SEM VOLTA
Eles
ficaram acordados até tarde, conversando sobre as descobertas de Az e Maddy, a
fuga e a descoberta da Fumaça. Depois de muito tempo, Tally resolveu fazer a
pergunta que estava em sua cabeça desde o início:
– Afinal, como vocês dois reverteram a operação? Vocês eram
perfeitos e agora são...
– Feios? – completou Az, sorrindo. – Essa parte foi bem simples.
Somos especialistas no aspecto físico da operação. Quando definimos um rosto
perfeito, usamos um tipo especial de plástico inteligente para modelar os
ossos. Já quando preparamos os perfeitos jovens para entrarem na meia–idade ou
na velhice, adicionamos um produto químico ao plástico, que com isso fica mais
maleável, como argila.
– Eca – reagiu Tally ao imaginar seu rosto amolecendo, de repente,
para que alguém pudesse amassá–lo até obter outro formato.
– Com doses diárias desse produto químico, o plástico vai aos
poucos se derretendo, até ser absorvido pelo corpo. Seu rosto volta ao formato
original. Ou quase.
– Quase?
– Só conseguimos nos aproximar do estado original dos ossos que
sofrem modificações. E não somos capazes de realizar grandes mudanças, como na
altura das pessoas, sem cirurgia. Eu e Maddy mantivemos todos os benefícios não
estéticos da operação: dentes indestrutíveis, visão perfeita, resistência a
doenças. Mas nossa aparência é bem semelhante à que teríamos se não houvéssemos
passado pela operação. Quanto à gordura retirada do corpo, parece bem fácil de
recuperar – concluiu, apalpando a barriga.
– Mas por quê? Como uma pessoa pode querer ser feia?
Vocês eram médicos. Isso quer dizer que não havia nada de errado com seus cérebros,
não é?
– Nossas mentes continuam bem – respondeu Maddy. – Acontece que
queríamos iniciar uma comunidade de pessoas sem lesões, pessoas livres do
pensamento perfeito. Era a única maneira de conhecermos os efeitos reais das
lesões. Por isso, precisávamos reunir um grupo de feios. Pessoas jovens,
recrutadas nas cidades.
Tally começava a compreender.
– Para isso, também tinham de se tornar feios. Senão, quem
confiaria em vocês?
– Aperfeiçoamos o produto químico. Criamos um comprimido para uso
diário. Depois de alguns meses, nossos rostos voltaram às formas originais –
disse Maddy, piscando para o marido. – Para ser sincera, foi um processo
fascinante.
– Deve ter sido. E as lesões? Vocês não podem criar uma pílula
para curá–las também?
Houve silêncio por algum tempo, até que Maddy resolveu responder:
– Não conseguimos encontrar respostas antes da aparição da
Circunstâncias Especiais. Eu e Az não somos neurologistas. Trabalhamos nisso
durante vinte anos, sem sucesso. Contudo, aqui na Fumaça, vimos como
faz diferença permanecer feio.
– Eu também vi – disse Tally, pensando na diferença entre Peris e
David.
– Você entende as coisas bem rápido – comentou Az.
– Mas nós sabemos que existe uma cura – disse David.
– Como assim?
– Tem de existir – confirmou Maddy. – Nossos dados mostravam que
todos apresentavam as lesões após a primeira operação. Isso quer dizer que,
quando alguém acaba numa atividade profissional mais exigente, as autoridades
de alguma maneira curam essa pessoa. As lesões são removidas em segredo, quem
sabe até são corrigidas com uma pílula semelhante à que usamos para os ossos
modelados. O que importa é que o cérebro volta ao normal. Então deve existir
uma cura.
– Vocês vão descobrir um dia – disse David.
– Não dispomos dos equipamentos necessários disse Maddy, num tom
de frustração. – Sequer temos um indivíduo perfeito para estudar.
