FEIA PARA SEMPRE
Os
inspetores deviam ter sido avisados sobre sua volta. Todos os outros feios
estavam fora, num passeio escolar de última hora. Mas seu retorno não havia
sido rápido o suficiente para guardarem suas coisas. Quando Tally chegou ao seu
antigo quarto, viu que tudo tinha sido reciclado. Roupas, lençóis, móveis, as
fotos no telão – tudo revertido ao padrão Feio Genérico. Parecia até que alguém
havia se mudado para lá e partido rapidamente, deixando apenas uma lata
estragada de bebida na geladeira.
Tally se sentou na cama, chocada demais até para chorar. Sabia
que, em breve, começaria a berrar e provavelmente perderia o controle na hora e
no lugar mais inapropriados possíveis. Passado o encontro com a dra. Cable, sua
raiva e rebeldia enfraqueciam. Não havia mais nada para lhe dar apoio. Tinha
perdido suas coisas, seu futuro. Só lhe restava a vista da janela.
Permaneceu sentada, com o olhar no infinito, lembrando–se a cada
cinco minutos de que aquilo realmente havia acontecido: os perfeitos cruéis, os
prédios estranhos nos limites da cidade, o terrível ultimato feito pela dra.
Cable. A sensação, para Tally, era a de uma brincadeira que tinha dado
totalmente errado. Uma nova realidade, esquisita e horrível, havia se revelado
e devorado o mundo que ela conhecia e entendia.
Só restava a bolsa preparada para o hospital. Ela nem se lembrava
de tê–la carregado de volta. Ao tirar as poucas roupas, enfiadas lá dentro
aleatoriamente, encontrou o bilhete de Shay.
Pegue
a montanha para além da abertura,
até
achar a longa e plana que procura.
O
mar é gelado, procure o freio.
Na
segunda, cometa um erro feio.
Após
quatro dias, pegue o lado desprezado,
e
busque nas flores os olhos de uma inseto alado.
Quando
encontrá–los, aproveite a jornada.
Depois
na cabeça careca espere a alvorada.
Nada daquilo, fora um ou outro pedaço, fazia sentido para ela.
Estava claro que Shay queria ocultar o significado de outras pessoas que
viessem a ler o bilhete, usando referências que só as duas poderiam entender.
Sua paranoia agora parecia bem mais razoável. Depois que conhecer a dra. Cable,
Tally compreendia por que David queria manter em segredo sua cidade,
acampamento ou o que quer que fosse.
Com o bilhete nas mãos, Tally percebeu que era exatamente aquilo
que a dra. Cable queria. A mulher tinha estado do outro lado da sala o tempo
todo, mas em momento algum fez uma revista nela. Aquilo significava que o
segredo de Shay permanecia a salvo. E que Tally ainda possuía algo para
negociar.
Também significava que a Circunstâncias Especiais cometia erros.
Os
outros feios retornaram antes do almoço. Enquanto desciam do veículo de
transporte escolar, todos esticavam o pescoço, tentando avistar sua janela.
Alguns chegaram a apontar, antes que ela decidisse se esconder nas sombras.
Momentos depois, Tally ouviu garotos no corredor, fazendo silêncio apenas no
momento de passar por sua porta. Alguns até soltaram risadinhas – um hábito dos
novos feios quando tentam ficar quietos.
Estariam rindo dela?
O ronco do seu estômago lembrou Tally de que não havia tomado café
da manhã. Na verdade, nem havia jantado na noite anterior. Não se podia ingerir
alimentos ou águas 16 horas antes da operação. Ela estava faminta.
Apesar disso, permaneceu no quarto até passar o horário do almoço.
Não seria capaz de entrar no refeitório cheio de feios, que acompanhariam cada
um de seus movimentos e imaginariam o que teria feito para merecer continuar
com aquele rosto feio. Finalmente, quando não suportou mais a fome, Tally subiu
em silêncio até o terraço, onde deixavam sobras para quem quisesse.
Alguns feios a viram no corredor. Eles se calaram e abriram
passagem para Tally, como se ela fosse uma pessoa contaminada. O que os
inspetores teriam dito? Que ela havia exagerado nas brincadeiras? Que não podia
ser operada, que seria feia para o resto da vida? Ou simplesmente que era uma
Circunstância Especial?
