços quando era criança.
Claro, se seu pai fosse uma criatura sobre–humana tentando arrancar seus braços.
De qualquer maneira, Shay havia explicado que a energia cinética tinha de ir para algum lugar. E ficar girando era melhor do que ser lançada contra uma árvore. Ali, no Parque Cleópatra, havia muitas.
Depois de alguns rodopios, Tally sentiu que estava sendo baixada até a grama, segura pelos pulsos. Tonta, mas inteira.
Shay disparou para cima, inclinando a prancha até parar elegantemente, como se tivesse nascido naquela coisa.
– Já está um pouco melhor.
– Não me senti nem um pouco melhor.
Tally tirou um dos braceletes antiqueda e esfregou o pulso. Estava ficando vermelho. Seus dedos pareciam sem força.
O bracelete era pesado e duro porque continha metal. Afinal, funcionava com magnetismo, como as pranchas. Toda vez que os pés de Tally escorregavam, os braceletes flutuavam e freavam a queda, como um gigante bondoso a segurando e afastando do perigo.
Pelos pulsos. De novo.
Tally arrancou o outro bracelete e esfregou a pele.
– Não desista. Você quase conseguiu! – gritou Shay. 
Depois de voltar sozinha, a prancha de Tally parou na altura de seus tornozelos, como um cachorro arrependido. Ela cruzou os braços para esfregar os ombros.
– Quase consegui ser dividida em duas, né? – disse Tally.
– Impossível. Já escorreguei mais do que um copo de leite numa montanha–russa.
– Numa o quê?
– Esquece. Vamos lá, mais uma tentativa.
Tally suspirou. Não eram só os pulsos. Os joelhos também doíam, por causa das freadas bruscas, das curvas em alta velocidade que faziam seu corpo pesar uma tonelada. Shay chamava aquilo de “alta gravidade”, um fenômeno que ocorria sempre que um objeto veloz mudava de direção.
– Andar de prancha parece divertido. Poder voar como um pássaro. Mas a prática exige muito esforço – lamentou Tally.
– Ser um pássaro também deve exigir muito esforço. Sabe, esse negócio de bater as asas o dia inteiro – respondeu Shay, dando de ombros.
– Pode ser. Fica mais fácil com o tempo?
– Para os pássaros, não sei. Em cima de uma prancha, com certeza.
– Espero que fique mesmo.
Tally fechou os braceletes e subiu na prancha, que balançou um pouco sob seu peso, como uma plataforma de saltos ornamentais.
– Verifique o sensor na cintura – orientou Shay.
Tally tocou seu cinto, onde Shay tinha prendido um pequeno sensor que informava à prancha a posição do centro de gravidade e para que lado o passageiro estava. Analisava até os músculos do estômago, que, aliás, costumavam se contrair com a aproximação das curvas. A prancha era tão inteligente que conseguia aprender, gradualmente, como um corpo reagia. Quanto mais Tally praticasse, mais fácil seria manter o equipamento sob seus pés.
Evidentemente, Tally também tinha de aprender. Shay não parava de dizer que, se os pés não estivessem no lugar certo, nem a prancha mais inteligente do mundo poderia ajudar. A superfície era toda irregular, para gerar atrito, mas ainda assim era fácil escorregar.
A prancha tinha formato oval, media metade da altura de Tally e era preta, com manchas prateadas, lembrando a pele de um leopardo – o único animal do mundo capaz de correr mais rápido do que uma prancha consegue voar. Era a primeira prancha de Shay e nunca havia sido enviada para reciclagem, Ficava pendurada na parede ao lado da sua cama.
Tally estalou os dedos, dobrou os joelhos enquanto subia no ar e depois se curvou para ganhar velocidade. Shay seguia um pouco atrás dela.
Em pouco tempo, estavam passando pelas árvores, que chicoteavam os braços de Tally com seus ramos afiados. A prancha não permitiria que ela batesse em objetos sólidos, mas não se preocupava com galhos.
– Estique os braços. Mantenha os pés separados! – gritou Shay, pela milésima vez.
Insegura, Tally botou o pé esquerdo à frente. Nos limites do parque, inclinou–se para a direita, fazendo a prancha iniciar uma longa curva. Dobrou os joelhos e sentiu a força da manobra que a levaria de volta ao ponto de partida.
Agora Tally avançava na direção das bandeiras de slalom. À medida que se aproximava, ia se agachando. Podia sentir o vento ressecando seus lábios e levantando seu rabo de cavalo.
– Ai, meu Deus – murmurou.
Depois de passar pela primeira bandeira, ela se curvou toda para a direita, esticando os braços para se equilibrar.
– Agora troca! – gritou Shay.
