Naquela noite, dormi na cama do meu pai, a única vez que fiz isso na vida. A
tempestade passou, e a temperatura subiu a níveis absurdos. Abrir as janelas não foi
suficiente para refrescar, e rolei na cama durante horas. Quando me arrastei para fora da
cama na manha seguinte, encontrei as chaves do carro do meu pai penduradas em um gancho
na cozinha. Joguei minhas malas na traseira e peguei algumas coisas da casa que queria
guardar. Pouca coisa além da fotografia. Depois liguei para o advogado e aceitei a oferta de
encontrar alguém que desse um fim no resto das coisas e também de vender a casa. Joguei a
chave na caixa do correio.
Na garagem o motor levou alguns segundos para pegar. Tirei o carro e tranquei a porta
da garagem. Do quintal, olhei a casa, pensando em meu pai e sabendo que nunca mais veria
aquele lugar.
***
Dirigi até a clínica, peguei os pertences de meu pai e então saí de Wilmington pela
interestadual em direção ao oeste, no piloto automático. Havia anos que eu não passava
naquele trecho da estrada, e tinha apenas vaga idéia do trânsito, mas a sensação de
familiaridade voltou em ondas. Passei pelas cidades de minha juventude e atravessei Raleigh
em direção a Chapel Hill. Onde as memórias voltaram com dolorosa intensidade. Pisei no
acelerador, tentando deixá-las para trás.
Atravessei Burlington, Greensboro e Winston-Salem. Fiz uma única parada para
abastecer no inicio do dia, quando comprei uma garrafa de água. Segui direto, só bebericando
água, sem estomago para pensar em comer. Deixei a nossa fotografia no assento do carona, e
vez ou outra tentava evocar o menino da foto. Por fim, fiz a conversão para o norte, seguindo
pela estradinha que corta as montanhas de picos azuis ao sul e ao norte, suaves ondulações na
crosta terrestre.
Já era fim de tarde quando estacionei o carro e me registrei em um velho motel de beira
de estrada. Meu corpo estava rígido e, após alongar alguns minutos, tomei banho e fiz a
barba. Coloquei jeans limpos e uma camiseta. Cogitei pegar algo para comer, porem ainda
estava sem fome. Com o sol baixo, o ar não tinha o mormaço úmido do litoral, e senti o
cheiro das coníferas descendo das montanhas. Foi ali que Savannah nasceu, e de algum modo
eu sabia que ela ainda estava lá.
Embora pudesse ter ido à casa dos pais dela perguntar, descartei a idéia, sem saber
como eles reagiram à minha presença. Decidi dirigir pelas ruas de Lenoir, passando pelo
distrito comercial onde havia uma variada coleção de restaurantes fast-food, mas só
desacelerei quando cheguei à parte menos genérica da cidade. Nessa área Lenoir parecia não
ter mudado nada-turistas e recém-chegados eram bem vindos em visita, mas nunca seriam
considerados gente do lugar. Estacionei em um velho salão de bilhar que me fez lembrar os
lugares que freqüentava na juventude. Luminosos de neon faziam publicidade da cerveja nas
janelas, e o estacionamento estava cheio. Era em um local como aquele que encontraria a
resposta de que precisava.
Entrei, Hank Willians tocava na jukebox, e rolos de fumaça de cigarro pairavam no ar.
Quatro mesas de sinuca estavam agrupadas: todos os jogadores usavam bonés de baseball, e
dois evidentemente tinham tabaco de mascar acumulado nas bochechas. Peixes gigantes
empalhados decoravam as paredes, ao lado de memorabilia da NASCAR. Havia fotos tiradas
em Talladega, Martinsville, North Wilkesboro e Rockinghan. Embora a minha opinião sobre
o esporte não tivesse mudado, tal visão me deixou estranhamente à-vontade. No canto do bar,
abaixo do rosto sorridente do falecido Dale Earnhardt *, havia uma jarra cheia de dinheiro,
pedindo doações para ajudar uma vítima local do câncer. Sentindo um inesperado arroubo de simpatia, contribuí com alguns dólares.
*Piloto de automobilismo que morreu em um acidente nas 500 milhas de Daytona em
2001
Sentei no bar e puxei conversa com o barman. Ele tinha mais ou menos minha idade e
seu sotaque da montanha me lembrou Savannah. Depois de vinte minutos de conversa fiada,
tirei a foto da Savannah da carteira e expliquei que era amigo da família. Citei os nomes dos
pais dela e fiz perguntas demonstrando que eu estivera lá antes.
