quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 34 (Serie Feios)


VIVEIRO DE COELHOS

Eles a levaram até o viveiro de coelhos, onde havia cerca de quarenta Enfumaçados sentados, de mãos atadas, isolados pela cerca de arame. Uns dez Especiais formavam um cordão, observando os prisioneiros sem qualquer expressão definível. Na entrada da vila, alguns coelhos saltavam sem rumo, surpresos demais com a liberdade repentina para fugir.
O Especial responsável pela captura de Tally a conduziu à área mais distante do portão, onde um punhado de Enfumaçados de narizes ensanguentados e olhos roxos se amontoava.
– Resistência armada – informou aos dois perfeitos cruéis que vigiavam aquele canto do cercado, antes de jogá–la no chão, como os outros.
Tally caiu de costas, e seu peso tornou a pressão das algemas em seus pulsos ainda mais dolorosa. Ao tentar se levantar, ela sentiu um pé em suas costas, empurrando–a para cima. De início, achou que fosse um Especial, mas na verdade era um dos outros Enfumaçados, dando uma ajuda da única forma possível naquela situação. Ela acabou conseguindo se sentar, de pernas cruzadas.
Os Enfumaçados feridos em volta dela sorriram timidamente para encorajá–la.
– Tally – sussurrou alguém.
Virar na direção da voz exigiu mais esforço. Quando conseguiu, Tally viu que se tratava de Croy. Ele tinha um corte acima do olho, com sangue escorrendo pela bochecha, e o outro lado do seu rosto estava coberto de terra. Arrastando–se, chegou mais perto dela.
– Você resistiu? É, acho que eu estava enganado a seu respeito.
Tally só conseguia tossir. Ainda havia restos de pimenta flamejante em seus pulmões, como fagulhas de um incêndio que nunca se apagava. Seus olhos também continuavam lacrimejando.
– Percebi que não acordou na chamada para o café da manhã – prosseguiu ele. – Depois, quando os Especiais apareceram, achei que era um momento muito conveniente para sumir.
Balançando a cabeça, ela forçou as palavras a saírem, apesar das cinzas em sua garganta.
– Estive fora, com David, até tarde. Foi por isso.
Falar fazia sua mandíbula machucada doer.
– Eu não o vi a manhã inteira – disse Croy.
– Sério? – Tally piscava para se livrar das lágrimas. – Talvez ele tenha escapado.
– Duvido que alguém tenha. – Croy apontou com o queixo para a entrada do viveiro. Um grande grupo de Enfumaçados estava chegando, escoltado por uma equipe de Especiais. Entre eles, Tally reconheceu alguns rostos de pessoas que haviam participado da resistência no refeitório. – Estão acabando a limpeza agora.
– Viu Shay por aí?
– Ela estava no café da manhã quando eles atacaram. Mas depois a perdi de vista.
– E o Chefe?
Ele olhou em volta antes de responder.
– Também não.
– Acho que ele escapou. Nós tentamos fugir juntos.
– Que engraçado – disse Croy, com um sorriso malicioso. – Ele sempre disse que não se importaria se fosse capturado. Tinha algo a ver com uma plástica.
Tally conseguiu sorrir. Logo em seguida, porém, lembrou–se das lesões cerebrais que acompanhavam a transformação em perfeito. Sentiu um arrepio ao tentar imaginar quantos dos capturados sabiam o que realmente os esperava.
– É, o Chefe pretendia se entregar, para me ajudar a fugir, mas eu não conseguiria atravessar a floresta.
– Por que não?
– Estava sem sapatos – respondeu, mexendo os dedos dos pés.
– Escolheu o dia errado para dormir além da hora.
– Acho que sim.
Do lado de fora do viveiro latado, os recém–chegados eram organizados em grupos. Uma dupla de Especiais andava pelo cercado, passando um leitor nos olhos dos Enfumaçados presos e os levando para fora, um por um.
– Devem estar separando as pessoas por cidade – disse Croy.
– Por quê?
– Para nos levar de volta para casa.
– Casa – repetiu Tally.
Na noite anterior, aquela palavra ganhara novo sentido em sua vida. E agora sua casa estava destruída. Tudo que havia à sua volta era um monte de ruínas em chamas – e controladas pelos Especiais.
Ela procurou por Shay e David entre os presos. Os rostos familiares no grupo estavam abatidos, sujos, destruídos pelo choque e pela derrota. Mas Tally percebeu que não os considerava mais feios. Eram os semblantes frios dos Especiais, por mais bonitos que fossem, que ela achava horríveis agora.
Uma confusão atraiu sua atenção. Três dos invasores carregavam uma pessoa que se debatia, com mãos e pés atados, dentro do viveiro. Eles foram direto ao canto reservado aos que ofereciam resistência e a jogaram no chão.