– Esperem um pouco – interrompeu Tally. – Vocês viviam numa cidade
cheia de perfeitos. E quando se tornaram médicos as lesões desapareceram. Não
notaram a mudança acontecendo?
– É claro que notamos. Estávamos aprendendo como o corpo humano
funcionava e a lidar com a grande responsabilidade de salvar vidas. Mas nada
daquilo parecia uma mudança dentro do nosso cérebro. Parecia apenas uma fase de
amadurecimento.
– Ah, sim. Mas e quando observavam os outros? Como não perceberam
que seus cérebros estavam lesionados?
Az sorriu antes de responder:
– Não tínhamos muita referência, apenas alguns colegas que
pareciam ser diferentes da maioria das pessoas. Mais dedicados. Isso, porém,
não chegava a ser surpreendente. A história mostra que a maioria das pessoas
costuma agir como parte de um rebanho. Antes da operação, havia guerras, ódio
coletivo e devastação. Seja lá qual for o efeito dessas lesões, não é nada
muito distante da humanidade na época dos Enferrujados. Agora somos apenas...
mais fáceis de controlar.
– Ter as lesões virou uma coisa normal – reforçou Maddy. – Todos
estão acostumados aos efeitos.
A lembrança da última visita de Sol e Ellie veio imediatamente à
cabeça de Tally. Seus pais tinham parecido muito seguros, mas, de certa forma,
meio apalermados. A questão era que aquele sempre tinha sido o jeito deles:
sábios e confiantes e ao mesmo tempo desligados de todos os problemas reais da
filha feia. Seria consequência do dano em seus cérebros perfeitos? Para Tally,
aquele era apenas o comportamento normal de qualquer pai.
Seguindo o mesmo raciocínio, a superficialidade e o egocentrismo
eram simplesmente características normais em perfeitos recém–transformados.
Enquanto era feio, Peris ria deles, mas não havia hesitado um segundo em
juntar–se a eles na diversão. Ninguém hesitava. Então como seria possível
distinguir entre o que era resultado da operação e o que era um comportamento
em conformidade com a tradição?
A única forma era construir um mundo inteiramente novo, exatamente
o que Maddy e Az tinham começado a fazer.
TaIly se perguntou o que teria surgido antes: a operação ou a
lesão? A transformação em perfeito seria apenas uma isca para que todos se
submetessem à operação? Ou as lesões seriam meramente um toque final? Talvez a
motivação lógica de todo mundo parecer igual fosse todo mundo pensar igual.
Ela se ajeitou na cadeira. Estava com a vista embaçada e sentia um
aperto no estômago sempre que pensava em Peris, seus pais e todos os outros
perfeitos que conhecia. Até que ponto seriam diferentes dela? Qual seria a
sensação de ser perfeito? O que havia por trás daqueles olhos enormes e traços
deslumbrantes?
– Parece cansada – comentou David.
Tally tentou sorrir. Tinha uma sensação de estar na casa de David
havia dias. Poucas horas de conversa haviam transformado o mundo que conhecia.
– Um pouquinho.
– Acho que é melhor irmos embora, mãe.
– Claro, David – respondeu Maddy. – Está tarde, e Tally tem muitas
novidades para digerir.
Então, Maddy e Az se levantaram, enquanto David ajudava Tally a
fazer o mesmo. A despedida aconteceu numa atmosfera de confusão. Apesar disso,
Tally conseguiu reconhecer, no rosto dos dois, uma expressão que a deixou
chocada: eles sentiam pena dela. Lamentavam que tivesse de ouvir a
verdade e que eles fossem os mensageiros. Passados vinte anos, embora
estivessem acostumados com aquilo, entendiam que era algo terrível de se
descobrir.
Noventa e nove por cento da humanidade tinham sofrido modificações
no cérebro, e poucas pessoas no mundo sabiam exatamente do que se tratava.
–
Agora entende por que eu queria que conhecesse meus pais?
– Acho que sim.
