quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 27 (Serie Feios)


PAIXÃO

Em volta da fogueira, à noite, Tally contou como havia se escondido dentro do rio, quando o helicóptero dos guardiões apareceu pela primeira vez. Como antes, ninguém piscava. Aparentemente, sua viagem até a Fumaça tinha sido uma das mais emocionantes.
– Dá para imaginar? Eu, sem roupa e agachada dentro da água, enquanto a máquina dos Enferrujados destruía meu acampamento!
– Por que eles não pousaram? – perguntou Astrix. – Não viram suas coisas?
– Achei que tivessem visto.
– Os guardiões só recolhem feios no meio das flores brancas – explicou David. – É o ponto de encontro que indicamos aos fugitivos. Se saírem pegando qualquer um, podem acabar, acidentalmente, trazendo um espião até aqui.
– Acho que vocês não iam gostar nada disso, não é? – disse Tally, em voz baixa.
– Mesmo assim, eles deviam tomar mais cuidado com aqueles helicópteros – disse Shay. – Qualquer dia alguém vai acabar virando picadinho.
– Eu que o diga. A ventania quase levou minha prancha embora. Meu saco de dormir voou do chão direto para as hélices. Ficou todo rasgado.
A admiração no rosto da plateia a deixava feliz.
– E onde você dormiu depois?
– Não foi tão complicado. Foi só por uma... – Tally se conteve bem na hora. Tinha passado apenas uma noite sem saco de dormir, mas na história inventada haviam sido noites no meio das orquídeas. – Estava quente o suficiente.
– É melhor arrumar outro saco antes de ir dormir – aconselhou David. – É bem mais frio aqui em cima.
– Eu a levo até o comércio – disse Shay. – É como uma central de pedidos, Tally. A diferença é que, quando você pega alguma coisa, tem de deixar outra em pagamento Tally se remexeu na cadeira, incomodada. Ainda não tinha se acostumado à ideia de ter de pagar pelas coisas.
– Tudo que tenho é EspagBol.
Shay sorriu.
– É perfeito para troca. Fora as frutas, não conseguimos produzir comida desidratada aqui. E viajar carregando comida normal é um saco. O EspagBol vale ouro.


Depois do jantar, Shay levou Tally a uma grande cabana, na área central da vila. As prateleiras estavam repletas de coisas produzidas na Fumaça e alguns poucos objetos oriundos de cidades. Estes, em sua maioria, pareciam gastos e mal conservados. Alguns haviam sido consertados várias vezes. Tally, porém, estava fascinada pelos objetos feitos a mão. Ela passou os dedos doloridos nos potes de argila e ferramentas de madeira, impressionada com as texturas únicas. Tudo tinha uma aparência pesada e... austera.
O lugar também era comandado por um feio mais velho, mas não tão assustador quanto o Chefe. Ele logo apareceu com acessórios de lã e alguns sacos de dormir prateados. Os cobertores, xales e luvas eram bonitos, com cores discretas e padrões simples. Shay, contudo, insistiu para que Tally comprasse um saco de dormir produzido na cidade.
– É mais leve e fica de um tamanho bem pequeno. Será mais útil quando sairmos juntas por aí – justificou.
– Claro – disse Tally, tentando sorrir. – Vai ser ótimo.
Ela acabou trocando doze pacotes de EspagBol por um saco de dormir e mais seis por um suéter feito a mão. Ainda ficou com oito pacotes. Não conseguia acreditar que o suéter, morro com listras vermelhas e detalhes verdes, custasse metade do preço de um saco de dormir gasto e remendado.
– Ainda bem que você não perdeu o purificador de água na viagem – disse Shay, no caminho de volta. – É impossível arranjar um desses.
– E quando eles quebram? – perguntou Tally, surpresa.
– Dizem que você pode beber água dos córregos sem passá–la pelo purificador.
– É brincadeira, né?
– Não. Muitos dos Enfumaçados mais velhos fazem isso. Mesmo os que têm purificadores não se dão ao trabalho de usá–los – contou Shay.
– Que nojo.