Ele foi cauteloso, e com razão. Cidades pequenas protegem os seus. Mas acontece que
ele passara alguns anos na marinha, e isso ajudou. Após um tempo, ele concordou em falar.
―Sim, eu conheço ela‖, disse. ―Ela mora em Old Mill Road, perto da casa dos pais.‖
Já passava das oito horas, e o céu estava escurecendo com a chegada da noite. Dez
minutos depois, deixei uma gorjeta gorda no balcão e tomei o rumo da saída.
***
Curiosamente, não passava nada na minha cabeça enquanto dirigia até a região dos
cavalos. Pelo menos, era assim que eu me lembrava da área na ultima vez que estive ali.
Peguei uma estrada de constante subida, e comecei a reconhecer os pontos de referência da
região; sabia que em poucos minutos passaria pela casa dos pais de Savannah. Quando o fiz,
inclinei-me, sobre o volante, procurando pela próxima abertura na cerca até virar uma longa
estrada de cascalho. Assim que fiz a conversão, notei uma placa pintada a mão indicando um
lugar chamado ―Hope and Horses‖ **.
**Em tradução literal: Esperança e Cavalos.
O crepitar dos pneus sobre o cascalho era estranhamente reconfortante, e estacionei
debaixo de um salgueiro, ao lado de uma pequena caminhonete velha. Observei a casa.
Quadrada, de telhado pontudo, pintada de branco a e com uma chaminé que subia em direção
ao céu, a casa parecia erguer-se da terra como uma imagem fantasmagórica de centenas de
anos. Uma única lâmpada brilhava em cima da antiga porta de entrada, e um pequeno vaso
de planta estava pendurado perto da bandeira americana, ambos balançando suavemente com
a brisa. Do lado da casa havia um velho celeiro e um pequeno curral; para além uma
pastagem verde esmeralda delimitada por uma cerca branca, que se estendia até uma fileira
de maciços carvalhos. Havia outra construção semelhante a uma cabana perto do celeiro, e
nas sombras eu avistava os contornos de equipamentos agrícolas. Questionei novamente o
que estava fazendo aqui.
Não era tarde de mais para ir embora, mas não conseguia me obrigar a manobrar o
carro. O céu ardia em vermelho e amarelo antes de o sol mergulhar para além do horizonte,
lançando as montanhas na escuridão total. Saí do carro e comecei a me aproximar da casa. O
orvalho na grama umedeceu as pontas dos meus sapatos, e senti o cheiro das coníferas mais
uma vez. Ouvi o chilreio dos grilos e o canto constante de um rouxinol. Os sons davam-me
força enquanto eu me aproximava do alpendre. Tentei descobrir o que diria se ela atendesse a
porta. Ou o que eu diria se ele atendesse. Enquanto tentava decidir o que fazer, um retriever
abanando a cauda se aproximou de mim.
Estendi a mão, e ele me deu uma lambida amigável antes de fazer a volta e descer as
escadas. Sua calda continuava abanando enquanto ele rodeava a casa. Ouvindo o mesmo
chamado que me trouxera para Lenoir, deixei o alpendre e o segui. Ele mergulhou, arrastando
a barriga no chão e rastejando por debaixo do último obstáculo da cerca, e então entrou no
celeiro.
Assim que o cão desapareceu, vi Savannah surgir do celeiro carregando retângulos de
feno sob os braços. Os cavalos do pasto começaram a galopar naquela direção, enquanto ela
distribuía o feno em vários comedouros. Eu continuava a avançar. Ela estava sacudindo o
feno da roupa e se preparando para voltar ao celeiro quando, inadvertidamente, olhou na
minha direção. Ela deu um passo, olhou novamente e congelou no lugar.
Por um longo momento, nenhum de nós se moveu. Com seu olhar fixo no meu, percebi
que fora um erro ter vindo, ter aparecido assim sem avisar. Sabia que deveria dizer algo,
qualquer coisa, mas nada me veio à mente. Só conseguia olhar para ela.
