quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 14 (Serie Feios)


FEIA PARA SEMPRE

Os inspetores deviam ter sido avisados sobre sua volta. Todos os outros feios estavam fora, num passeio escolar de última hora. Mas seu retorno não havia sido rápido o suficiente para guardarem suas coisas. Quando Tally chegou ao seu antigo quarto, viu que tudo tinha sido reciclado. Roupas, lençóis, móveis, as fotos no telão – tudo revertido ao padrão Feio Genérico. Parecia até que alguém havia se mudado para lá e partido rapidamente, deixando apenas uma lata estragada de bebida na geladeira.
Tally se sentou na cama, chocada demais até para chorar. Sabia que, em breve, começaria a berrar e provavelmente perderia o controle na hora e no lugar mais inapropriados possíveis. Passado o encontro com a dra. Cable, sua raiva e rebeldia enfraqueciam. Não havia mais nada para lhe dar apoio. Tinha perdido suas coisas, seu futuro. Só lhe restava a vista da janela.
Permaneceu sentada, com o olhar no infinito, lembrando–se a cada cinco minutos de que aquilo realmente havia acontecido: os perfeitos cruéis, os prédios estranhos nos limites da cidade, o terrível ultimato feito pela dra. Cable. A sensação, para Tally, era a de uma brincadeira que tinha dado totalmente errado. Uma nova realidade, esquisita e horrível, havia se revelado e devorado o mundo que ela conhecia e entendia.
Só restava a bolsa preparada para o hospital. Ela nem se lembrava de tê–la carregado de volta. Ao tirar as poucas roupas, enfiadas lá dentro aleatoriamente, encontrou o bilhete de Shay.

Pegue a montanha para além da abertura,
até achar a longa e plana que procura.
O mar é gelado, procure o freio.
Na segunda, cometa um erro feio.
Após quatro dias, pegue o lado desprezado,
e busque nas flores os olhos de uma inseto alado.
Quando encontrá–los, aproveite a jornada.
Depois na cabeça careca espere a alvorada.

Nada daquilo, fora um ou outro pedaço, fazia sentido para ela. Estava claro que Shay queria ocultar o significado de outras pessoas que viessem a ler o bilhete, usando referências que só as duas poderiam entender. Sua paranoia agora parecia bem mais razoável. Depois que conhecer a dra. Cable, Tally compreendia por que David queria manter em segredo sua cidade, acampamento ou o que quer que fosse.
Com o bilhete nas mãos, Tally percebeu que era exatamente aquilo que a dra. Cable queria. A mulher tinha estado do outro lado da sala o tempo todo, mas em momento algum fez uma revista nela. Aquilo significava que o segredo de Shay permanecia a salvo. E que Tally ainda possuía algo para negociar.
Também significava que a Circunstâncias Especiais cometia erros.


Os outros feios retornaram antes do almoço. Enquanto desciam do veículo de transporte escolar, todos esticavam o pescoço, tentando avistar sua janela. Alguns chegaram a apontar, antes que ela decidisse se esconder nas sombras. Momentos depois, Tally ouviu garotos no corredor, fazendo silêncio apenas no momento de passar por sua porta. Alguns até soltaram risadinhas – um hábito dos novos feios quando tentam ficar quietos.
Estariam rindo dela?
O ronco do seu estômago lembrou Tally de que não havia tomado café da manhã. Na verdade, nem havia jantado na noite anterior. Não se podia ingerir alimentos ou águas 16 horas antes da operação. Ela estava faminta.
Apesar disso, permaneceu no quarto até passar o horário do almoço. Não seria capaz de entrar no refeitório cheio de feios, que acompanhariam cada um de seus movimentos e imaginariam o que teria feito para merecer continuar com aquele rosto feio. Finalmente, quando não suportou mais a fome, Tally subiu em silêncio até o terraço, onde deixavam sobras para quem quisesse.
Alguns feios a viram no corredor. Eles se calaram e abriram passagem para Tally, como se ela fosse uma pessoa contaminada. O que os inspetores teriam dito? Que ela havia exagerado nas brincadeiras? Que não podia ser operada, que seria feia para o resto da vida? Ou simplesmente que era uma Circunstância Especial?
Em todo lugar em que botava os pés, os olhares se desviavam. Mas ela nunca havia se sentido tão visível.
Um prato foi largado no terraço, envolto em filme plástico e com seu nome escrito. Alguém tinha percebido que ela não comera. E não era muito difícil notar que estava se escondendo.
A imagem do prato de comida, murcho e solitário, levou lágrimas reprimidas a jorrarem de seus olhos. Ao engolir, Tally sentiu uma dor na garganta, como se tivesse ingerido um objeto afiado. Era tudo que podia fazer para voltar logo ao quarto, antes de explodir em soluços.
Ao chegar, Tally percebeu que não tinha se esquecido de trazer o prato. Ela comia e chorava, sentindo o gosto salgado das lágrimas em cada pedacinho.