– Pode crer. Você pode usar o meu, se precisar.
Tally pôs a mão no ombro de Shay.
 Você também.
Shay reduziu o passo.
– Tally?
– Sim?
– Lá na biblioteca, você ia me dizer alguma coisa antes de o Chefe começar a gritar. – As palavras de Shay pegaram Tally desprevenida. Ela se afastou e, por reflexo, levou a mão ao pingente pendurado em seu pescoço. – Isso mesmo. Alguma coisa sobre o cordão – completou Shay.
Tally assentiu, mas não sabia por onde começar. Ainda não havia ativado o pingente e, desde a conversa com David, sequer sabia se teria coragem para tanto. Talvez, se voltasse à cidade um mês depois, esfomeada e de mãos vazias, a dra. Cable demonstrasse alguma piedade.
Por outro lado, e se a mulher mantivesse a palavra e impedisse Tally de se submeter à operação? Em vinte anos, estaria cheia de rugas e marcas de expressão. Tão feia como o Chefe. Seria uma excluída. Se permanecesse na Fumaça, teria de passar as noites num saco de dormir velho, temendo que um dia seu purificador de água parasse de funcionar.
Estava cansada de mentir para todo mundo.
– Não contei a história toda – disse Tally.
– Eu sei. Mas acho que já entendi. – Surpresa, Tally olhou para a amiga. Não tinha coragem de dizer nada. – É meio óbvio, não é? – prosseguiu Shay. – Está chateada porque quebrou a promessa que me fez. Não guardou segredo em relação à Fumaça. – O queixo de Tally caiu. Shay sorriu e pegou sua mão. – Com seu aniversário mais perto, você decidiu que queria fugir. No meio tempo, conhece uma pessoa. Uma pessoa importante. A pessoa que lhe deu esse cordão de coração. Aí você quebrou a promessa. Contou para essa pessoa aonde estava indo.
– Ahn, mais ou menos isso.
– Eu sabia – disse Shay, soltando um risinho malicioso. – É por isso que anda toda nervosa. Quer ficar aqui, mas ao mesmo tempo gostaria de estar em outro lugar. Com outra pessoa. Antes de sair, você deixou instruções, uma cópia do bilhete, para o caso de sua paixão querer se juntar a nós. Acertei, não acertei?
Tally mordeu os lábios. O rosto de Shay reluzia. Ela estava claramente empolgada por ter descoberto o grande segredo de Tally.
– Bem, você acertou uma parte.
– Ah, Tally. – Shay pôs as mãos nos ombros da amiga. – Está tudo bem. Eu fiz a mesma coisa.
– Como assim?
– Eu não devia contar a ninguém que estava vindo para cá. David tinha me feito prometer que não contaria. Nem a você.
– Por quê?
– Ele não a conhecia. Não tinha certeza se podia confiar em você. Geralmente, fugitivos só recrutam amigos antigos, pessoas com quem aprontaram durante anos. Eu conhecia você desde o início do verão. E nunca havia falado da Fumaça, até o dia anterior à minha partida. Não sabia como reagiria se você dissesse não.
– Então não era para ter me contado?
– De jeito nenhum. Por isso, quando você apareceu aqui, todos ficaram nervosos. Eles não sabem se podem confiar em você . Até David tem agido de um modo estranho comigo.
– Sinto muito, Shay.
– Não é culpa sua! – Shay se mostrava inconformada. – A culpa é minha. Eu estraguei tudo. Mas e daí? Depois que eles conhecerem você, tudo vai ficar bem.
– Acho que sim – disse Tally, baixinho. – Todo mundo tem sido legal.
Ela desejava ter ativado o pingente assim que havia chegado. Agora, depois de um único dia, começava a perceber que não estava traindo apenas o sonho de Shay. Centenas de pessoas tinham construído uma vida na Fumaça.
– E tenho certeza de que seu alguém também é uma pessoa legal. Mal posso esperar até estarmos todos juntos – disse Shay.
– Não sei... se isso vai acontecer.