As memórias voltaram como uma avalanche, todas elas, e notei quão pouco ela mudara
desde a última vez que nos vimos. Como eu, ela vestia jeans e uma camiseta manchada de
terra, e suas botas de cowboy estavam desgastadas e arranhadas. De algum modo, aquele
visual campestre lhe dava um charme rústico. Seu cabelo estava mais comprido, mas ela
ainda tinha a pequena fenda entre os dentes da frente que eu sempre adorara.
―Savannah‖, eu disse finalmente.
Só depois de falar, percebi que ela ficara tão enfeitiçada quanto eu. De repente, ela
abriu um sorriso largo e cheio de um prazer inocente.
―John‖ ela gritou.
―É bom ver você de novo.‖
Ela balançou a cabeça, como tentando aclarar a mente, então apertou os olhos
novamente. Quando finalmente se convenceu que eu não era uma miragem, partiu em minha
direção e atravessou a porteira. Momentos depois, senti os braços dela em volta de mim, seu
corpo quente e acolhedor. Por u segundo, era como se nada tivesse mudado entre nós. Quis
que aquele abraço não terminasse nunca. Mas quando ela se afastou, quebrou a ilusão e nos
tornamos estranhos outra vez. O rosto dela fazia a pergunta que eu tinha sido incapaz de
responder durante a longa viagem até ali.
―O que você esta fazendo aqui?‖
Desviei o olhar. ―Não sei‖, disse. ―Só precisava vir.‖
Embora ela não tenha perguntado mais nada, havia uma mistura de curiosidade e
hesitação em sua expressão, como se ela não tivesse certeza de que queria uma explicação.
Dei um pequeno passo para trás, abrindo espaço para ela. Identifiquei os contornos sombrios
dos cavalos na escuridão e senti que os acontecimentos dos últimos dias aos poucos voltavam
para mim.
―Meu pai morreu‖, sussurrei, as palavras surgiram do nada. ―Acabo de vir do funeral.‖
Ela ficou quieta. Sua expressão adquiriu a compaixão espontânea que tanto me atraiu
no passado.
―Oh, John... Sinto muito‖, murmurou.
Ela se aproximou novamente, e desta vez havia urgência em seu abraço. Quando se
afastou, metade do seu rosto ficou na sombra.
―Como aconteceu?‖, ela perguntou, ainda segurando a minha mão.
Percebi uma tristeza genuína em sua voz, e fiz uma pausa incapaz de resumir os últimos
dois anos em uma única frase. ―É uma longa história‖, disse. Sob as luzes do celeiro, julguei
detectar em seu olhar traços das memórias que ela queria manter enterradas, de uma vida
muito antiga. Quando ela soltou minha mão, vi a aliança brilhando no dedo esquerdo. Essa
visão foi como uma ducha de água fria, um choque de realidade.
Ela compreendeu minha expressão. ―Sim‖, ela disse, ―estou casada.‖
―Desculpe‖, disse, balançando a cabeça. ―Não deveria ter vindo.‖
Surpreendendo-me, ela gesticulou ligeiramente. ―Tudo bem‖, disse, inclinando a
cabeça. ―Como você me encontrou?‖
―É uma cidade pequena.‖ Dei de ombros. ―Perguntei pra alguém.‖
―E simplesmente... te contaram?‖
―Fui convincente.‖
Foi esquisito, e nenhum de nós sabia o que dizer. Parte de mim esperava continuar ali,
enquanto conversávamos como velhos amigos sobre tudo o que havia acontecido conosco
desde nosso último encontro. Outra parte de mim esperava que o marido dela aparecesse do
nada a qualquer momento e, ou me estendesse a mão ou me desafiasse para uma briga. Em
meio ao silêncio, um cavalo relinchou. Atrás dela havia quatro cavalos com as cabeças
enfiadas no comedouro, metade nas sombras, metade iluminados pela luz do celeiro. Três
outros cavalos, incluindo Midas, olhavam para Savannah como que perguntando se ela havia
se esquecido deles. Savannah por fim fez um sinal por cima do ombro.
―Tenho de cuidar deles também‖, disse ela. ―É a hora da comida, e eles estão ficando
impacientes.‖
Quando assenti, Savannah deu um passo para trás e virou-se. Assim que chegou ao
portão, ela acenou. ‖Você quer me dar uma mão?‖
Hesitei, olhando em direção a casa. Ela seguiu meu olhar.