Era Shay.
– Fiquem de olho nesta aqui.
Os dois Especiais de guarda examinaram a figura que ainda se agitava.
– Resistência armada? – perguntou um deles.
Houve silêncio por um instante. Tally notou que um dos Especiais tinha uma marca no rosto perfeito.
– Sem armas. Mas ela é perigosa.
Os três deixaram a prisioneira para trás e partiram com uma pressa que perturbava sua graça de perfeitos.
– Shay! – chamou Croy.
Ela rolou para perto deles. Tinha o rosto vermelho. Os lábios inchados sangravam. Quando cuspiu, o que se viu no chão empoeirado foi uma gosma manchada de sangue.
– Croy – conseguiu dizer.
Então ela percebeu a presença de Tally.
– Você, sua...
– Ahn, Shay... – tentou intervir Croy.
– Você é a culpada por isso! – Seu corpo se debatia como uma cobra no momento da morte. – Não bastava roubar meu namorado? Tinha de trair a todos na Fumaça?!
Tally fechou os olhos. Aquilo não podia ser verdade. Ela havia destruído o pingente. O fogo tinha queimado tudo.
– Shay! – disse Croy. – Fique calma. Olhe bem para ela. Tally lutou contra eles.
– Está cego, Croy? Olhe ao seu redor! Foi ela que provocou isso!
Depois de respirar fundo, Tally se obrigou a encarar Shay. Os olhos da amiga estavam tomados de ódio.
– Shlay, eu juro, não fui eu. Eu não... – disse, com a voz sumindo.
– Quem mais poderia tê–los trazido aqui?
– Eu não sei.
– Não podemos culpar uns aos outros, Shay – afirmou Croy. – Pode ter sido qualquer coisa. Uma imagem de satélite. Uma missão de busca.
– Ou uma espiã.
– Quer olhar para ela, Shay? Ela está amarrada como nós. Ela tentou resistir!
Shay fechou os olhos com força e balançou a cabeça.
Os dois Especiais com o leitor ótico tinham chegado ao canto dos que haviam resistido. Um se aproximou, cautelosamente, enquanto o outro observava de trás.
– Não queremos lhes fazer mal. Mas faremos se for necessário – disse a mulher. Ela segurou o queixo de Croy e lançou a luz em seu olho. Em seguida, analisou o resultado.
– Outro dos nossos.
O especial que a acompanhava franziu a testa.
– Não sabia que tínhamos tantos fugitivos – comentou.
Os dois puseram Croy de pé e o levaram para junto do maior grupo de Enfumaçados, que estava reunido no lado de fora. Tally mordeu os lábios. Croy era um dos velhos amigos de Shay, o que significava que os dois Especiais eram de sua cidade. Talvez todos os invasores fossem.
Só podia ser coincidência. Não havia como ela ser a responsável por aquilo. Tinha assistido ao pingente queimar!
– Estou vendo que conseguiu levar Croy para o seu lado também – disse Shay.
Os olhos de Tally começaram a se encher de lágrimas, mas dessa vez não por causa da pimenta.
– Olhe para mim, Shay!
– Ele suspeitou de você desde o início. E eu dizia sempre: “Não, Tally é minha amiga. Ela nunca faria qualquer coisa contra mim.”
– Shay, eu não estou mentindo.
– Como conseguiu convencer Croy, Tally? Do mesmo jeito que fez com David?
– Shay, nunca imaginei que pudesse acontecer algo.
– Aonde vocês dois foram ontem?
Pega de surpresa, Tally tentou manter a voz firme.
– Fomos apenas conversar. Contei a ele sobre o cordão.
– E isso levou a noite inteira? Ou você decidiu tentar alguma coisa antes que os Especiais aparecessem? Uma última brincadeira com ele. E comigo.
Tally baixou os olhos.
– Shay...
Uma mão segurou o queixo de Tally e levantou sua cabeça. Ela piscou quando o brilho da luz vermelha atingiu seu olho. A Especial observou o resultado no aparelho.
– Ei, é ela.
Tally balançou a cabeça.
– Não.
O outro Especial conferiu o resultado e teve certeza.
– Tally Youngblood.
Ela não disse nada. Os dois a puseram de pé e tiraram a poeira de suas roupas. 
– Venha conosco. A dra. Cable quer vê–la imediatamente.
– Eu sabia – disse Shay, baixinho.
– Não!
Eles conduziram Tally até o portão do cercado. Ela tentou olhar para trás, pensando em palavras para explicar aquilo.
Do chão, mostrando os dentes ensanguentados, Shay tentou olhar para Tally, mas só conseguiu enxergar seus braços atados. Um momento depois, Tally sentiu suas mãos se soltando. Os Especiais haviam cortado as algemas de plástico.
– Não – repetiu ela, num murmúrio.
Um dos Especiais segurou seus ombros, tentando confortá–la.
– Não se preocupe, Tally. Em breve vai estar em casa.
O outro Especial entrou na conversa:
– Estávamos atrás desse grupo há anos.
– É isso aí. Bom trabalho

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