Seus pais apareceram cerca de uma hora depois.
Ellie entrou primeiro, dando–lhe um abraço que a deixou sem ar e tirou seus pés do chão.
– Tally, minha pobre garotinha!
– Ei, não vá machucar a menina, Ellie. Ela teve um dia difícil.
Mesmo sem oxigênio, a sensação transmitida por aquele abraço apertado era boa. Ellie tinha sempre o cheiro certo, cheio de mãe, e Tally sempre se sentia como uma criança em seus braços. Livre depois de um minuto, o que não parecia ser o bastante, Tally recuou, na esperança de não voltar a chorar. Encarou os pais, imaginando o que estariam pensando. Sentia–se um completo fracasso.
– Não sabia que você vinham – disse.
– É claro que viríamos – respondeu Ellie.
– Nunca ouvi falar de algo desse tipo – disse Sol, balançando a cabeça. – É ridículo. Vamos descobrir o que houve, não se preocupe.
Tally sentia–se como se um peso fosse tirado de seus costas. Finalmente alguém estava do seu lado. Os olhos de meia idade de seu pai transmitiam uma segurança serena. Não havia dúvida de que ele resolveria tudo.
– O que disseram a vocês? – perguntou Tally.
Sol fez um gesto, e ela se sentou na cama. Ellie se acomodou ao seu lado, enquanto o pai caminhava de um lado ao outro do quarto apertado.
– Bem, eles nos contaram a respeito dessa garota, Shay. Parece que ela é bem problemática.
– Sol! – interveio Ellie. – A pobre menina está desaparecida.
– Parece que ela quis desaparecer.
A mãe não respondeu.
– Não é culpa dela, Sol – disse Tally. – Ela só não queria se tornar perfeita.
– Então ela é uma pensadora independente. Ótimo. Só que devia ter o bom senso de não arrastar outra pessoa para o buraco com ela.
– Ela não me arrastou a lugar algum. Estou bem aqui. – Tally olhou pela janela para a paisagem familiar de Nova Perfeição. – Onde, pelo visto, vou ficar para sempre.
– Bem... – voltou a falar Ellie. – Eles disseram que assim que você decidir ajudá–los a encontrar essa Shay, tudo poderá prosseguir normalmente.
– Não fará a menor diferença se a operação acontecer com alguns dias de atraso. Será uma história e tanto para contar quando for mais velha – observou Sol, sorrindo.
– Não sei se posso ajudá–los – disse Tally.
– Faça o máximo que puder – sugeriu Ellie.
– Mas não posso. É que prometi a Shay que não contaria sobre seus planos a ninguém.
Todos permaneceram em silêncio por alguns instantes.
Sol se sentou e segurou a mão de Tally. Ele tinha mãos quentes e fortes, quase tão enrugadas quanto as de um idoso, devido ao trabalho na carpintaria. Tally lembrou que não visitava os pais desde a semana de férias no verão, quando mal tinha conseguido controlar a ansiedade de voltar e passar mais tempo ao lado de Shay. Mas agora a sensação de voltar a vê–los era boa.
– Tally, todos fazemos promessas quando somos crianças. É parte e ser feio. Tudo parece emocionante, intenso e importante. Mas é preciso crescer. Afinal, você não deve nada a essa garota. Ela só criou problemas para você.
Ellie segurou sua outra mão.
– E, na verdade, você a estará ajudando, Tally. Quem pode dizer onde ela está neste momento e pelo que está passando? Estou surpresa por tê–la deixado fugir dessa maneira. Não sabe como é perigoso por aí?
Tally se pegou concordando. As expressões de Sol e Ellie tornavam tudo tão claro. Talvez colaborar com a dra. Cable realmente pudesse ajudar Shay e botar as coisas de volta no lugar para ela própria. Porém, a simples lembrança da dra. Cable a fez estremecer.