―Não se preocupe‖ disse. ―Ele não está, e sua ajuda seria muito bem vinda.‖ A voz dela
estava surpreendentemente tranqüila.
Embora não soubesse como interpretar aquela resposta, concordei. ―Fico feliz em
ajudar.‖
Resmunguei: ―vou tentar.‖
No celeiro, ela separou um pedaço de feno e, em seguida, mais dois e entregou-os a
mim.
―Basta jogar nos comedouros perto dos outros. Eu estou indo pegar a aveia.‖
Fiz o que ela mandou, e os cavalos se aproximaram. Savannah saiu carregando dois
baldes.
―É melhor você dar um pouco de espaço para eles, Eles podem derrubar você por
acidente.‖
Eu me afastei, e Savannah pendurou os baldes na cerca. O primeiro grupo de cavalos
trotando em direção a eles. Savannah os observou com evidente orgulho.
―Quantas vezes você tem que alimentá-los?‖
―Duas vezes por dia, todos os dias. Mas há mais além da alimentação. Você ficaria
surpreso em como eles são estabanados às vezes. O telefone do veterinário está na discagem
rápida.‖
Eu sorri. ―Parece muito trabalho.‖
―É mesmo. Dizem que ser dono de um cavalo é como viver como uma âncora. A menos
que você tenha alguém para ajudar, é difícil ficar longe, mesmo por um fim de semana.‖
―Seus pais ajudam?‖
―Às vezes. Quando realmente preciso deles. Eles moram atrás do morro, do outro lado
da cerca. Mas o meu pai está ficando velho, e há uma grande diferença entre cuidar de um
cavalo e cuidar de sete.
―Vou acreditar na sua palavra.‖
No doce abraço da noite, ouvindo o zumbido constante das cigarras, eu respirava a paz
daquele refugio, tentando aquietar meus pensamentos acelerados.
―Este é exatamente o tipo de lugar que imaginei como sua casa‖, finalmente disse.
―Eu também‖, ela afirmou. ―Mas é muito mais difícil do que eu imaginava. Há sempre
algo para consertar. Você não imagina quantos vazamentos havia no celeiro, e um bom
pedaço da cerca desabou no último inverno. Foi nisso que trabalhamos durante toda a
primavera.‖
Embora tenha ouvido ela usar ―nós‖ e assumindo que se tratava de seu marido, eu ainda
não estava pronto para falar sobre ele. Nem ela, ao que parece.
―Mas é bonito aqui, mesmo com tanto trabalho. Em noites como esta, gosto de sentar
no alpendre e apenas ouvir o mundo. Raramente se ouve barulho de carros e isso é tão...
pacífico. Ajuda a clarear a mente, especialmente depois de um longo dia.‖
Enquanto ela falava, observei como media as palavras, percebi seu desejo de manter a
conversa em território seguro.
―Aposto que sim.‖
―Preciso limpar alguns cascos‖, ela anunciou. ―Você quer ajudar?‖
―Não sei o que fazer‖, admiti.
―É fácil, disse. ―Vou te mostrar.‖ Desapareceu no celeiro e saiu carregando o que
parecia ser um par de pequenos pregos curvados. Ela me entregou um. Enquanto os cavalos
comiam, ela se aproximou de um deles.
―Você só tem agarrar perto do casco e levantar, enquanto segura a parte de trás da pata
dele aqui‖, disse, demonstrando. Ocupado com o feno, o cavalo levantou a pata obediente.
Ela apoiou o casco entre as pernas. ―Então, basta tirar a terra do casco. É só isso.
Fui até o cavalo ao lado dela e tentei replicar suas ações, mas nada aconteceu. O cavalo
era excessivamente grande e teimoso. Eu puxei a pata e segurei no lugar certo. Depois puxei
e segurei mais um pouco. O cavalo continuou a comer, ignorando meus esforços.
―Ele não vai levantar a pata‖, reclamei. Ela terminou o casco que estava limpando,
então se inclinou para o lado do meu cavalo. Um puxão e um apertão mais tarde, o casco
estava no lugar, entre as pernas dela. ―Claro que vai. Só que ele sabe que você não tem idéia
do que esta fazendo e esta desconfortável perto dele. Você tem que ser confiante.‖ Ela deixou
cair o casco e tomei o seu lugar para tentar novamente. O cavalo ignorou-me mais uma vez.