Tally e David seguiam no escuro, subindo o espinhaço para retornar
à Fumaça, sob um céu repleto de estrelas.
– Você podia ter voltado à cidade sem saber de nada disso – disse
David.
A consciência de que estivera bem perto em diversas oportunidades
causou um arrepio em Tally. Na biblioteca, até abrira o pingente, chegando a um
passo de levá–lo ao olho. Se tivesse ido em frente, os Especiais apareceriam em
questão de horas.
– Não pude deixar isso acontecer – completou ele.
– Mas alguns feios voltam à cidade, não voltam?
– É verdade. Eles enjoam de acampar. E ninguém pode obrigá–los a
ficar.
– Vocês deixam eles irem assim? Sem ter a mínima ideia do
significado da operação?
David parou de andar e pôs as mãos nos ombros de Tally. Seu rosto
refletia a angústia que sentia.
– Acontece que também não temos certeza de nada, Tally. O que
aconteceria se contássemos a todos sobre nossas meras suspeitas?A maioria não
acreditaria, mas alguns voltariam imediatamente às cidades para resgatar os
amigos. E, um dia, as cidades descobririam o que andávamos espalhando e
empreenderiam todos os esforços para nos eliminar.
“Já estão fazendo isso”, pensou Tally. Ela se perguntava quantos
outros espiões teriam sido recrutados, à base de contagem, para ir à Fumaça.
Quantas vezes teriam chegado perto de descobrir tudo? Queria contar a David o
que estava acontecendo, mas como faria aquilo? Não podia revelar que era uma
espiã, ou David nunca mais confiaria nela.
Ela suspirou. Aquela seria a maneira perfeita de se impedir de
ficar entre David e Shay.
– Não parece muito feliz – disse David.
Tally apenas esboçou um sorriso. Ele havia partilhado seu maior
segredo com ela, e era o momento de retribuir o gesto. No entanto, Tally não
conseguia reunir a coragem para pronunciar as palavras.
– É que a noite foi longa. Só isso.
– Não se preocupe. Já está acabando.
Tally quis saber quanto tempo faltava para amanhecer. Em poucas
horas, estariam tomando café da manhã com Shay, Croy e todos os outros que ela
quase traíra, quase condenara à operação. Aquele pensamento a deixou
cabisbaixa.
– Ei – disse David, levantando seu rosto. – Você se saiu muito bem
hoje. Acho que meus pais ficaram bem impressionados.
– Ahn? Você diz... comigo?
– É óbvio, Tally. Você entendeu na hora o significado de tudo
isso. A maioria das pessoas, no início, não consegue acreditar. Elas dizem que
as autoridades nunca seriam tão cruéis.
– Não se preocupe. Eu acredito – disse Tally esboçando um sorriso.
– Exatamente. Já vi muitos jovens das cidades virem para cá. Você
é diferente de todos. Enxerga o mundo com clareza, mesmo tendo crescido cheia
de mimos. Era por isso que eu precisava te contar. E é por isso... – O rosto de
David estava reluzente de novo, provocando o mesmo efeito estranhamente
perfeito de antes. – É por isso que você é linda, Tally.
As palavras a deixaram atordoada por um instante, exatamente como
a sensação de falta de apoio que ocorria quando se olhava nos olhos de um
perfeito.
– Eu?
– Sim, você.
Ela riu e tentou se situar.
– Como assim? Mesmo com meus lábios finos demais e meus olhos
esquisitos?
– Tally...
– E meu cabelo crespo e meu nariz achatado?
– Não diga essas coisas.
Os dedos de David tocaram o rosto de Tally, agora mal se viam as
marcas dos arranhões, e num segundo desceram até os lábios. Ela sabia que suas
mãos eram cheias de calos duros como madeira. Porém, de alguma forma, suas
carícias se mostravam suaves e delicadas.