– Vocês deviam ter visto aquelas pessoas. Sabem, as que estão atrás de Shay. Elas parecem...
Sol deu uma risada.
– Tally, embora seja meio chocante na sua idade, nós, os mais velhos, conhecemos a Circunstâncias Especiais. Eles podem ser duros, mas estão apenas fazendo o que deve ser feito, entende? O mundo lá fora também é muito duro.
Tally suspirou. Talvez estivesse relutante só por ter ficado tão assustada com aqueles perfeitos esquisitos.
– Vocês já viram de perto? A aparência deles é inacreditável.
– Não posso dizer que já vi um de perto – respondeu Ellie.
Sol franziu a testa e, em seguida, começou a rir.
– Bem, Ellie, você não vai querer conhecer um deles. E Tally, se fizer a coisa certa agora, provavelmente nunca mais terá de se encontrar com eles. Ninguém precisa passar por isso à toa.
Tally olhou para o pai e, por um instante, viu em seu rosto algo que não era sabedoria e segurança. Parecia um pouco exagerada a naturalidade com que ele havia tratada a Circunstâncias Especiais, rejeitando tudo que acontecia fora da cidade. Pela primeira vez na vida, Tally escutava um perfeito de meia–idade sem se sentir completamente tranquila, o que a deixou confusa. Ela não conseguia tirar da cabeça o fato de que Sol não sabia nada a respeito do mundo exterior para o qual Shay havia fugido.
Talvez a maioria das pessoas não quisesse saber que Tally havia aprendido tudo sobre os Enferrujados e a história antiga da cidade. Na escola, nunca se falava de pessoa que viviam fora da cidade, no presente. Pessoas como David. Até conhecer Shay, Tally também não tinha pensado naquilo.
Mas ela não era capaz de fazer pouco caso do assunto como o pai.
Além disso, tinha assumido um compromisso solene com Shay. Mesmo não passando de uma feia, uma promessa era uma promessa.
– Acho que vou precisar de um tempo para pensar nisso.
Por um instante, um silêncio embaraçoso tomou conta do quarto. Tally tinha dito algo inesperado. Logo, porém, Ellie riu e tocou sua mão.
– É claro que precisa, Tally.
Sol concordou, reassumindo o comando.
– Sabemos que vai fazer a coisa certa.
– Com certeza – disse Tally. – Mas enquanto isso, será que eu poderia ir para casa com vocês? – Seus pais trocaram outro olhar de surpresa. – É muito estranho ficar aqui depois disso. Todo mundo sabe que eu... Não tenho mais aulas, então seria como voltar para casa nas férias, só que um pouco antes do tempo.
O primeiro a se recuperar foi Sol.
– Sabe, Tally – disse ele, dando um tapinha no ombro da filha. – Não acha que seria ainda mais estranho você aparecer na Vila dos Coroas? Quero dizer, não há jovens por lá nesta época.
– É muito melhor ficar aqui com as outras crianças, querida – acrescentou Ellie. – Você é só alguns meses mais velha que alguns deles. E seu quarto nem está pronto para recebê–la!
– Não importa. Nada pode ser pior do que isto – disse Tally.
– Ah, baste encomendar outras roupas e arrumar o telão do jeito que você gosta – sugeriu Sol.
– Não estou falando do quarto...
– De qualquer maneira – interrompeu Ellie –, qual é o sentido de se incomodar tanto? Tudo vai estar resolvido em pouco tempo. É só ter uma boa conversa com a Circunstâncias Especiais, contar tudo, e logo estará onde realmente deseja estar.
Os três olharam para as torres de Nova Perfeição.
– É, acho que sim.
– Meu amor – disse Ellie, passando a mão em sua perna. – Que outra escolha você tem?

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