―Veja como eu faço‖, disse ela com cuidado.
―Eu estava observando‖, protestei.
Ela repetiu o procedimento, o cavalo levantou a pata. Um momento depois imitei o
passo a passo e o cavalo me ignorou. Embora eu não possa alegar que consiga ler a mente de
um cavalo, tive a estranha sensação de que ele se divertia com o meu sofrimento. Frustrado,
bati e puxei incansavelmente até que, finalmente, como por magia, o cavalo levantou a pata.
Apesar da precariedade do meu desempenho, senti uma onda de orgulho. Pela primeira vez
desde que cheguei, Savannah riu.
―Bom trabalho. Agora é só raspar fora a lama e partir para o próximo casco.‖
Savannah tinha limpado os outros seis cavalos quando terminei meu primeiro. Quando
terminamos, ela abriu a porteira e os cavalos trotaram para a pastagem escura. Eu não sabia o
que esperar, mas Savannah foi para o galpão. Ela trazia duas pás nas mãos.
―Agora é hora de limpar‖, disse ela, entregando-me uma pá.
―Limpar?‖
―O chorume‖, disse. ―Caso contrário pode ficar muito espesso aqui.‖
Peguei a pá. ―Você faz isso todo dia?‖
―A vida é doce, não é?‖, ela provocou. Ela saiu novamente e voltou com um carrinho de
mão.
Quando começamos a cavar o estrume, um pedaço de uma lua surgiu sobre as copas das
arvores. Trabalhamos em silêncio, o tilintar das pás em ritmo constante enchia o ar. Quando
acabamos, inclinei-me sobre minha pá e a observei. No escuro do celeiro ela parecia linda e
fugaz como uma aparição. Ela não disse nada, mas pude sentir que me analisava.
―Você esta bem?‖, finamente perguntei.
―Por que você veio, John?‖
―Você já me perguntou isso.‖
―Sei que já perguntei‖, ela disse. ―Mas você ainda não respondeu.‖
Estudei-a. Não, eu não tinha respondido. Não tinha certeza se podia me explicar, e
transferi o peso de um pé para o outro. ―Não sabia para onde mais poderia ir.‖
Surpreendendo-me, ela concordou. ―Uh-huh‖, admitiu.
Foi a aceitação sem reservas em sua voz que me fez continuar.
―estou falando sério‖, disse. ―De certo modo, você foi a melhor amiga que já tive.‖
Notei a expressão dela amolecer. ―Tudo bem‖, ela disse. Essa resposta lembrou-me do
meu pai e, depois de falar, talvez ela tenha percebido isso. Obriguei-me a examinar a
propriedade.
―Esta é a fazenda que você sonhava construir, não é?‖ perguntei. ―Hope and Horses é
para crianças altistas, não?‖
Ela passou a mão pelos cabelos, colocando uma mecha atrás da orelha. Parecia feliz de
eu ter lembrado. ―Sim‖, disse ela. ―É.‖
―É tudo o que você pensou que seria?‖
Ela riu e ergueu as mãos. ―Às vezes‖, disse. ―Mas é muito mais difícil do que eu
imaginava, e não pense que rende o suficiente para pagar as contas. Nós dois trabalhamos em
outros empregos, e todos os dias percebo que não aprendi tanto na faculdade quanto
imaginava.‖
―Não?‖
Ela balançou a cabeça. ―Algumas das crianças que aparecem aqui, ou no centro, são
muito difíceis de tratar.‖ Ela hesitou, tentando encontrar as palavras certas. Finalmente,
balançou a cabeça. ―Acho que pensei que todas seriam como Alan, sabe?‖ Ela olhou para
cima. ―Você se lembra quando falei dele?‖
Assenti com a cabeça e ela prosseguiu. ―Acontece que a situação de Alan era especial.
Não sei, talvez por ele ter crescido em um rancho, mas ele se adaptou muito mais facilmente
do que a maioria das crianças.‖
Ela parou de falar, e olhei-a de modo inquisitivo. ―Lembro que não foi assim que você
me contou a história. Pelo que me lembro, Alan ficou apavorado no início.‖
―Sim, eu sei, mas enfim... ele se acostumou. E esse é o ponto. Não sei quantas crianças
temos aqui que não se adaptaram em nada, não importa quanto tempo trabalhamos com elas.