– Essa é a pior coisa que eles fazem com você. Com todos vocês –
prosseguiu David. – As lesões são o de menos. O maior estrago é causado antes
mesmo de eles pegarem um bisturi: todos vocês sofrem uma lavagem cerebral para
acharem que são feios.
– Mas nós somos. Todos nós somos.
– Então acha que sou feio?
– Isso é irrelevante – disse Tally, desviando o olhar. – Não é uma
questão individual.
– É, sim, Tally. É totalmente individual.
– O que estou dizendo é que ninguém pode... biologicamente, há
certas coisas que todos nós... – Ela não conseguia completar o raciocínio. –
Acha mesmo que sou bonita?
– Acho.
– Mais do que a Shay? – Os dois ficaram em silêncio sem reação. A
pergunta havia escapado antes que Tally pudesse parar para pensar. Ela própria
não sabia como podia ter dito algo tão terrível. – Desculpe.
– É uma pergunta pertinente – disse David. – Sim.
– Sim o quê?
– Sim, você é mais bonita do que a Shay – respondeu David, num tom
tão natural, que ele poderia estar falando do tempo.
De olhos fechados, Tally sentiu todo o cansaço do longo dia
subitamente tomando conta do seu corpo. Ela visualizou o rosto de Shay:
excessivamente magro e com olhos muito separados. Uma sensação horrível começou
a se manifestar, sobrepujando o afeto partilhado com David.
Durante toda sua vida, ela havia ridicularizado os outros feios,
recebendo um tratamento equivalente em retribuição. Gorducha, Olho–de–siri,
Magrelo, Espinhento, Aberração – todos os nomes que os feios usavam mutuamente,
com empolgação e sem qualquer pudor. Por outro lado, ninguém se sentia excluído
devido a alguma desgraça irrelevante de nascença. Ninguém era considerado mais
ou menos bonito. Não havia privilegiados por uma reviravolta aleatória de
genes. Era por aquela exata razão que eles tornavam todos perfeitos.
Não era justo.
– Não diga isso. Por favor.
– Foi você quem perguntou.
– Mas é terrível! É errado.
– Escute, Tally. Isso não importa para mim. O que importa é o que
está dentro de você.
– Acontece que a primeira coisa que se vê é o rosto. Você reage à
simetria, à cor da pele, ao formato dos olhos. E então decide o que há dentro
de mim, com base nessas reações. Você é programado para agir assim!
– Eu não sou programado. Não fui criado na
cidade.
– Não é só uma questão cultural. É a evolução!
Baixando o tom de voz, David aceitou a derrota.
– Talvez uma parte seja evolução. – Ele deu um sorriso cansado. –
Mas sabe qual foi a primeira coisa que me atraiu em você?
– Qual foi? – perguntou Tally, tentando se manter calma.
– Os arranhões no seu rosto.
– Como é que é?
– Esses arranhões aqui – disse ele, tocando–a novamente.
– Ela tentou ignorar o arrepio provocado pelos dedos de David em
sua pele.
– Que besteira. Uma pele imperfeita é sinal de deficiência no
sistema imunológico.
David não conseguiu evitar o riso.
– É um sinal de que você viveu uma aventura, Tally, e de que se
embrenhou no mato para chegar aqui. Para mim, naquele dia, foi um sinal de que
tinha uma boa história para contar.
– Uma boa história? – Tally balançou a cabeça, sentindo uma grande
vontade de rir. – Na verdade, arranhei meu rosto na cidade, andando de prancha
no meio de umas árvores. Em alta velocidade. Que aventura, hein?
– Mesmo assim, é uma história. Exatamente como eu pensei ao vê–la
pela primeira vez: você aceita correr riscos. – Seus dedos alcançaram um cacho
dos cabelos queimados de Tally. – E continua correndo riscos.
– Acho que sim.
Estar ali na escuridão, ao lado de David, parecia um risco – um
risco de outra reviravolta. Ele permanecia com aquele olhar vagamente perfeito.