Em todo lugar em que botava os pés, os olhares se desviavam. Mas
ela nunca havia se sentido tão visível.
Um prato foi largado no terraço, envolto em filme plástico e com
seu nome escrito. Alguém tinha percebido que ela não comera. E não era muito
difícil notar que estava se escondendo.
A imagem do prato de comida, murcho e solitário, levou lágrimas
reprimidas a jorrarem de seus olhos. Ao engolir, Tally sentiu uma dor na
garganta, como se tivesse ingerido um objeto afiado. Era tudo que podia fazer
para voltar logo ao quarto, antes de explodir em soluços.
Ao chegar, Tally percebeu que não tinha se esquecido de trazer o
prato. Ela comia e chorava, sentindo o gosto salgado das lágrimas em cada
pedacinho.
Seus
pais apareceram cerca de uma hora depois.
Ellie entrou primeiro, dando–lhe um abraço que a deixou sem ar e
tirou seus pés do chão.
– Tally, minha pobre garotinha!
– Ei, não vá machucar a menina, Ellie. Ela teve um dia difícil.
Mesmo sem oxigênio, a sensação transmitida por aquele abraço
apertado era boa. Ellie tinha sempre o cheiro certo, cheio de mãe, e Tally
sempre se sentia como uma criança em seus braços. Livre depois de um minuto, o
que não parecia ser o bastante, Tally recuou, na esperança de não voltar a
chorar. Encarou os pais, imaginando o que estariam pensando. Sentia–se um
completo fracasso.
– Não sabia que você vinham – disse.
– É claro que viríamos – respondeu Ellie.
– Nunca ouvi falar de algo desse tipo – disse Sol, balançando a
cabeça. – É ridículo. Vamos descobrir o que houve, não se preocupe.
Tally sentia–se como se um peso fosse tirado de seus costas.
Finalmente alguém estava do seu lado. Os olhos de meia idade de seu pai
transmitiam uma segurança serena. Não havia dúvida de que ele resolveria tudo.
– O que disseram a vocês? – perguntou Tally.
Sol fez um gesto, e ela se sentou na cama. Ellie se acomodou ao
seu lado, enquanto o pai caminhava de um lado ao outro do quarto apertado.
– Bem, eles nos contaram a respeito dessa garota, Shay. Parece que
ela é bem problemática.
– Sol! – interveio Ellie. – A pobre menina está desaparecida.
– Parece que ela quis desaparecer.
A mãe não respondeu.
– Não é culpa dela, Sol – disse Tally. – Ela só não queria se
tornar perfeita.
– Então ela é uma pensadora independente. Ótimo. Só que devia ter
o bom senso de não arrastar outra pessoa para o buraco com ela.
– Ela não me arrastou a lugar algum. Estou bem aqui. – Tally olhou
pela janela para a paisagem familiar de Nova Perfeição. – Onde, pelo visto, vou
ficar para sempre.
– Bem... – voltou a falar Ellie. – Eles disseram que assim que
você decidir ajudá–los a encontrar essa Shay, tudo poderá prosseguir
normalmente.
– Não fará a menor diferença se a operação acontecer com alguns
dias de atraso. Será uma história e tanto para contar quando for mais velha –
observou Sol, sorrindo.
– Não sei se posso ajudá–los – disse Tally.
– Faça o máximo que puder – sugeriu Ellie.
– Mas não posso. É que prometi a Shay que não contaria sobre seus
planos a ninguém.
Todos permaneceram em silêncio por alguns instantes.
Sol se sentou e segurou a mão de Tally. Ele tinha mãos quentes e
fortes, quase tão enrugadas quanto as de um idoso, devido ao trabalho na
carpintaria. Tally lembrou que não visitava os pais desde a semana de férias no
verão, quando mal tinha conseguido controlar a ansiedade de voltar e passar
mais tempo ao lado de Shay. Mas agora a sensação de voltar a vê–los era boa.
– Tally, todos fazemos promessas quando somos crianças. É parte e
ser feio. Tudo parece emocionante, intenso e importante. Mas é preciso crescer.
Afinal, você não deve nada a essa garota. Ela só criou problemas para você.
Ellie segurou sua outra mão.