Tally contorceu o corpo para mudar a direção da prancha e contornar a bandeira seguinte. Assim que a superou, repetiu a manobra. Seus pés, contudo, estavam muito próximos. De novo, não! Seus sapatos escorregaram na superfície da prancha.
– Não!
Ela curvou os pés e agitou os braços na tentativa de se manter sobre a prancha. O pé direito deslizou até a beirada – podia ver sua silhueta contra as árvores.
As árvores! Estava quase de lado, com o corpo paralelo ao chão.
Passou por mais uma bandeira e, de repente, estava terminado. A prancha voltou para baixo de Tally para corrigir a trajetória.
Ela tinha feito a curva!
Tally virou–se para Shay.
– Eu consegui! – gritou. 
E então caiu.
Desorientada pela virada, a prancha tentara fazer uma curva e acabou derrubando a passageira. Tally relaxou os braços para que pudessem se esticar com mais facilidade. O mundo girava ao seu redor. Ela ria durante a descida até a grama, pendurada pelos braceletes.
Shay também ria.
Quase conseguiu – corrigiu.
– Não, eu passei pelas bandeiras, você viu!
– Tudo bem, tudo bem, você conseguiu. – Shay continuava rindo enquanto pulava na grama. – Mas não fique dançando desse jeito. Não é legal, Vesguinha.
Tally mostrou a língua. Durante a semana, aprendera que Shay só se chamassem pelos nomes verdadeiros na maior parte do tempo, e Tally logo se acostumou. Na verdade, preferia assim. Ninguém além de Sol e Ellie – seus pais – e alguns professores afetados a chamavam de “Tally”.
– Seu desejo é uma ordem, Magrela. Foi ótimo – disse Tally, caindo na grama. Seu corpo inteiro doía, e todos os seus músculos estavam exaustos. – Obrigada pela aula. Voar é a melhor coisa que existe.
Shay sentou–se perto dela.
– Ninguém fica entediado numa prancha.
– Não me sinto tão bem desde que...
Tally não chegou a dizer o nome. Em vez disso, olhou para o céu, espetacularmente azul. Um céu perfeito. Elas tinham começado o treino já no meio da tarde. Lá em cima, algumas nuvens apresentavam tons de rosa, embora ainda faltassem algumas horas para o pôr do sol.
– É isso aí – disse Shay. – Eu também não. Estava enjoada de sair sozinha.
– Quanto tempo falta para você? 
A resposta foi imediata:
– Dois meses e vinte e seis dias.
– Tem certeza? – perguntou Tally, surpresa.
– É claro que tenho certeza.
Aos poucos, um grande sorriso tomou conta do rosto de Tally. Ela deixou o corpo cair na grama e começou a rir.
– Só pode ser brincadeira. Nascemos no mesmo dia!
– Não acredito.
– Pode acreditar. É ótimo: nós duas ficaremos perfeitas juntas!
Shay manteve–se em silêncio por um instante antes de responder.
– É, acho que sim.
– No dia nove de setembro, certo? – perguntou Tally, e Shay confirmou. – Que maneiro. Não sei se eu aguentaria perder outro amigo. Não precisamos nos preocupar com uma de nós abandonando a outra. Nem por um único dia.
Shay arrumou o tronco. Seu sorriso tinha sumido.
– Eu não faria isso de qualquer maneira – falou.
– Não quis dizer que faria, mas...
– Mas o quê?
– Mas, quando você se torna perfeita, vai para Nova Perfeição.
– E daí? Os perfeitos têm permissão para vir aqui. E para escrever.
– Eles nunca fazem isso – disse Tally impaciente.
– Eu faria – disse Shay.
Ela olhou para as torres de festa no outro lado do rio e mordeu a unha do dedão.
– Eu também, Shay. Eu viria aqui para ver você.
– Tem certeza?
– Tenho. Sério.
Sem querer dar muita importância àquilo, Shay deitou de novo para observar as nuvens.
– Que bom. Mas você não é a primeira pessoa a fazer esse tipo de promessa.
– É, sei disso.
As duas permaneceram em silêncio por um tempo. As nuvens se moviam lentamente no céu. O ar foi ficando mais frio. Tally pensou em Peris; tentou se lembrar da aparência dele quando era conhecido apenas como Nariz. Por alguma razão, ela não conseguia mais visualizar seu rosto feio. Era como se os poucos minutos diante de sua versão perfeita tivessem apagado uma vida inteira de lembranças. Tudo que via agora era o Peris perfeito. Seus olhos, o sorriso.
– Fico imaginando por que eles nunca voltam – disse Shay. – Nem para uma visita.
– Porque somos feias, Magrela. Por isso.

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