Talvez fosse realmente capaz de enxergar além de seu rosto de feia. Talvez o
que havia dentro dela realmente importasse mais para ele do que qualquer outra
coisa.
Tally subiu numa pedra perdida no caminho. Agora seus olhos
encaravam os de David.
– Você acha que eu sou bonita de verdade, não acha?
– Acho. As coisas que você faz e seu jeito de pensar a tornam
bonita.
Um pensamento estranho passou pela cabeça de Tally.
– Eu odiaria se você se submetesse à operação – disse ela, sem
acreditar nas próprias palavras. – Mesmo que eles não mexessem no seu cérebro.
– Caramba, obrigado.
– Não quero que seja igual a todo mundo.
– Achei que esse fosse o sentido de ser perfeito.
– Eu também. – Tally tocou a testa de David, bem onde havia uma
marca clara. – Então, onde arrumou essa cicatriz?
– Numa aventura. É uma história legal. Um dia eu conto para você?
– Promete?
– Prometo.
– Que bom.
Ela se curvou para a frente, encostando seu corpo no dele e,
enquanto seus pés escorregavam da pedra, os dois se beijaram. Imediatamente,
David a abraçou e puxou para mais perto. No frio da madrugada, ela sentia todo
o calor do corpo dele. David era algo concreto e verdadeiro no mundo de
incertezas em que Tally vivia. A intensidade do beijo a surpreendeu.
Um instante depois, ela se afastou para recuperar o fôlego,
pensando como tudo aquilo era inusitado. Os feios costumavam beijar, e muitas
outras coisas, mas havia uma impressão geral de que nada era para valer até que
se tornassem perfeitos.
Aquilo, porém, era para valer.
Ela puxou David para perto de novo e enfiou os braços por dentro
de seu casaco. O frio, os músculos doloridos, a coisa terrível que havia
acabado de descobrir, tudo aquilo só tornava o sentimento mais intenso.
Então uma das mãos de David tocou sua nuca e, em seguida, o
cordão, prosseguindo até encontrar o metal duro e gelado. Tally ficou tensa, e
o beijo foi interrompido.
– E quanto a isto aqui? – perguntou ele.
Tally segurou o pingente, mantendo o outro braço em torno do
pescoço de David. Nunca poderia lhe contar sobre a dra. Cable depois daquilo.
Ele acabaria se afastando, talvez para sempre. O pingente continuava entre os
dois.
De repente, Tally pensou em algo. Algo perfeito.
– Venha comigo.
– Para onde?
– Até a Fumaça. Preciso mostrar uma coisa a você.
Ela o arrastou encosta acima, aos tropeções, até alcançarem o alto
do espinhaço.
– Você está bem? – perguntou ele, sem fôlego. – Eu não queria...
– Estou ótima – disse ela, dando um sorriso largo e olhando para a
Fumaça. Na área central, ardia uma fogueira solitária, em torno da qual a patrulha
noturna se reunia de hora em hora. – Vamos.
Havia se tornado indispensável chegar lá rápido, antes que a
certeza se esvaísse, antes que a sensação calorosa dentro dela desse lugar à
dúvida. Ela desceu afoitamente por entre as pedras pintadas que marcavam o
trilho das pranchas. David se esforçava para não ficar para trás. Quando seus
pés alcançaram o plano, ela começou a correr, ignorando a escuridão e o
silêncio das cabanas nos dois lados, focada exclusivamente na fogueira. Não
aparentava fazer esforço; era como se estivesse na prancha, voando em área
aberta.
Tally só parou de correr quando se deparou com a cortina de calor
e fumaça da fogueira. Na mesma hora, levou as mãos ao pescoço e soltou o cordão
com o pingente.
– Tally? – chamou David, confuso, sem fôlego para falar mais do
que isso.
– Não diga nada. Apenas olhe.