– E, na verdade, você a estará ajudando, Tally. Quem pode dizer
onde ela está neste momento e pelo que está passando? Estou surpresa por tê–la
deixado fugir dessa maneira. Não sabe como é perigoso por aí?
Tally se pegou concordando. As expressões de Sol e Ellie tornavam
tudo tão claro. Talvez colaborar com a dra. Cable realmente pudesse ajudar Shay
e botar as coisas de volta no lugar para ela própria. Porém, a simples
lembrança da dra. Cable a fez estremecer.
– Vocês deviam ter visto aquelas pessoas. Sabem, as que estão
atrás de Shay. Elas parecem...
Sol deu uma risada.
– Tally, embora seja meio chocante na sua idade, nós, os mais
velhos, conhecemos a Circunstâncias Especiais. Eles podem ser duros, mas estão
apenas fazendo o que deve ser feito, entende? O mundo lá fora também é muito
duro.
Tally suspirou. Talvez estivesse relutante só por ter ficado tão
assustada com aqueles perfeitos esquisitos.
– Vocês já viram de perto? A aparência deles é inacreditável.
– Não posso dizer que já vi um de perto –
respondeu Ellie.
Sol franziu a testa e, em seguida, começou a rir.
– Bem, Ellie, você não vai querer conhecer um
deles. E Tally, se fizer a coisa certa agora, provavelmente nunca mais terá de
se encontrar com eles. Ninguém precisa passar por isso à toa.
Tally olhou para o pai e, por um instante, viu em seu rosto algo
que não era sabedoria e segurança. Parecia um pouco exagerada a naturalidade
com que ele havia tratada a Circunstâncias Especiais, rejeitando tudo que
acontecia fora da cidade. Pela primeira vez na vida, Tally escutava um perfeito
de meia–idade sem se sentir completamente tranquila, o que a deixou confusa.
Ela não conseguia tirar da cabeça o fato de que Sol não sabia nada a respeito
do mundo exterior para o qual Shay havia fugido.
Talvez a maioria das pessoas não quisesse saber
que Tally havia aprendido tudo sobre os Enferrujados e a história antiga da
cidade. Na escola, nunca se falava de pessoa que viviam fora da cidade, no
presente. Pessoas como David. Até conhecer Shay, Tally também não tinha pensado
naquilo.
Mas ela não era capaz de fazer pouco caso do assunto como o pai.
Além disso, tinha assumido um compromisso solene com Shay. Mesmo
não passando de uma feia, uma promessa era uma promessa.
– Acho que vou precisar de um tempo para pensar nisso.
Por um instante, um silêncio embaraçoso tomou conta do quarto.
Tally tinha dito algo inesperado. Logo, porém, Ellie riu e tocou sua mão.
– É claro que precisa, Tally.
Sol concordou, reassumindo o comando.
– Sabemos que vai fazer a coisa certa.
– Com certeza – disse Tally. – Mas enquanto isso, será que eu
poderia ir para casa com vocês? – Seus pais trocaram outro olhar de surpresa. –
É muito estranho ficar aqui depois disso. Todo mundo sabe que eu... Não tenho
mais aulas, então seria como voltar para casa nas férias, só que um pouco antes
do tempo.
O primeiro a se recuperar foi Sol.
– Sabe, Tally – disse ele, dando um tapinha no ombro da filha. –
Não acha que seria ainda mais estranho você aparecer na Vila dos Coroas? Quero
dizer, não há jovens por lá nesta época.
– É muito melhor ficar aqui com as outras crianças, querida –
acrescentou Ellie. – Você é só alguns meses mais velha que alguns deles. E seu
quarto nem está pronto para recebê–la!
– Não importa. Nada pode ser pior do que isto – disse Tally.
– Ah, baste encomendar outras roupas e arrumar o telão do jeito
que você gosta – sugeriu Sol.
– Não estou falando do quarto...
– De qualquer maneira – interrompeu Ellie –, qual é o sentido de
se incomodar tanto? Tudo vai estar resolvido em pouco tempo. É só ter uma boa
conversa com a Circunstâncias Especiais, contar tudo, e logo estará onde
realmente deseja estar.
Os três olharam para as torres de Nova Perfeição.
– É, acho que sim.
– Meu amor – disse Ellie, passando a mão em sua perna. – Que outra
escolha você tem?
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