Tinha de existir uma maneira de resolver aquilo. Talvez se ela fosse para outra cidade... ou se procurasse os guardiões dizendo que queria ser voluntária... talvez a tornassem perfeita. Ela, porém, não sabia quase nada a respeito da cidade deles, além do fato de que não conhecia ninguém por lá.
– Pode ser – disse Shay. – Eu também não tinha certeza de que você viria. Mas estou contente que tenha vindo.
– Mesmo com os problemas que criei? – perguntou Tally, com um sorriso amarelo.
– Não é nada de mais. Acho que o pessoal anda muito paranóico. Passam o tempo todo escondendo o lugar para que os satélites não consigam localizá–Io e camuflando transmissões telefônicas para evitar interceptações. O segredo em relação aos fugitivos também é um exagero. Um exagero perigoso. Se você não fosse esperta o bastante para entender minhas instruções, poderia estar na metade do caminho para o Alasca a esta altura!
– Não sei, não, Shay. Eles devem saber o que estão fazendo. As autoridades da cidade podem ser bem rígidas.
Shay riu do comentário.
– Não vai me dizer que acredita na Circunstâncias Especiais.
– Eu... – Tally fechou os olhos. – Só acho que os Enfumaçados têm de tomar cuidado.
– Claro. Tudo bem. Não estou dizendo que devemos sair contando por aí. Mas, se pessoas como eu e você quiserem vir para cá e levar uma vida diferente, por que não poderiam? Ninguém tem direito de nos dizer que somos obrigados a ser perfeitos, concorda?
– Talvez só estejam preocupados porque somos crianças.
– Esse é o problema das cidades, Tally. Todos são crianças. Mimadas, dependentes e perfeitas. É como dizem na escola: olhos grandes significam fragilidade. É como você me disse, alguma hora é preciso crescer.
– Entendi. Sei que os feios daqui são mais maduros. Dá para ver nas caras deles – admitiu Tally.
Shay segurou a amiga e olhou bem em seus olhos por um segundo.
– Está se sentindo culpada, não está?
Tally devolveu o olhar, sem conseguir falar. No ar frio da noite, sentia–se desprotegida, como se Shay pudesse ver através de suas mentiras.
– Como é que é?
– Culpada. Não só por ter contado a alguém sobre a Fumaça, mas também porque esse alguém pode acabar vindo para cá. Agora que você conhece a Fumaça, não está mais segura de que foi uma boa ideia. – Shay suspirou: – Sei que no início parece esquisito e que há muito trabalho duro por aqui. Mas acho que vai acabar gostando.
Tally baixou a cabeça, sentindo lágrimas nos olhos.
– Não é essa a questão. Ou talvez seja. É que eu não sei se...
As palavras estavam entaladas na garganta. Se continuasse, teria de contar a verdade a Shay: que ela era uma espiã, uma traidora enviada ali para destruir tudo que os cercava. E que Shay era a idiota que a havia levado até lá.
– Ei, calma, está tudo bem. – Shay segurou e acalentou Tally, que começava a chorar. – Desculpe. Não devia ter jogado tudo isso em cima de você de uma vez. É quê tenho me sentido meio distante desde que chegou. Parece que você não quer olhar para mim.
– Eu devia contar tudo a você.
– Shhh. – Os dedos de Shay acariciaram os cabelos de Tally. – Estou feliz com você por perto.
Tally não conteve as lágrimas. Escondeu o rosto na manga desfiada do seu novo suéter e sentiu o calor de Shay a acolhendo. Era tomada por uma terrível culpa a cada gesto de carinho da amiga.
Metade de si estava feliz por ter ido à Fumaça e visto tudo aquilo. Poderia passar a vida inteira na cidade sem conhecer quase nada do mundo. Mas a outra metade ainda desejava que houvesse ativado o pingente imediatamente na chegada à Fumaça. Assim, tudo teria sido muito mais fácil.
Contudo, não havia como voltar no tempo. Ela tinha de se decidir por trair a Fumaça ou não. E estava totalmente ciente das implicações para Shay,David e todos os outros que viviam ali.
– Está tudo bem, Tally – sussurrou Shay. – Vai dar tudo certo.

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