Ela segurou o cordão firmemente, diante da luz avermelhada da
fogueira, e balançou o pingente. Naquele objeto, estavam concentradas suas
dúvidas, seu medo de ser descoberta e o pavor em relação às ameaças da dra.
Cable. Então Tally fechou o pingente em sua mão e apertou o rígido metal até
sentir a mão doer, como se tentasse enfiar na própria cabeça a possibilidade
inimaginável de continuar feia para o resto da vida. Feia e, ao mesmo tempo,
nem um pouco feia.
Em seguida, abriu a mão e jogou o cordão bem no meio da fogueira.
O pingente caiu sobre um galho que estalava. No início, o fogo o
deixou preto, mas logo o coração metálico ficou amarelo e depois branco.
Finalmente, soltou um estalo, como se algo em seu interior tivesse explodido,
caiu do galho e desapareceu entre as chamas.
Com a visão marcada pelas ondas luminosas do fogo, ela se virou
para David. Ele tossia por causa da fumaça.
– Ei, isso foi bem dramático – disse.
– É, acho que foi – admitiu Tally, sentindo–se um pouco boba.
– Pareceu uma atitude muito sincera. Acho que a pessoa que lhe deu
esse presente...
– Não importa mais.
– E se alguém aparecer por aqui?
– Ninguém vai aparecer. Tenho certeza.
David sorriu. Com um abraço, tirou Tally de perto do fogo.
– Muito bem, Tally Youngblood, você com certeza sabe como
demonstrar as coisas. Escute, eu teria acreditado se você apenas me dissesse...
– Não, eu tinha de fazer desse jeito. Tinha de queimar essa coisa.
Para ter certeza.
Ele deu um beijo em sua testa e riu.
– Você é linda.
– Quando você diz isso, eu quase... – sussurrou Tally.
Repentinamente, uma onda de cansaço tomou conta dela, como se suas
últimas energias tivessem sido jogadas na fogueira, com o cordão. Estava
cansada por causa da corrida até ali, por causa da longa noite com Maddy e Az e
por causa do dia duro de trabalho. E, na manhã seguinte, teria de encarar Shay
e explicar o que havia acontecido entre ela e David. Obviamente, assim que
reparasse na ausência do pingente, Shay saberia de tudo.
Pelo menos, ela nunca saberia da verdade. O pingente estava
torrado, sem chance de identificação; seu real propósito permaneceria oculto.
Tally se jogou nos braços de David e fechou os olhos. A imagem do coração
incandescente tinha ficado marcada na sua vista.
Estava livre. A dra. Cable nunca chegaria lá, e ninguém poderia
afastá–la de David ou da Fumaça. Nem fazer em Tally o que a operação fazia no
cérebro dos perfeitos. Ela não era mais uma infiltrada. Enfim, pertencia àquele
lugar.
E estava chorando.
Em silêncio, David a levou até o dormitório. Na porta, ele se
aproximou para beijá–la, mas Tally o afastou. Shay estava lá dentro. As duas
teriam de conversar no dia seguinte. Não seria fácil, mas Tally sabia que,
agora, era capaz de enfrentar qualquer coisa.
David entendeu. Levou um dedo aos lábios e depois ao rosto
arranhado de Tally.
– Nos vemos amanhã – sussurrou.
– Aonde você vai?
– Vou dar uma volta. Preciso pensar.
– Você não dorme?
– Hoje não – respondeu David, sorrindo.
Tally beijou sua mão e
entrou. Jogou os sapatos num canto e se enfiou no saco de dormir sem trocar de
roupa. Caiu no sono em poucos segundos, como se tivesse tirado todo o peso do
dos ombros.
Na
manhã seguinte, ela acordou em meio ao caos, atordoada pelo barulho de gente
correndo, gritos e máquinas invadindo seus sonhos. Pela janela do dormitório,
viu o céu cheio de carros voadores.
A Circunstâncias Especiais tinha acabado de chegar.
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