Isto não é só uma coisa de final semana, algumas crianças freqüentaram regularmente por
mais de um ano. Trabalhamos em um centro de avaliação do desenvolvimento, portanto
passamos muito tempo com a maioria das crianças. Quando criamos o rancho, insisti em
abri-lo para todas as crianças, independentemente da gravidade do transtorno. Sentimos que
seria algo importante, mas com algumas crianças... Eu só queria saber como me comunicar
com elas. Às vezes parece que estamos apenas andando em círculos.‖
Percebi que Savannah repassava suas lembranças. ―Não quero dizer que estamos
perdendo nosso tempo‖, ela prosseguiu. ―Algumas crianças realmente se beneficiaram com o
que estamos fazendo. Elas vêm aqui, passam alguns fins de semana e é como... um botão de
flor lentamente desabrochando em algo belo. Assim como foi com Alan. É como se você
pudesse sentir a mente deles se abrindo para novas idéias e possibilidades. E quando estão
cavalgando com um grande sorriso nos rostos, nada mais importa no mundo. É um
sentimento inebriante, e você quer que aconteça mais e mais, com cada criança que chega. Eu
costumava achar que era questão de persistência, que podíamos ajudar a todos, mas não
podemos. Algumas das crianças não querem nem mesmo chegar perto do cavalo, quanto
mais, montar.‖
―Você sabe que não é sua culpa. Eu também não ficava muito entusiasmado com a idéia
de montar, lembra?‖
Ela riu, parecendo extremamente feminina. ―Sim, eu lembro. Na primeira vez que você
subiu em um cavalo, estava mais assustado do que boa parte das crianças.‖
―Não, não estava‖, protestei. ―E, alem disso, Pepper era arisco‖, insisti.
―Falou como um verdadeiro novato‖, ela provocou. ―Mas mesmo que você esteja
errado, fico tocada por ainda se lembrar.‖
Sua jovialidade evocou uma onda de lembranças.
―Claro que lembro‖, disse. ―Aquele foram os melhores dias da minha vida. Nunca vou
esquecê-los.‖ Atrás dela, avistei o cão errante no pasto. ―Talvez por isso eu ainda não esteja
casado.‖
Ao ouvir essas palavras, o olhar dela vacilou. ―Eu também me lembro.‖
―Você?‖
―Claro‖, ela disse. ―Você pode não acreditar, mas é verdade.‖
O peso das palavras dela encheu o ar.
―Você é feliz Savannah?‖, finalmente perguntei.
Ela abriu um sorriso irônico. ―A maior parte do tempo. Você não?‖
―Não sei‖, disse, e ela riu novamente.
―Essa é a sua resposta padrão, sabia? Quando é convidado a olhar para dentro de si e
responder. É como um reflexo seu. Sempre foi. Por que você não pergunta o que realmente
quer perguntar?‖
―O que eu realmente quero perguntar?‖
―Se amo o meu marido. Não é isso que você quer saber?‖
―Sim‖, ela disse afinal, novamente lendo minha mente. ―Eu o amo.‖
A sinceridade inquestionável em sua voz me feriu, mas antes que eu pudesse refletir, ela
se virou para mim novamente. A ansiedade cintilava em seu rosto, como se ela lembrasse
algo doloroso. Mas logo passou.
―Você já comeu?‖, ela perguntou.
Eu ainda estava tentando entender o que acabar de acontecer. ―Não‖, eu disse. ―Na
verdade, não tomei café da manha, nem almocei.‖
Ela balançou a cabeça. ―Tenho umas sobras de cozido de carne em casa. Você tem
tempo para jantar?‖
Apesar de pensar mais uma vez no marido dela, assenti. ―Quero sim‖, disse.
Partimos em direção a casa e paramos no alpendre onde se enfileiravam velhas botas de
caubói cobertas de lama. Savannah segurou em meu braço de modo extraordinariamente fácil
e natural, apoiando-se em mim para tirar as botas Talvez tenha sido esse toque que me deu
coragem para olhar verdadeiramente para ela. Apesar do ar de mistério e maturidade que
sempre me atraiu, também notei uma ponta de tristeza e hesitação. Para meu coração
dolorido, essa combinação a tornava ainda mais bonita.
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